Análise: como o Vietnã superou a destruição da guerra e se tornou uma próspera economia em ascensão


O fim da Guerra do Vietnã (1959–1975) completa 50 anos nesta quarta-feira (30). Em 30 de abril de 1975, o conflito foi declarado oficialmente encerrado, após 16 anos de confrontos entre tropas norte-americanas e o Exército do Vietnã do Norte.
Antes da guerra, o Vietnã, hoje reunificado, era dividido em dois países, de zonas de influências distintas: Vietnã do Norte, que tinha como capital Hanói e era apoiado pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS); e Vietnã do Sul, que tinha como capital Saigon e era apoiado pelos EUA.
Nos dias que antecederam o anúncio oficial do fim do conflito, tropas norte-americanas evacuaram várias cidades do Vietnã do Sul, e em 30 de abril tropas do Vietnã do Norte tomaram Saigon sem encontrar resistência, e rebatizaram a cidade de Ho Chi Minh, em homenagem ao então governante do Vietnã do Norte, figura central na vitória.
O episódio é considerado uma derrota histórica da máquina de guerra norte-americana, embora os EUA não reconheçam oficialmente o fato. Reunificado e livre da influência norte-americana, o Vietnã é hoje uma das economias mais prósperas do Sudeste Asiático, com projeção de PIB de 6,5% neste ano, segundo dados do Banco Mundial, além de ser uma referência no Sul Global próxima ao BRICS.
À Sputnik Brasil, Charles Pennaforte, professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e coordenador do Laboratório de Geopolítica, Relações Internacionais e Movimentos Antissistêmicos (LabGRIMA), afirma que a guerra deixou no Vietnã cerca de 2 milhões de mortos, “entre soldados, combatentes e população civil”, enquanto as perdas do lado estadunidense giram em torno de 350 mil soldados.
Segundo ele, do ponto de vista geopolítico, a Guerra do Vietnã deixa como principal legado “a derrota fragorosa dos EUA”.
“Sem dúvida nenhuma, isso [derrota norte-americana] foi um marco na história das relações internacionais e da perspectiva geopolítica, que acentuava ainda mais a Guerra Fria nas décadas seguintes”, afirma.
Vietnã do Sul. Avião norte-americano ardendo na pista perto da vila de Dak To, 1967 - Sputnik Brasil, 1920, 21.04.2020

Pennaforte explica que a guerra do Vietnã é um marco também porque reformulou a política norte-americana em relação às Forças Armadas, principalmente a questão da convocação.
“A partir daí procura-se profissionalizar, e não somente recrutar, a população, os jovens, na faixa etária de serviço. Isso muda totalmente. Foi uma guerra também que foi transmitida pela televisão, era possível ver os combates.”
Ele acrescenta que Washington passou a evitar o envio de tropas para confrontos no exterior no intuito de evitar perdas de soldados, que causam um forte impacto “na popularidade de quem estiver ocupando a Casa Branca”.
“Então houve uma mudança nessa perspectiva: tropas enviadas só em último caso, quando a situação já está mais ou menos estabilizada. Fora isso, a prioridade sempre é de mísseis de longo alcance, como foi no caso da Sérvia, evitando o máximo possível de perdas, que é o que mais assombra a sociedade americana desde a Guerra do Vietnã”, afirma.
No recorte do Vietnã, Pennaforte afirma que a guerra deixou o país “arrasado” do ponto de vista de infraestrutura, e nos anos seguintes o país buscou apoio da União Soviética e da China para “reverter o quadro de destruição”.

“Mas nos anos 1980 e 1990, principalmente nos 1980, há uma transferência muito grande de empresas à procura de mão de obra barata. Isso faz com que o Vietnã passe a adotar uma política não tão estilo soviético de planificação, mas se aproximando mais de um modelo mais híbrido, um modelo chinês, na prática. Então, ao longo dos anos 1990 e 2000, o Vietnã passa a ser um novo Tigre Asiático, absorvendo empresas externas que vão utilizar a mão de obra intensiva e barata para a produção.”

Nesse contexto, ele afirma que hoje o Vietnã é um país capaz de “se desenvolver razoavelmente bem e tem uma característica bem mais dinâmica em função desse cenário de abertura econômica no sentido clássico”.
Um membro da tripulação é visto a bordo do porta-aviões USS Carl Vinson durante um exercício marítimo de três dias entre os EUA e o Japão no mar das Filipinas em 31 de janeiro de 2024 - Sputnik Brasil, 1920, 09.06.2024

Outro legado da Guerra do Vietnã é que os custos sociais de se envolver em conflitos foram revistos após esse marco, conforme aponta à reportagem Valter Peixoto Neto, bacharel em comércio exterior, pós-graduado em relações internacionais e em câmbio, analista político independente do Sudeste Asiático e da Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN, na sigla em inglês) e host do podcast MenteMundo, no Spotify, onde apresenta uma série de cinco episódios sobre a Guerra do Vietnã.
“Pela primeira vez, grandes potências perdiam a guerra dentro de casa, o peso e a importância da opinião pública sobre o cenário internacional foram revistos após o evento. A contracultura dos anos 1960 e o marcante ano de 1968 certamente seriam outros sem essa guerra, a rebeldia estudantil de quem era obrigado a servir no Exército e não concordava com a mentalidade política da Guerra Fria não teria a mesma força se não houvesse a Guerra do Vietnã. A análise do custo da guerra também sofreu alteração, foi durante o conflito que [Richard] Nixon [37º presidente dos EUA] se viu obrigado a enterrar Bretton Woods, o sistema financeiro internacional vigente desde 1944”, explica.
No lado norte-americano, Neto afirma que o episódio levou os EUA a passarem por “revisões profundas de suas táticas militares e pela recuperação de sua imagem com sua população civil, que ficou profundamente desgastada, algo que até então era novidade”.

