Década de 70: quando os comerciais de carro cruzavam a linha do machismo


Além dos carros, a publicidade é uma excelente referência sobre a sociedade e seus valores em cada época. Como esquecer as propagandas de cigarro associando o fumo a esportes radicais nos anos 1990? Mas, ainda assim, o que a Ford brasileira fez no começo da década de 1970 pode ser considerado um exagero.

Um livreto produzido pela montadora, encontrado no acervo do Museu da Imprensa Automotiva (Miau), hoje é capaz de fazer enrubescer a face do mais conservador dos consumidores, e faria ferver o sangue do mais pacífico grupo defensor da igualdade de gênero.

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O material publicitário, denominado Guia do Comprador e distribuído nas concessionárias, abordava toda a linha Ford-Willys para 1970, do Galaxie ao Corcel, do Jeep aos caminhões. Porém, para que o livreto não ficasse com tanta cara de propaganda pura e simples, a fabricante decidiu contratar renomados articulistas para que discorressem sobre vários segmentos de mercado, abordando razões e argumentos que ajudassem o cliente, indiretamente, a escolher seus carros.

Nomes de peso, como Joelmir Beting e Expedito Marazzi, entre outros, compuseram o livreto. Mas alguém achou que seria uma boa ideia convidar Ibrahim Sued, colunista social do jornal O Globo, para abordar a linha Galaxie.

Para contextualizar, Ibrahim Sued foi um dos fundadores de um grupo autointitulado Clube dos Cafajestes, formado nos anos 1950 por “playboys” da alta sociedade carioca e famoso por participar de festas e jantares badalados.

No livreto da Ford, o colunista assina o texto Por Que Você Precisa de um Carro de Luxo. E já começa na paulada: “Um automóvel de luxo não é apenas um automóvel. É um instrumento fundamental para a satisfação do homem, principalmente para sua afirmação”.

Ele assegura que “não há mulher no mundo moderno que resista à atração de um carro de luxo. E também não existe uma que não aceite, pelo menos como um elogio, convite para experimentar o conforto que um carro de categoria oferece”.

E, talvez ainda inebriado pelos tempos de Clube dos Cafajestes, dispara: “Aquela menina, a mais bacaninha do bairro, não olhará para os olhos de ninguém: só para os faróis do seu carro, se for um carro de luxo. Portanto, suas chances aumentam muito nas conquistas, se o seu carro não for modesto. O homem modesto faz sempre escolhas modestas”.

Não satisfeito, e talvez pensando em uma mensagem mais direta a quem realmente tinha poder aquisitivo para comprar um Galaxie, o colunista pondera: “Se você é um homem casado, lembre-se: a sua esposa é mulher. Ela pode aceitar o comum, mas prefere, não tenha dúvida, estar confortavelmente num carro de classe. Assim ficam provados o sucesso do marido e a sua atenção para o bem-estar dela. Como consequência disso, ela implicará menos com você”.

E, finalmente, conclui ele que um carro de luxo “aumenta o seu crédito pessoal e impressiona os homens. E principalmente as mulheres”. Poderia ser um caso isolado, um texto apenas no meio de vários. Mas o livreto prossegue e novamente a Ford patrocina uma visão questionável sobre o papel da mulher na sociedade, mesmo que isso tenha ocorrido, é importante frisar, há 50 anos.

Páginas adiante, é a vez de falar da Rural, e quem assina o texto é José Lago, então editor de automobilismo da revista O Cruzeiro. O título é “O Segundo Carro da Família”.

O articulista escreve:

Nessa lógica, apregoa José Lago, um segundo carro para a família se fazia necessário pois, além das razões citadas, por vezes “é preciso correr até o açougue para fazer aquela torta que o marido pediu há uma semana”.

Em resumo, o livreto certamenta levaria a marca hoje a um retumbante “cancelamento” nas redes sociais. Alguma dúvida?

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Fonte: direitonews

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