Descrença nos EUA não tem ‘coloração partidária’ e atinge direita e esquerda no Brasil, diz analista


Nesta semana, as reuniões do G20, grupo que reúne as principais economias do mundo, em Nova Deli explicitam a dificuldade dos EUA em angariar apoio do Sul Global às suas investidas geopolíticas.
Declarações conjuntas sobre o conflito ucraniano passaram a incluir formulações como “existem outras visões e avaliações diferentes da situação” e o novo pacote de sanções europeu saiu sem o apoio de países em desenvolvimento, conforme reportou o jornal The New York Times.
© AFP 2023 / MANJUNATH KIRANA secretária do Tesouro dos Estados Unidos, Janet Yellen, fala à mídia durante uma entrevista coletiva no segundo dia da segunda reunião dos ministros de Economia e chefes de Bancos Centrais do G20 sob a presidência do G20 da Índia em Bengaluru, Índia, 23 de fevereiro de 2023

A secretária do Tesouro dos Estados Unidos, Janet Yellen, fala à mídia durante uma entrevista coletiva no segundo dia da segunda reunião dos ministros de Economia e chefes de Bancos Centrais do G20 sob a presidência do G20 da Índia em Bengaluru, Índia, 23 de fevereiro de 2023 - Sputnik Brasil, 1920, 02.03.2023

A secretária do Tesouro dos Estados Unidos, Janet Yellen, fala à mídia durante uma entrevista coletiva no segundo dia da segunda reunião dos ministros de Economia e chefes de Bancos Centrais do G20 sob a presidência do G20 da Índia em Bengaluru, Índia, 23 de fevereiro de 2023
Essa dificuldade, aliada às decisões de países como Brasil, Argentina e Colômbia, de não enviarem armamentos para o teatro de guerra ucraniano, está levando a mídia dos EUA a questionar a origem do ceticismo dos latino-americanos em relação a Washington.
Em artigo publicado na revista norte-americana Foreign Policy, o ex-assessor especial do Departamento de Estado dos EUA, Antonio De Loera-Brust, argumenta que esse ressentimento latino-americano tem suas bases na guerra das Malvinas.
Durante o conflito militar, entre 1982 e 1983, os EUA ofereceram apoio à Grã-Bretanha em detrimento da Argentina, deixando sua parceira sul-americana literalmente a ver navios.
“Se a Argentina, […] que [na época] ajudava ativamente os esforços dos EUA para equipar e treinar ditaduras militares de direita pela região, poderia ser traída pelos EUA em favor de um parceiro europeu, então quem poderia estar seguro?”, questionou De Loera-Brust em seu artigo.
De acordo com o pós-doutorando em história política pela UERJ, João Cláudio Platenik Pitillo, a Guerra das Malvinas foi um ponto de inflexão nas relações hemisféricas.
“Os americanos agiram mal ao fornecer apoio para os ingleses”, relatou o pós-doutorando em história política pela UERJ, João Cláudio Platenik Pitillo, à Sputnik Brasil. “A ditadura argentina teve que pedir ajuda a Fidel Castro, que inclusive prometeu fazer gestões junto aos soviéticos para eventual fornecimento de mísseis.”
A postura dos EUA no tocante ao conflito nas Malvinas repercutiu mal no Brasil, que na ocasião reafirmou o direito argentino sobre as ilhas e manteve neutralidade favorável ao seu parceiro do Sul.
© AP Photo / Eduardo Di Baia / Soldados argentinos no Monumento aos Soldados Caídos durante a Guerra das Malvinas, Argentina, 2 de abril de 2007

Soldados argentinos no Monumento aos Soldados Caídos durante a Guerra das Malvinas, Argentina, 2 de abril de 2007 - Sputnik Brasil, 1920, 02.03.2023

Soldados argentinos no Monumento aos Soldados Caídos durante a Guerra das Malvinas, Argentina, 2 de abril de 2007
Até a ditadura brasileira se posiciona contra os EUA nesse contexto, indicando que não aceitariam ataques contra o território argentino ou à sua capital, Buenos Aires”, notou Pitillo.
O historiador lembra, no entanto, que também havia ressentimento forte em relação à Inglaterra, uma vez que o imperialismo inglês deixou feridas profundas na região.
De acordo com o professor de Relações Internacionais da UERJ, Paulo Velasco, a Guerra das Malvinas representou um golpe à confiabilidade dos latino-americanos em relação à possível ajuda militar dos EUA.
“Do ponto de vista geopolítico e estratégico, faz sentido apontar as Malvinas como um divisor de águas, porque naquele contexto ficou muito evidente que a retórica da solidariedade hemisférica e da segurança e defesa coletiva na prática não funcionava e não funcionaria”, disse Velasco à Sputnik Brasil.
A narrativa de que os países do continente americano deveriam estar unidos em um pacto de defesa coletiva contra potências externas vinha sendo nutrido desde a década de 30 e foi consagrado no Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), em 1947.
“As Malvinas foram uma evidência de que o TIAR não seria usado para favorecer um país latino-americano”, disse Velasco. “Ele servia apenas ao propósito de proteção e defesa conjunta contra uma URSS em favor dos EUA, mas não para proteger um país como a Argentina em um conflito contra uma potência extrarregional.”
Torcedores seguram uma faixa com os dizeres “Malvinas Argentina – fora piratas”, durante as quartas de final da Copa do Mundo de 2014 entre Argentina e Bélgica

Torcedores seguram uma faixa com os dizeres Malvinas Argentina - fora piratas, durante as quartas de final da Copa do Mundo de 2014 entre Argentina e Bélgica - Sputnik Brasil, 1920, 02.03.2023

Torcedores seguram uma faixa com os dizeres “Malvinas Argentina – fora piratas”, durante as quartas de final da Copa do Mundo de 2014 entre Argentina e Bélgica
O especialista acredita, no entanto, que a frustração da região em relação ao seu vizinho do norte é anterior ao conflito argentino e ligada essencialmente à ausência de apoio de Washington ao desenvolvimento econômico.

