Via @portalmigalhas | Após longa explanação por parte do ministro Rogerio Schietti Cruz sobre direito ao silêncio, a 6ª turma do STJ reconheceu a falta de provas e absolveu um homem, jovem e pardo, acusado de tráfico de drogas.
Para o ministro, relator do caso, o TJ/SP incorreu em injustiças epistêmicas de diversos tipos, e houve violação art. 186 do CPP, ao condenar o homem com base apenas na palavra dos policiais, e considerar que o uso do direito ao silêncio por parte do acusado foi mera tentativa de se livrar da condenação.
O caso
O homem teria sido avistado por policiais em região de venda de drogas e se abaixou, atitude que foi considerada suspeita. Após abordagem, os policiais relataram que houve confissão informal – a qual não foi confirmada em juízo, ou sequer em sede policial.
Em seu voto, o relator destacou que o processo envolve tanto o instituto da confissão, como também o direito ao silêncio, a inversão do ônus da prova e injustiças epistêmicas.
Direito ao silêncio
Rogerio Schietti destacou o que direito ao silêncio é garantia constitucional, e quem quer que se veja envolvido em procedimento investigativo da Justiça Criminal tem o direito de se manter em silêncio e não colaborar.
Para o ministro, “o fato de a CF/88 ter disposto no art. 5, inciso 63, que o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada assistência da família e de advogado, não deixa dúvidas quanto à não recepção do art. 198 do CPP quando diz que o silêncio do acusado, ainda que não importe em confissão, poderá constituir elemento para formação do convencimento do juiz”.
Segundo o relator, quando a CF reconhece o direito ao silêncio, restam excluídas do ordenamento regras que autorizem situações em que o exercício de um direito gere prejuízo ao cidadão. “Ter direito ao silêncio significa poder exercê-lo, sem que por isso seja punido.”
“Tanto ficar em silêncio constitui um direito que pesa sobre o Estado a obrigação de explicá-lo a toda e qualquer pessoa no exato momento de sua prisão. (…) Ele não pode ser prejudicado quando o Estado deixa de satisfazer a condição que ele, Estado, deve cumprir para que esteja legitimado a exercer o poder de punir.”
No caso dos autos, o ministro pontuou que houve absolvição em 1ª instância por deficiência probatória. Mas, revisto o caso no TJ/SP, foi acolhida a apelação.
Erro judicial
Schietti apontou trecho da linha argumentativa do Tribunal Estadual que, para ele, é contraditório. Disse o Tribunal que a negativa do réu em juízo quanto à confissão foi estratégia para evitar a condenação. Veja o trecho do TJ:
“Fosse verdadeira a frágil negativa judicial, certamente o réu a teria apresentado perante a autoridade policial, quando, entretanto, valeu-se do direito constitucional ao silêncio. Comportamento que, se por um lado não pode prejudicá-lo, por outro permite afirmar que a simplória negativa é mera tentativa de se livrar da condenação.”
“Vejam a contradição na própria formulação desta frase”, disse o ministro aos pares na sessão.
Para o relator, houve violação direta ao art. 186 do CPP – o qual trata do direito do acusado de permanecer calado em interrogatório. “O raciocínio enviesado que concedeu inequívoco valor de verdade à palavra dos policiais teve o silêncio do réu em sede policial como ponto de partida.”
“A instância de 2º grau erroneamente preencheu o silêncio do réu com palavras que ele pode nunca ter enunciado, já que do ponto de vista processual probatório, tem-se apenas o que os policiais houveram escutado de modo informal, ainda no local do fato.”
“Decidiu o tribunal estadual que, se de um lado havia razões para crer que o réu mentia em juízo, de outro estavam os desembargadores autorizados a acreditar que os policiais é que traziam relatos correspondentes à realidade”, disse o relator.
Para Schietti, a narrativa toma como verídica situação em que o investigado ofereceu aos policiais, “desembaraçadamente”, a verdade dos fatos. “Com a devida vênia, essa sim é uma hipótese implausível.”
O ministro destacou que, se de fato o homem confirmou que traficava por passar por dificuldades financeiras, é ingenuidade supor que tenha feito em cenário livre da mais injusta pressão.
Injustiças epistêmicas
Rogerio Schietti destinou parte de seu voto a reflexões relativas às chamadas injustiças epistêmicas, citando estudiosos, e concluiu que foi o que ocorreu por parte do TJ/SP.
Ele destacou que sociedades marcadas por preconceitos identitários – como é o da sociedade brasileira – acabam por apresentar trocas comunicativas injustas. E citou como exemplo o cometimento de injustiça epistêmica testemunhal, quando um ouvinte reduz a credibilidade do relato oferecido por um falante por ter contra ele, ainda que não de forma consciente e deliberada, preconceitos identitários.
Assim, seriam vítimas sistemáticas negros em sociedades racistas, mulheres e LGBTQIA+ em sociedades machistas, pessoas com deficiência em sociedades capacitistas etc. Nessa perspectiva, o ministro citou também o racismo estrutural, que permeia a sociedade brasileira.
“O Tribunal incorreu em injustiças epistêmicas de diversos tipos, seja por excesso de credibilidade conferido ao testemunho dos policiais, seja a injustiça epistêmica cometida contra o réu ao lhe conferirem credibilidade justamente quando menos teve oportunidade de atuar como sujeito de direitos. A confissão informal, se é que existiu, não tem valor como prova, no sentido processual, configurando-se equivocada a postura de aceitar, acriticamente, que o investigado fala a verdade em cenário carente das mínimas condições para atuar livre e espontaneamente.”
Escassez probatória
O ministro pontuou que, se se pretende aproveitar a palavra do policial, é necessário respaldo probatório que vá além do silêncio do investigado.
“Ante a manifesta escassez probatória, que, em violação ao art. 186 do CPP, se extraiu do silêncio do acusado inferências que a lei não autoriza extrair, impõe-se reconhecer que o standard probatório próprio do processo penal para a condenação não foi superado no presente caso.”
Schietti concluiu dizendo que, tal como o tema do reconhecimento de pessoas pediu reflexão acerca dos erros que o Judiciário cometeu no passado, “o tema do silêncio também requer nossa atenta autocrítica”.
No caso concreto, o relator absolveu o recorrente da prática do crime. O ministro foi acompanhado pelos demais membros da turma, por unanimidade.
- Processo: REsp 2.037.491
Leia a íntegra do voto.