Especialistas questionam eficácia de projeto de castração química para criminosos sexuais


O médico neurologista, sexólogo e psicólogo Sérgio Baumel, doutorando em psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), ressalta à Sputnik Brasil a falta de eficácia comprovada, os inúmeros efeitos colaterais e as implicações éticas da medida, além de apontar um possível preconceito e radicalismo por parte dos congressistas.
Baumel lembra que propostas semelhantes já foram discutidas e rejeitadas no Congresso desde 2002. “Há propostas que já foram colocadas e que já foram rejeitadas no Congresso desde 2002, fora coisas mais antigas e de outros países que a gente tem notícia que já tentaram implantar com resultados muito ruins na história do século passado.”
O neurologista ressalta que a castração química não garante total eficácia. “Isso não é uma coisa com 100% de eficácia. Existe um monte de efeitos colaterais. Muitas vezes essa coisa é voluntária, mas é um voluntário que acaba tendo uma pressão que obviamente não vai ser explicitada, mas é uma pressão.”
A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado aprovou o texto de autoria do senador Styvenson Valentim (Podemos-RN), que determina que reincidentes — nos crimes de estupro, violação sexual mediante fraude e estupro de vulnerável — podem optar por tratamento hormonal para a contenção da libido como alternativa à prisão.
Um dos pontos levantados pelo especialista é a questão ética. Ele comparou a castração química com a lobotomia frontal, prática usada no passado e hoje proibida devido às graves consequências psicológicas e de personalidade. “Essa pessoa tem problemas gravíssimos psicológicos e de personalidade, são ‘criadas’ por essa cirurgia”, lembra.
Ele também menciona que o projeto foi aprovado pelos senadores com maioria expressiva, o que indica “uma postura preconceituosa e radical da parte dos congressistas”.
Paulo Evangelista, professor de psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), ressalta que, do ponto de vista psicológico, a violência sexual não pode ser atribuída a causas orgânicas simples, como os níveis de testosterona.

“A castração química visa reduzir a libido através da administração de hormônios que diminuem a testosterona. No entanto, todos os estudos de psicologia mostram que a violência sexual não é causada por fatores orgânicos como a testosterona. Na verdade, é um problema complexo, com muitos fatores envolvidos”, explica.

Ele destacou a dificuldade de traçar um perfil claro dos abusadores devido às múltiplas facetas do problema.
No contexto brasileiro, ele apontou para a cultura machista e patriarcal como componente importante na perpetuação da violência sexual, classificando-a como uma forma de violência de gênero. “A violência sexual está intimamente ligada a questões de poder e controle sobre o outro, aspectos que não estão relacionados aos níveis de testosterona”, observa.

Como é feita a castração química em indivíduos?

A castração química, ou terapia hormonal para a contenção da libido, envolve a administração de medicamentos que reduzem os níveis de testosterona no corpo. O procedimento pode ser feito com medicação injetável, injeções de medicamentos antiandrogênicos — como acetato de ciproterona ou acetato de medroxiprogesterona —, aplicadas a cada um a três meses.
Além disso, pode ser feito o implante subcutâneo de um dispositivo que libera lentamente um medicamento antiandrogênico, como acetato de leuprorrelina, por seis meses a um ano.
No artigo científico “A castração química como forma de punição para os criminosos sexuais”, Bárbara Bisogno Paz, atual promotora de Justiça do Ministério Público do Rio Grande do Sul, questiona a eficácia da prática, já que a reabilitação de criminosos sexuais envolve fatores além do controle hormonal, como aspectos culturais, educacionais e psicológicos.
Segundo a publicação, apesar de a castração química temporariamente reduzir o desejo sexual e a capacidade de cometer crimes sexuais, estudiosos destacam que, mesmo após a castração física, o desejo sexual pode persistir.
É observado por ela que, embora a castração reduza o desejo sexual, não elimina necessariamente a excitação ou o comportamento sexual. Por exemplo, metade de um grupo de estupradores castrados na Alemanha relatou ainda ser capaz de ter relações sexuais.
Assim, o tratamento hormonal visa inibir a capacidade de ereção, mas as agressões sexuais não dependem exclusivamente dessa capacidade física.

Quais países têm castração química?

