IGOR GIELOW – A nova onda de ataques da Turquia contra posições curdas no norte da Síria levou a críticas de seus dois maiores aliados, os companheiros de Otan [aliança militar ocidental] Estados Unidos e a Rússia de Vladimir Putin.
Foram 89 alvos atingidos e destruídos, segundo o Ministério da Defesa turco, ao longo do domingo (20). O Departamento de Estados dos EUA pediu uma desescalada na situação militar e o Kremlin, apesar de “reconhecer as preocupações de segurança de Ancara”, requisitou “comedimento” na operação.
Tanto Moscou quanto Washington usaram palavras idênticas: não desejam a “desestabilização do norte da Síria”, algo tão coordenado que nem parece que estão indo às vias militares, Putin diretamente e o americano Joe Biden, indiretamente, nos campos de batalha da Ucrânia.
É o conflito europeu, aliás, que está por trás da renovada assertividade de Recep Tayyip Erdogan. Putin tem uma relação complexa com o misto de aliado e rival, e está pressionado pela retirada de suas forças da franja norte da região Kherson, que havia anexado no sul da Ucrânia.
Os movimentos gerais da guerra têm sugerido a formação de uma estratégia de saída do russo, mas ninguém sabe como. Nesta terça (22), o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, afirmou que Moscou não quer a derrubada do governo em Kiev, voltando atrás no que havia afirmado antes o chanceler russo, Serguei Lavrov.
O próprio Peskov havia dado como “objetivo mínimo” a conquista total da dita República Popular de Donetsk, uma das unidades anexadas no leste ucraniano. A pressão americana para que Kiev aceite negociar tem crescido, o que demanda foco russo na questão -deixando assim uma avenida para Erodgan flexionar seus músculos militares na Síria.
Aliado nominal tanto de Kiev quanto de Moscou, o turco tem interesses cruzados com Putin em diversos teatros, como a guerra que patrocinou entre seu aliado Azerbaijão e a Armênia mostrou em 2020. Não só: Mediterrâneo, mar Negro, Líbia, Síria, a lista é grande.
Em uma conversa com analistas em que a Folha de S.Paulo esteve presente, no fim de outubro, Putin fez deferência ao colega. “Ele é um negociador muito bom, muito duro. Sempre coloca o interesse da Turquia à frente”, disse, rindo discretamente, ao ser questionado sobre o quão difícil era discutir com Erdogan.
Na atual guerra, o turco tem se colocado como moderador em reuniões e ajudou a costurar o acordo para exportação de grãos ucranianos e fertilizantes russos pelo mar Negro.
E os curdos são sua maior obsessão, tanto que Ancara só apoiou a intenção da Suécia e da Finlândia de entrar na Otan para se defender da Rússia porque os europeus prometeram deportar ativistas. A operação deste domingo foi, pelo valor de face, vingança contra um atentado atribuído a curdos em Istambul.
Houve ações pontuais no Curdistão iraquiano também, mostrando a latitude da questão. Os curdos são a maior etnia sem país do mundo, espalhados pelo Oriente Médio. Na Turquia, são oposição ao governo central há décadas, e classificados como terroristas.
Com a guerra civil síria, iniciada em 2011, os curdos viram a oportunidade de reforçar sua autonomia no norte do país árabe, o que conseguiram de fato no ano seguinte. Lutaram ao lado de árabes, armênios e outros na região contra principalmente o Estado Islâmico. Tinham apoio americano.
Após Putin intervir em favor da ditadura de Bashar al-Assad em 2015, estabelecendo uma base aérea no país, os russos passaram a a ser atores centrais no conflito.
Em 2019, os EUA traíram os curdos e deixaram o norte do país, permitindo a entrada de forças turcas –que desejam subjugar a região para evitar apoio e santuário aos curdos da Turquia. Isso levou a um choque entre Ancara e Damasco, resolvido de forma bem instável por uma mediação instável até aqui entre turcos e russos.
A fraqueza momentânea dos russos vem também da mudança discreta no apoio que recebe de seu maior aliado, a China de Xi Jinping. O líder chinês acaba de encontrar-se com Biden, e ambos prometeram retomar laços que estavam praticamente rompidos após a visita da presidente da Câmara dos Representantes dos EUA, Nancy Pelosi, a Taiwan em agosto.
Nesta terça, houve o primeiro encontro entre os chefes da Defesa das duas potências em meses. O americano Lloyd Austin e o chinês Wei Fenghe discutiram laços bilaterais na pitoresca cidade cambodjana de Siem Reap, onde ocorre uma reunião de ministros da área.