Via @cnnbrasil | A criação do chamado juiz de garantias divide opiniões no mundo jurídico. Aprovada pelo Congresso, mas suspensa há mais de três anos pelo Supremo Tribunal Federal (STF), a figura é criticada por associações de magistrados e tribunais.
Advogados defendem a implementação da medida e consideram um avanço em prol da imparcialidade da Justiça e do aprimoramento do controle da legalidade nas investigações.
O caso está na pauta do STF desta quarta-feira (14). São quatro ações que contestam a criação do juiz de garantias. A figura foi implementada pelo pacote anticrime, sancionado pelo então presidente Jair Bolsonaro (PL) em dezembro de 2019.
A aplicação foi suspensa em janeiro de 2020 por decisão do ministro Luiz Fux, então vice-presidente da Corte.
O juiz de garantias é um magistrado que atuaria só na fase de instrução do processo e seria responsável por fiscalizar a legalidade da investigação criminal, autorizando medidas como prisões, quebras de sigilo e mandados de busca e apreensão. Tem a função de garantir os direitos individuais dos investigados.
Se houver o recebimento da denúncia — quando os investigados passam à condição de réu —, o caso fica a cargo de outro juiz, que atuará no julgamento propriamente dito.
Para suspender a aplicação da figura, Fux citou duas razões. Segundo ele, a proposta de lei deveria ter partido do Poder Judiciário, já que afeta o funcionamento da Justiça no país e a lei foi aprovada sem a previsão do impacto orçamentário dessa implementação de dois juízes por processo.
Desde a suspensão, ministros do STF se manifestaram sobre a necessidade de uma definição do tema. Em março, Ricardo Lewandowski (já aposentado) cobrou celeridade na análise e disse que a implantação é “absolutamente fundamental”. Na sequência, a ministra Rosa Weber concordou, afirmando que o plenário já deveria ter julgado o caso.
No começo de maio, o ministro Gilmar Mendes disse que “está faltando” a Corte decidir sobre o juiz de garantias. “É muito grave para a Justiça esse tipo de vexame”, pontuou, ao fazer referência à atuação da Operação Lava Jato.
“Impacto colossal”
Em manifestação enviada ao STF, o Conselho de Presidentes dos Tribunais de Justiça do Brasil (Consepre) afirmou que eventual implementação do juiz de garantias “impacta de forma colossal a estrutura administrativa e financeira dos Tribunais”. O órgão considerou também ser “inviável” a adoção da figura.
O Consepre enviou posicionamentos dos 27 Tribunais de Justiça do país. A maioria deles citou preocupação com o impacto orçamentário da medida.
O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) disse que a implantação do juiz de garantias no interior do estado demandaria uma “reorganização sem precedentes da Justiça Criminal, com elevadíssimo custo financeiro”.
A Corte disse que há diferenças entre o juiz de garantias e o Dipo (Departamento de Inquéritos Policiais da Capital), órgão do tribunal que funciona na cidade de São Paulo e centraliza procedimentos da fase das investigações policiais, até o oferecimento da denúncia.
Na manifestação, o presidente do TJ-SP, desembargador Ricardo Mair Anafe, lista algumas providências para a implantação do juiz das garantias. Uma delas, é a acumulação de trabalho por magistrados, para os casos de comarcas com um única vara (110 no estado) e com só uma vara criminal (24).
Conforme Anafe, a lei sugere, para essas situações, um sistema de rodízio, “porém sem especificar como ele operaria em concreto”.
“No Estado de São Paulo, isso só poderia ser efetivado mediante elevadíssimo custo financeiro, mercê da necessidade de remunerar o serviço extraordinário prestado pelos magistrados em regime de acumulação, mediante pagamento de diárias (quando houvesse necessidade de deslocamento entre Comarcas) ou compensações (quando houvesse necessidade de um juiz atuar, em regime de acumulação, em expedientes de outra unidade da mesma Comarca)”, declarou.
Na ação que ingressaram no STF contra o juiz de garantias, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) disseram que a lei que criou a figura não previu nenhuma regra de transição.
As entidades argumentam que o “Poder Judiciário brasileiro não possui estrutura suficiente” para a “implementação e funcionamento regular” do instrumento.
As associações também dizem que a norma violou a Constituição, porque o Congresso teria ido além de suas competências para propor leis gerais. Nesse entendimento, a proposta de um juiz de garantias deveria ter partido de projeto de iniciativa do Judiciário.
