Há 25 anos chegava ao fim a Iugoslávia: país ainda existiria hoje se OTAN não tivesse interferido?


Era o fim da Segunda Guerra Mundial quando o projeto de unificação dos povos eslavos liderado por Josip Broz Tito fazia chegar ao fim anos de colonização europeia ocidental na tensa região da Península Balcânica: em 1945, surgia a República Socialista Federativa da Iugoslávia. Após uma batalha de resistência contra a invasão nazista que terminou com a morte de pelo menos 2 milhões de pessoas, o país passou a ser reconhecido internacionalmente, e foi crucial durante a Guerra Fria, quando liderou o bloco dos países não alinhados.
Dejan Mihailovic — especialista em geopolítica e professor da Universidade Politécnica de Monterrey, no México —, que é sérvio, pontuou em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, que apesar da devastação da infraestrutura, a Iugoslávia rapidamente se reergueu, com um modelo de socialismo “autogestionário” que teve seu boom econômico durante a década de 1960.

“Tivemos uma espécie do que experimentou o Brasil com o boom industrial, a liderança no movimento dos não alinhados e o respeito que ganharam a Iugoslávia e Tito, tanto dos soviéticos como dos ocidentais, incluindo os Estados Unidos. No entanto, o modelo começa a se desgastar, Tito morre e poderosos políticos regionais e locais só aguardavam o momento para começar lutas locais pelo poder. Começa uma crise econômica, a taxa de inflação aumenta, a produtividade fica baixa e há ondas de migração por motivos econômicos da Iugoslávia para a Europa Ocidental”, explica.

Imposições do FMI agravaram ainda mais a situação do país, segundo o especialista, onde chegaram a viver 23 milhões de pessoas.
“Tito soube manter sob mão dura, por assim dizer, uma unidade entre diferentes povos, religiões, identidades étnicas e linguísticas, porque havia uma unidade comum de um país próspero e de bem-estar, mas que começou a desmoronar [também por influência ocidental]”, acrescenta.
Após quase 80 dias de bombardeios liderados pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), com a morte de milhares de pessoas e uma verdadeira desestabilização social, chegava ao fim, em 1999, a Iugoslávia.
“Então estamos falando de um evento de caráter destrutivo, porque morreu um país, morreu um projeto histórico de união dos povos eslavos do sul, como é a tradução literal de Iugoslávia, que se gestou precisamente entre 1991 e 1999 […]. Depois, Sérvia e Montenegro foram uma espécie de sobreviventes que se mantiveram unidos [até 2006]. Mas podemos dizer que não era nada possível que a Iugoslávia sobrevivesse a esses grandes desafios que foram, digamos, impostos”, afirma.
Para além das mortes, a força “completamente desmedida” dos militares da OTAN destruiu a região, em um dano que na época foi estipulado em mais de US$ 100 bilhões (R$ 500 bilhões).
“Anos depois, o Kosovo, majoritariamente habitado por albaneses, declara independência, apoiado por União Europeia, Estados Unidos e Vaticano. E até hoje temos esse caso que, para juristas internacionais que velam pelos interesses do Ocidente coletivo, é um assunto sui generis [peculiar]. Mas outros pontos de crise internacional que têm a ver com disputas territoriais, separatismo de todo tipo, merecem um tratamento completamente diferente”, enfatiza.
O secretário-geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), Jens Stoltenberg, durante conferência de imprensa após reunião do Conselho Rússia-OTAN, em Bruxelas, 12 de janeiro de 2022 - Sputnik Brasil, 1920, 05.07.2022

O que é hoje a Iugoslávia?