“A região se sente muito preterida, desprestigiada e deixada de lado pelos EUA, quando comparado à Europa ou à Ásia, que em muitas ocasiões tiveram seu desenvolvimento apoiado por Washington”, considerou Velasco.

A atuação de Washington na América Latina “sempre vem de maneira muito reativa, à exemplo da proposta da Aliança para o Progresso, que foi feita em resposta à Revolução Cubana”.

Frustração consensual

De acordo com Velasco, a frustração histórica com Washington “não tem coloração partidária” e atinge tanto a esquerda, quanto a direita latino-americana.
“A esquerda tem mágoas por fatores como intervencionismo dos EUA e apoio às ditaduras militares”, declarou Velasco. “Mas a direita tem a frustração que decorre do fato de que mesmo quando eles fazem tudo aquilo que Washington espera e agem ‘by the book’ [de acordo com os manuais, em tradução livre], principalmente em termos macroeconômicos, os EUA nunca dão aquilo que essa direita espera.”
Apostando na aliança com o então presidente dos EUA Donald Trump, o governo Bolsonaro aprovou reduções tarifárias para produtos norte-americanos acessarem o mercado brasileiro, mas não foi agraciado com o mesmo tratamento por parte de Washington. A concessão de dispensa de vistos para turistas norte-americanos visitarem o Brasil tampouco foi reciprocada pelos EUA.
© AP Photo / Nelson AntoineApoiador do candidato presidencial Jair Bolsonaro usa uma máscara representando o presidente dos Estados Unidos Donald Trump durante as comemorações na Avenida Paulista, em São Paulo

Apoiador do candidato presidencial Jair Bolsonaro usa uma máscara representando o presidente dos Estados Unidos Donald Trump durante as comemorações na Avenida Paulista, em São Paulo - Sputnik Brasil, 1920, 02.03.2023

Apoiador do candidato presidencial Jair Bolsonaro usa uma máscara representando o presidente dos Estados Unidos Donald Trump durante as comemorações na Avenida Paulista, em São Paulo
“De fato, ganhamos muito pouco de Trump. Se espremermos essa laranja quase não sai nada”, considerou Velasco. “Mas a verdade é que a América Latina nunca esteve nem estará nas prioridades dos EUA, ou ela já está em uma órbita de influência ou por não ter o que oferecer em termos de ganho ou mesmo de desafios e temores.”

Influência da China

A falta de propostas contundentes para o financiamento do desenvolvimento na região favoreceu a penetração de outras potências econômicas, dispostas a se engajar em projetos de médio e longo prazo.
“A presença mais assertiva da China nos últimos anos incomoda os EUA e poderá ser um fator de mudança para dar uma sacudida nessa poeira”, acredita Velasco. “A China vem deslocando a posição dos EUA na região, e hoje é um grande parceiro econômico, financiador e investidor na América Latina.”
No entanto, até agora propostas inovadoras na área de desenvolvimento ainda não foram apresentadas pelos EUA. Iniciativas como a “Cúpula das Américas” angariada por Biden em 2022 geraram desconforto diplomático, pela opção de Washington de excluir diversos países da região do encontro.
© AP Photo / Evan VucciO presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, à esquerda, se encontra com o presidente Joe Biden, dos EUA, durante a Cúpula das Américas, em 9 de junho de 2022, em Los Angeles

O presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, à esquerda, se encontra com o presidente Joe Biden, dos EUA, durante a Cúpula das Américas, em 9 de junho de 2022, em Los Angeles - Sputnik Brasil, 1920, 02.03.2023

O presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, à esquerda, se encontra com o presidente Joe Biden, dos EUA, durante a Cúpula das Américas, em 9 de junho de 2022, em Los Angeles
A única novidade que vejo em termos de agenda é a de cooperação ambiental, que está sendo mobilizada por Biden de maneira lúcida e sedutora”, acredita Velasco. “Esse pode ser um ponto de intersecção um pouco mais robusto e produzir dividendos interessantes para a relação dos EUA com a América Latina.”
Além disso, a agenda ambiental é pouco mobilizada externamente pela China, o que garantiria vantagem diplomática aos EUA.
“A China internamente adota a agenda ambiental, mas não oferece mecanismos de cooperação ambiental externamente. Então justamente aqui podemos ver alguma mudança na postura dos EUA de indiferença e negligência em relação à região”, concluiu Velasco.
Nesta quinta-feira (2), líderes do G20, grupo que reúne as maiores economias do mundo, estão reunidos em Nova Deli para a reunião de ministros das Relações Exteriores. O Brasil está representado pelo chanceler Mauro Vieira, que se reuniu com seu homólogo russo, Sergei Lavrov, no dia 1º de março. Durante a reunião de ministros da economia, em 25 de fevereiro, EUA e Europa tiveram dificuldades de angariar apoio de países em desenvolvimento para aprovar declarações sobre o conflito na Ucrânia.

Fonte: sputniknewsbrasil

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