A primeira avaliação realizada por Autoesporte tem, muito provavelmente, a frase mais emblemática entre as incontáveis sentenças presentes nas incontáveis análises feitas por esta publicação: “O teste começa no comêço”. Assim, desse jeito, com circunflexo mesmo. Não estranhe tal acentuação. A linha foi escrita há 60 anos, mais precisamente em novembro de 1964, e agraciou a edição 01 de Autoesporte. Compõe a avaliação do berlineta Willys Interlagos produzida pelo então editor de testes Euclydes de Brito.
Munido de cronômetro, trena e papeletas, Brito andou no banco do carona do esportivo amarelo, verde e branco de n° 22 guiado por Bird Clemente. Vencedor das Mil Milhas Brasileiras, Clemente foi o primeiro piloto profissional no Brasil a receber salário mensal, pago pela divisão esportiva da Willys Overland. Falecido em outubro de 2023, Bird Clemente também foi mentor de outras lendas do automobilismo nacional, como Emerson Fittipaldi e José Carlos Pace.
O teste foi realizado no autódromo de Interlagos — que, por sinal, foi a inspiração para o nome do Willys, o primeiro esportivo de fabricação nacional. O autódromo foi o cenário escolhido porque a avaliação consistia na primeira de “uma série de testes” que a publicação havia optado por realizar com carros de corrida que o público via com mais frequência nas pistas do país. Escolha melhor que o templo do automobilismo brasileiro não haveria de ter.
Antes de te levarmos às impressões acerca do Interlagos de 60 anos atrás, uma curiosidade sobre Autoesporte. Naqueles tempos, a revista, lançada pela editora Efecê e abraçada pela Globo em 1998, tinha o objetivo de oferecer ampla cobertura do esporte a motor. Justamente por isso, matérias, bem como avaliações, davam ênfase ao universo do automobilismo. Posto isso, de volta a novembro de 1964.
O Willys Interlagos foi comercializado no Brasil entre 1962 e 1965, nas carrocerias cupê, conversível e berlineta — a mesma da unidade de competição que ilustrou nossa edição 01. Era vendido apenas sob encomenda e teve só 822 unidades produzidas. Assim, virou raridade.
A origem do projeto era o Alpine A108, esportivo europeu feito pela então preparadora oficial da Renault que, anos mais tarde, seria comprada e incorporada pela fabricante francesa. A “casca” era do Alpine, mas a mecânica vinha de outro Renault, o Dauphine. Estamos falando do motor Billancourt de 1 litro e do conjunto de suspensões. A versão de competição, testada por Autoesporte, tinha particularidades como um peso menor, 70 cv de potência e freios dianteiros a disco.
“Jogando em casa”, o desempenho do Willys Interlagos foi digno de loa por parte do redator, que rasgou elogios para a performance. Além de ser o primeiro esportivo com fabricação nacional, o pequeno berlineta — uma espécie de sedã encurtado de duas portas — foi o primeiro modelo feito no Brasil com carroceria de fibra de vidro e resina de poliestireno, tendência que se tornaria comum entre vários “foras-de-série” nacionais. E tem mais: a configuração cabrio carregava o título de primeiro conversível feito aqui.
O Willys testado na edição de estreia de nossa revista, contudo, vinha com um tempero adicional. Alguns, para falar a verdade. Enquanto o Interlagos de produção pesava entre 660 kg e 690 kg, a depender da versão, a configuração de pista ceifava gordurinhas e tinha apenas 540 kg.
Por ter motor posicionado na traseira, inclusive montado atrás do eixo, o esportivo tinha distribuição de peso também traseira. Por falar em motor, o do Interlagos era o Billancourt 1.0 de quatro cilindros e oito válvulas com refrigeração líquida, válvulas no cabeçote, taxa de compressão de 10,25:1 e carburador de corpo duplo. Os 70 cv parecem pouco, mas eram uma potência específica excelente para a época. O câmbio do “canarinho” era manual de quatro marchas e a tração, traseira. As trocas, de acordo com a avaliação, eram um tanto “duras”. Enquanto o modelo de produção vinha com freios a tambor nas quatro rodas, a pérola de Autoesporte 1 flutuava pelas pistas com discos na dianteira.