Atualmente existem seis países na região que era ocupada pela Iugoslávia: Bósnia e Herzegovina, Croácia, Macedônia do Norte, Montenegro, Sérvia e Eslovênia, além do Kosovo, que se declarou independente da Sérvia, mas não tem o reconhecimento da Organização das Nações Unidas (ONU).
“As pressões do exterior e um nacionalismo fora de todo controle foram suficientes para conduzir à desintegração do país, que provocou o nascimento de outros Estados soberanos e independentes no papel”, diz Mihailovic.
O professor compara a história da região sul dos Balcãs ao que ocorreu com a América Latina, colonizada pelos europeus a duras penas até o processo de independência iniciado pelo Haiti em 1810.
“Algo parecido acontece na Europa periférica, colonizada internamente. Em 1804, na Sérvia, há uma primeira insurreição. Em 1815, uma segunda. E, assim, pouco a pouco, a Sérvia se torna independente e é reconhecida como Estado soberano pelo Congresso de Berlim, em 1878. Outras zonas ao redor da Sérvia permanecem como partes de províncias dos impérios, como é o caso da Eslovênia e da Croácia”, diz.
Outro paralelo com a região é feito pelo especialista em geopolítica diante da crise econômica iniciada na década de 1980, quando diversos países decidiram recorrer aos empréstimos do FMI, principalmente os latino-americanos. Na Iugoslávia não foi diferente: juros exorbitantes e “fraudes de organismos financeiros internacionais, sobretudo do fundo, fizeram com que a dívida externa aumentasse desproporcionalmente“.

Quem destruiu a Iugoslávia?

Bem antes de ser destruída, o país cuja principal língua era o servo-croata conviveu com o terrorismo interno e grupos infiltrados orquestrados pela Europa Ocidental, inclusive com um atentado à embaixada iugoslava em Estocolmo, na Suécia, quando o diplomata Vladimir Rolovic foi assassinado.
“É claro que, com o debilitamento do país, esses movimentos independentistas se fortaleceram, e até um certo momento, quando a Iugoslávia praticamente caiu, curiosamente esses nacionalistas exacerbados começaram a promover os princípios do próprio povo, da própria nação, em detrimento de outros”, enfatiza.
Após 25 anos, o professor da Universidade Politécnica de Monterrey considera os governos da região da antiga Iugoslávia “altamente criticáveis por terem um neoliberalismo absolutamente selvagem e com constante empobrecimento das grandes massas”. Além disso, tornaram-se nações “altamente dependentes da intervenção estrangeira” e com políticas “entreguistas em termos de recursos nacionais considerados estratégicos”.
Emmanuel Macron, presidente da França (à esquerda), e Olaf Scholz, chanceler da Alemanha (à direita), participam de reunião com Vjosa Osmani, presidente da autoproclamada república de Kosovo, à margem da Cúpula da Comunidade Política Europeia (CPE, na sigla em inglês), em Bulboaca, Moldávia, 1º de junho de 2023 - Sputnik Brasil, 1920, 28.10.2023

Porque o Kosovo não pode ser considerado independente?

Uma das regiões que faziam parte da República Socialista da Iugoslávia, o Kosovo até hoje vive sob grandes tensões geopolíticas. Apesar de ter declarado independência da Sérvia em 2008, a região em que vivem 1,8 milhão de pessoas não é reconhecida como nação pela ONU. Mesmo assim, Estados Unidos e aliados sequer respeitam a resolução das Nações Unidas, o que provoca ainda mais instabilidades.

“Para que se tenha uma ideia do grau de hipocrisia que reina na zona de relações internacionais, a União Europeia insiste que para que a Sérvia passe a fazer parte desse grupo seleto de países do bloco regional, é preciso reconhecer a independência de uma parte do seu território. Mas temos países europeus que não reconhecem Kosovo como um Estado soberano, como Espanha, Grécia, Chipre e Eslováquia. Nos últimos cinco anos, mais de 20 retiraram seu reconhecimento, que é um ponto a favor da diplomacia da Sérvia”, explica.

De acordo com o especialista, o território ainda conta com a maior base militar norte-americana fora do país, que tem capacidade para até 90 mil soldados.
“Kosovo virou uma espécie de terra de ninguém em relação às leis internacionais. Na região, aterrissam aviões sem absolutamente nenhum controle, [ela] se tornou a capital mundial do tráfico ilegal de armas, do narcotráfico e de transações financeiras ilegais, em uma espécie de paraíso fiscal. Ao mesmo tempo, há um processo de escravidão moderna, sem muitas atividades de grandes potências para deter esse tipo de crime”, finaliza.
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Fonte: sputniknewsbrasil

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