“Muitos analistas militares dizem que o ataque da OTAN contra a Sérvia, obviamente liderado por Washington, por criminosos 78 dias, foi uma espécie de teste de novas capacidades e táticas militares após a frustrante derrota no Vietnã e para mostrar ao mundo que eles estavam na fronteira tecnológico-militar, com capacidade destrutiva que ninguém mais tinha novamente. O cerco ao Iraque em 2003 pode ser lido sob essa ótica. Mesmo sem o aval do Conselho de Segurança da ONU, eles invadiram o país e rasgaram o direito internacional para demonstrar força pós-ataque do 11 de setembro [de 2001]”, explica.

Entretanto ele afirma que, com a chegada da guerra no Afeganistão, a grande máquina militar dos EUA tornou a passar por apuros, “ao enfrentar exércitos irregulares e guerrilhas com forte penetração nas cidades que os militares americanos controlavam”.
“O trauma e as comparações das imagens da saída dos EUA do Afeganistão e do Vietnã são inevitáveis, ou seja, se não for lutar contra inimigos grandes e imóveis, como exércitos oficiais e países, os EUA seguem com as mesmas dificuldades de 50, 60 anos atrás.”
Guerra no Vietnã (1964-1975). Vietnã do Sul. Refugiados das áreas ocupadas por militares norte-americanos, 13 de maio de 1966 - Sputnik Brasil, 1920, 10.08.2022

Já do lado vietnamita, ele afirma que o legado é de “resistência e esperança”.

“O Vietnã mostrou que mesmo as maiores máquinas militares do planeta podem ser derrotadas se houver resiliência, disciplina e uma vontade inquebrável. As múltiplas guerras de independência da África, por exemplo, beberam muito do Vietnã e dos escritos de Ho Chi Minh e do general [Vo Nguyen] Giap, quando o conflito no Sudeste Asiático ainda estava a todo vapor.”

Em contraponto, ele frisa que o pós-guerra foi um momento difícil para o Vietnã, uma vez que a ajuda fornecida pela URSS diminuiu.
“Nesse momento e por longos anos seguintes, o Vietnã foi um dos países mais pobres do mundo, com hiperinflação e produção estagnada.”
Ele afirma que, em 1986, o país adotou um programa de reformas econômicas chamado “Doi Moi”, que significa “renovação” em vietnamita, que tinha um caráter liberalizante.

“Seu objetivo principal era transformar a economia vietnamita de um modelo centralmente planificado, de estilo soviético, para uma economia de mercado com orientação socialista, sob inspiração da abertura econômica implementada na China a partir de 1978, por Deng Xiaoping. As primeiras medidas foram a liberalização dos preços agrícolas, o incentivo para a criação de um setor privado local e o fim do monopólio estatal do comércio exterior.”

Porém ele afirma que “o que pouca gente sabe é que embora o Doi Moi seja esse grande marco, desde 1980 o país já vinha adotando medidas nesse sentido”, que, somadas ao programa, impulsionaram a economia, reduziram a pobreza e estabilizaram a moeda, permitindo empregos de melhor qualidade para as gerações posteriores.
“Nesse ano [1980], as províncias foram permitidas a criar empresas locais controladas por elas. Em 1981, os camponeses já começaram a ser liberados de reter a produção além da cota estimada pelo governo, posteriormente o controle de preços de uma série de produtos foi removido e somente depois que chegamos ao Doi Moi”, afirma.
Neto considera que hoje “o Vietnã é a maior economia emergente do mundo, no sentido de ser a mais requisitada”, e nos últimos anos “tem aumentado incrivelmente o número de parceiros”.
“No fim do ano passado, o Brasil subiu de nível de parceria com o Vietnã, indo para ‘Parceria Estratégica’, o último estágio antes do nível mais profundo, que é ‘Parceria Estratégica Abrangente’, que pertence a apenas 12 países: China, Japão, EUA, Rússia, Índia, Coreia do Sul, Austrália, França, Malásia, Nova Zelândia, Indonésia e Cingapura. Desses 12, somente China Rússia e Índia foram feitos [parceiros estratégicos abrangentes] anteriormente ao mundo que vemos agora, todos os outros nove foram feitos pós-pandemia e já nesse contexto internacional fragmentado e em crise.”
Ele acrescenta que essa “ascensão econômica se deve a vários fatores”, e que hoje “o Vietnã exporta mais e com maior complexidade industrial que o Brasil, mesmo com metade da nossa população e um território seis vezes menor”.

“É um país de renda média-baixa com ambições de se tornar um país de renda alta até 2045. Várias são as vantagens comparativas que eles possuem em relação a outras potências emergentes: salários relativamente baixos, moeda desvalorizada que facilita investimento externo, mão de obra especializada e abundante, posição geográfica estratégica, estabilidade política e demografia vantajosa”, conclui o analista.

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Fonte: sputniknewsbrasil

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