As dimensões eram muito pequenas para os padrões atuais: 3,78 metros de comprimento, 1,45 m de largura, 1,14 m de altura e 2,10 m de entre-eixos. Esse balanço curto evidencia a pegada esportiva do carro, por deixá-lo mais ágil e com maior sensação de controle nas curvas. Não à toa, o texto original dizia:
“O pique inicial do Interlagos 22 é notável”. E o redator ainda acrescentou: “Não existe carro de sua categoria que possa competir com ele dentro de suas características originais. Exceto os de maior deslocamento e, assim mesmo, com alguma dificuldade”.
Segundo aferição feita por Autoesporte em 1964, o Willys Interlagos foi de zero a 100 km/h em 12 segundos, bom número para a época. Sua velocidade máxima? 180 km/h. A mecânica era herança do Dauphine. A suspensão independente, a mesma do Renault, foi ajustada para otimizar a dirigibilidade do esportivo. Todavia, ele ainda era afeito a uma tocada menos agressiva.
Embora os freios tenham segurado bem o ímpeto do veículo (100 km/h a zero em 36 m), o autor reclamou do diâmetro dos tambores traseiros. E não gostou da posição dos pedais, que obrigavam o condutor a “ginásticas incríveis para executar a indispensável operação” de punta-taco.
Um esportivo de fabricação nacional em sua versão oficial de pista, com tração traseira e direção encantadoramente desmultiplicada… Bons tempos. Quão incrível seria guiar um carro dessa estirpe nos dias atuais? Tivemos esse privilégio!
Nossa breve experiência de dirigir o Willys Interlagos 60 anos depois ocorreu na sede da Fundação Lia Maria Aguiar, em Campos do Jordão (SP), onde o carro é preservado. Pudemos rodar por alguns metros com o clássico, mas parece que valeu por uma corrida de mil milhas inteira. O habitáculo pequeno, sem frescuras e com a fibra de vidro exposta, além dos bancos baixos, sem cintos de segurança nem encostos de cabeça, intimida qualquer um. O acesso à cabine, quase colada no chão, demanda contorcionismo, para não travar as costas nem danificar alguma peça.
Não há freio de estacionamento. O manete do túnel central serve para ligar a corrente da bateria. Com as rodas traseiras presas em um calço, giro a chave e o motor Billancourt desperta com um ronco estridente, diferente de qualquer 1.0 atual. Cheio de artimanhas, o Willys exige que se mantenha o pé no freio e no acelerador ao mesmo tempo para não morrer. Mas não acelere demais, senão o carro “afoga”.
Após três tentativas frustradas, enfim saio da imobilidade. A embreagem é alta e o câmbio, com trambulador por varão, duro e impreciso. Não há indicador de posição das marchas, e descubro que a ré fica à esquerda e para trás ao tentar mudar da primeira para a segunda e sentir um arranhão forte. Perdoo a falta de informação quando olho o pomo com o emblema do Interlagos no topo. Puro estilo!
O acelerador tem respostas diretas e a direção é mais leve do que eu imaginava. Engato a segunda e começo a gostar da coisa. O freio, com tambores em vez de discos dianteiros, é fundo e borrachudo, mas aprendo a lidar com ele. Com um retrovisor interno pequeno e um externo minúsculo, e só do lado esquerdo, quase não há visibilidade traseira.
O Willys Interlagos de corrida não tinha ar-condicionado, é óbvio, e termino a voltinha suado — em boa parte, porém, por causa da tensão. Saio do canarinho respeitando ainda mais os ases do passado, que se arriscavam em um carro bruto e arisco a 150 km/h no circuito original de Interlagos. Sem personagens como Bird Clemente, a Willys Overland e o próprio Interlagos, não estaríamos aqui, 60 anos depois!
Gol, Fusca e Kombi provam que Volkswagen é fábrica de campeões
Quer ter acesso a conteúdos exclusivos da Autoesporte? É só clicar aqui para acessar a revista digital.
Fonte: direitonews