“No âmbito da Justiça dos Estados caberá ao legislador ordinário estadual, por meio de iniciativa do Tribunal de Justiça, elaborar a lei que vier a criar, efetivamente, a figura do Juiz das Garantias. Da mesma forma, no âmbito da Justiça Federal caberá ao legislador federal, por meio de lei da iniciativa do STJ, elaborar a lei que vier a criar, efetivamente, a figura do Juiz das Garantias”, afirmam.
Outro ponto questionado diz respeito à necessidade de ampliar o número de magistrados, para dar conta da implantação do juiz de garantias. Segundo a ação, a figura “pressupõe a existência de pelo menos 2 magistrados em cada Comarca, para o seu regular funcionamento, de sorte a exigir dos Estados da Federação a ampliação dos quadros de juízes”.
A possível adoção de um “rodízio” na atuação dos magistrados, segundo AMB e Ajufe, implicaria em “aumento de gastos, porque pressupõe deslocamento, com pagamento de verbas assessórias para permitir o exercício da jurisdição fora da residência da comarca”.
Avanço
O advogado criminalista Antonio Pedro Melchior, sócio-fundador do escritório Melchior Advogados, disse à CNN que considera o juiz das garantias o “avanço mais significativo do direito processual brasileiro no último século”.
Para o especialista, a implantação da figura “atende a uma necessidade de maior qualidade na prestação de justiça no país”, além de reforçar a imparcialidade e aprimorar o controle da legalidade da investigação criminal.
Melchior afirmou esperar que os argumentos pela inconstitucionalidade do juiz de garantias sejam derrotados no julgamento pelo STF. Ele vê espaço para a Corte estabelecer critérios sobre como a efetivação deverá ocorrer.
“As recomendações judiciais, em que pese as justas objeções, têm sido realizadas quando a situação requer a prática de medidas específicas de órgãos ou autoridades. É natural que as reformas estruturais, como todas as políticas públicas, ocorram em etapas”, declarou.
O advogado criminalista Leonardo Magalhães Avelar concorda com essa análise. Para ele, uma abordagem inicial do perfil do STF permite uma expectativa de que a Corte se posicione a favor do instrumento, “com alguma discussão sobre os parâmetros operacionais de aplicabilidade da medida”.
“Não me parece que os argumentos relacionados às dificuldades operacionais, administrativas ou financeiras sejam um impeditivo para a implementação do Juiz das Garantias”, afirmou, completando que a digitalização de processos ajuda a viabilizar a efetivação da figura.
Thiago Nicolai, criminalista e sócio do DSA Advogados, afirmou que a aplicação do juiz de garantias pode se dar progressivamente, iniciando seu funcionamento em grandes capitais. “Essa possibilidade, de aplicação progressiva ou pontual conforme a possibilidade, certamente será aventada pelos ministros no julgamento”, afirmou.
O advogado Luiz Mario Guerra, Procurador do Estado de Pernambuco e sócio do Urbano Vitalino Advogados, disse que o juiz de garantias não é uma “invencionice” brasileira e que há instrumentos semelhantes “na maioria dos países democráticos do mundo”.
O especialista declarou que argumentos que apontam dificuldades operacionais ou financeira contra o juiz de garantias são de ordem administrativa, e não jurídica.
“O Judiciário pode resolver esse problema de diversas maneiras, agora não se pode dizer que o juiz de garantias seja bom ou ruim se o Judiciário não tem condições de implementar ou não”, declarou.
Ações
As ações que serão julgadas no STF foram propostas pelos partidos PSL (que, após fusão com o DEM, passou a se chamar União Brasil), Podemos e Cidadania, além de entidades representativas de carreiras jurídicas: Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp).
Os argumentos passam pelo questionamento sobre a competência da União para tratar da matéria e pelo prazo estabelecido em lei para aplicação do juiz de garantias. As ações também pontuam que a medida traz gastos obrigatórios ao Judiciário, sem estudo de impacto financeiro.
A aprovação do juiz de garantias guarda embates da tramitação do pacote anticrime. A proposta leva o nome do conjunto de proposições apresentadas pelo então ministro da Justiça Sergio Moro.
O texto aprovado, no entanto, é bem diferente do que havia sido proposto pelo ex-juiz da Lava Jato, e traz contribuições feitas por uma comissão de especialistas no Congresso coordenada pelo ministro do STF Alexandre de Moraes.
Moro sempre foi contra a figura do juiz de garantias, mas a medida foi sancionada por Jair Bolsonaro, em um aceno ao Centrão, contrariando a opinião do então ministro.
Lucas Mendes
Fonte: www.cnnbrasil.com.br