Entre os países que já adotam essa medida estão Argentina, Coreia do Sul, Polônia, República Tcheca, Paquistão, Rússia e Estados Unidos, por exemplo.
O presidente do Instituto de Criminalística e Ciências Policiais da América Latina, José Ricardo Bandeira, explica que a prática implementada em 2011 na província de Mendoza, na Argentina, visa reincidentes condenados por estupro de vulnerável ou penetração anal. Ele comenta que “estudos apresentam resultados mistos quanto à redução da reincidência”.
Na Coreia do Sul, a castração foi adotada em 2012 como alternativa à prisão perpétua. “Relatos indicam queda na reincidência, mas faltam dados concretos”, observa Bandeira.
Segundo ele, na Polônia, a medida é válida desde 2009 para reincidentes condenados por estupro de crianças menores de 15 anos. Estudos indicam redução na reincidência, ainda que haja debates sobre a constitucionalidade da medida.
Ele destaca que, na Rússia, a medida é obrigatória desde 2011 para reincidentes em crimes sexuais graves, com estatísticas oficiais indicando “queda na reincidência”.
Por fim, nos EUA, a prática é legal em alguns estados, com “resultados inconsistentes sobre a efetividade na redução da reincidência”.
Baumel questiona a eficácia da medida como forma de prevenção. Segundo ele, apenas metade das vítimas futuras seriam preservadas com a castração química, enquanto a permanência na cadeia poderia ser mais eficaz.

“Por volta de 20% dos criminosos que cometem crimes sexuais voltam a cometer esses mesmos crimes normalmente. E isso cai para a metade, mais ou menos, cai para 10%. O que significa que só metade das vítimas futuras vão ser preservadas.”

Ele também destaca que a justiça punitiva, de maneira geral, não tem se mostrado eficaz. “A justiça punitiva não resolve também muita coisa, porque quando a pessoa sai da cadeia, volta a cometer as coisas.”

“Um dos argumentos de um dos senadores que votou contra é de que, quando a pessoa é violenta, ela comete isso como um ato de violência, não só porque tem uma tara ou algo sexual. Ele vai continuar violento, vai continuar com problemas relacionados a isso”, explica, acrescentando que uma pessoa pode ser estuprada não somente com o uso do órgão sexual, mas também com objetos ou mesmo machucada com armas.

Ele sugere que tratamentos psicológicos poderiam ser mais sensatos, desde que não sejam usados como forma de barganha para reduzir penas. “Você propor um tratamento psicológico como uma alternativa para essa pessoa, sem prometer que ‘se fizer o tratamento psicológico, vai sair mais cedo’. Se a pessoa realmente mostrar que mudou, seria talvez mais sensato.”

O que acontece com um homem castrado quimicamente?

A castração química é um método temporário e reversível usado em agressores sexuais, que requer a administração regular de inibidores hormonais. A principal dificuldade apontada no tratamento por especialistas é a obrigatoriedade da regularidade, já que a falha em seguir o regime pode aumentar a produção de testosterona.
Bandeira explica que os efeitos colaterais incluem “perda de massa óssea, crescimento anormal das glândulas mamárias, depressão, ansiedade e alterações de humor”. Os resultados variam entre indivíduos e, em em alguns casos, os efeitos podem ser irreversíveis, mesmo após a interrupção do tratamento, segundo ele.
O especialista explica que a castração química, ao diminuir os níveis de testosterona, visa reduzir o impulso sexual do indivíduo, o que teoricamente poderia diminuir a reincidência em crimes sexuais.
Segundo ele, “a medida busca proteger potenciais vítimas de novos crimes, especialmente mulheres e crianças”.
Ele acrescenta que a castração química voluntária pode ser uma alternativa à prisão perpétua para reincidentes, facilitando sua reabilitação e reinserção social. “A proposta se baseia na autonomia do indivíduo, permitindo que reincidentes optem pela castração química como forma de reduzir seus impulsos sexuais e evitar novos crimes.”
No entanto, diz, os estudos sobre a efetividade da castração química, na redução da reincidência de crimes sexuais, apresentam resultados inconsistentes. Além disso, Bandeira destaca que “a castração química, mesmo voluntária, pode ser interpretada como forma de punição cruel e desumana, violando direitos humanos básicos, como a integridade física e psicológica”.
Ele alerta que a ênfase na castração química pode desviar a atenção de medidas mais eficazes no combate à violência sexual, como o investimento em educação sexual, o apoio às vítimas e o combate à cultura do machismo. “O tratamento também pode gerar estigmatização e discriminação, dificultando a reinserção social dos indivíduos.”
O projeto de lei ainda seguirá para a Câmara dos Deputados, onde será novamente debatido.
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Fonte: sputniknewsbrasil

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