O Rolls-Royce Spectre inaugura uma nova fase da marca e, ao mesmo tempo, revisita uma citação de Sir Charles Rolls, cofundador da empresa. Em 1904, Rolls elogiou um carro elétrico que avaliou destacando o silêncio de rodagem e a ausência de maus odores ou vibrações. Era o oposto dos motores a combustão: ruidosos, sujos e desequilibrados a ponto de chacoalhar toda a carroceria dos automóveis que começavam a ocupar a paisagem urbana.
Eis que, finalmente, aquelas palavras chegaram à empresa centenária, que prometeu eletrificar toda a sua linha até 2030. E o Spectre é o primeiro dessa linhagem movida a bateria.
Por dentro ou por fora, o Spectre não dá nenhuma dica visual de que é um carro “verde”, no sentido ecológico da palavra, claro. Não se encontra a palavra “electric”, nem “EV” ou outro adorno que faça menção ao futuro. O supercupê não faz nenhuma concessão de estilo à pompa tradicional de um Rolls. E isso é ótimo.
Em outras palavras, ele capricha no uso de cromo e ostenta uma grade de aço inox na dianteira — que seria desnecessária pela falta de combustão, porém é composta de aletas cuidadosamente polidas e decoradas com 22 pontos de luzes de LED. Nem a icônica Spirit of Ecstasy, a estatueta que decora o capô, passou ilesa.
Os traços foram atenuados — há menos ranhuras, o que, ao vivo, traz a sensação de uma forma líquida. Segundo a BMW, digo, a Rolls-Royce, o Spectre é o mais aerodinâmico de todos, com cx de mero 0,26. Como referência, os carros de produção que se destacam ficam entre 0,22 e 0,24, mas são esportivos ou pequenos.
E de pequeno o Spectre não tem nada. São 5,48 metros de comprimento, 2,14 m de largura (incluindo os espelhos) e 3,2 m de entre-eixos. As fotos não fazem jus ao tamanho desse supercupê nem ajudam a perceber que as gigantescas rodas têm 23 polegadas e que as portas têm 1,5 m. Aliás, note que as maçanetas ficam abaixo da coluna A do carro, pois as portas se abrem “ao contrário”.
Como silêncio de rodagem é um mantra na Rolls-Royce, os dois motores elétricos coadunam com as diretrizes de seus fundadores, mas, ao mesmo tempo, trazem mais desafios aos engenheiros. A eletrificação, na verdade, ressalta sons que até então eram “camuflados” por motores ICE. Ou seja, o ruído de vento, pneus, molas, amortecedores, asfalto e imperfeições do solo torna-se evidente dentro da cabine.
Para combater os adversários da rodagem silenciosa, a marca usou 170 kg de materiais fonoabsorventes, como mantas acústicas, selantes, espumas e soldas extras, o que contribuiu para a massa total de 2.890 kg. A própria estrutura de alumínio recebeu fixações adicionais para evitar torções indevidas (que causariam eventuais rangidos).
De acordo com a fabricante, essas providências deixaram a carroceria do Spectre 30% mais rígida do que o restante da linha. Atrás do volante, e em dúvida se o carro está ou não ligado antes de engatar o D, a direção praticamente não oferece resistência ao giro — uma criança conseguiria mover as rodas. O eixo traseiro esterçante ajuda nas manobras: o diâmetro de giro é de 12,7 m, o equivalente ao de uma Chevrolet S10.
A aceleração também merece um parágrafo. É muito fácil dosar o acelerador para rodar com suavidade. Com tocada leve, você dirige e praticamente não sente oscilações na carroceria ao fazer curvas. É como se o carro flutuasse, imune ao asfalto ruim e suas imperfeições. Dentro da Rolls, esse comportamento é conhecido por “magic carpet ride”, ou rodagem em carpete mágico. Porém, ao pressionar rapidamente o pedal, o Spectre acelera como um monstro ensandecido.
Pudera. São inacreditáveis 91,8 kgfm, o que é uma força insana. Os dois motores elétricos (um em cada eixo) geram a potência combinada de 592 cv. Considerando a massa do carro, a relação peso/potência do Spectre é de 4,88 kg/cv — um pouco acima de modelos esportivos. De acordo com a ficha técnica, são 4,5 segundos no 0 a 100 km/h. Porém, ainda que o desempenho seja notável, esse não é o foco de um Rolls-Royce. Seu maior diferencial está nas sutilezas no nível de acabamento extraordinário, e isso se observa nos detalhes.
Um dos truques para uma rodagem tão suave está na eletrônica. São quase 20 sensores apenas na direção, nos freios, no acelerador e na suspensão que trabalham em conjunto para “entender” as condições do ambiente. Eles medem as ondulações da via e adaptam as reações do carro para reduzir os distúrbios de frequências causadas pelos defeitos na superfície. Em uma valeta, por exemplo, um motor elétrico desconecta até a barra de rolagem, aumentando o curso da suspensão para compensar o degrau na pista.
A tecnologia também permite que o carro simule a rodagem dos motores V12 e o “coasting”. Ou seja, o motorista pode optar pela operação um-pedal, em que praticamente não se usa freio. Ao tirar o pé do acelerador, o gerador utiliza a inércia para recuperar energia, o que acaba freando o veículo. Com esse recurso desligado, o Spectre roda livre quando o acelerador é aliviado, pela inércia do movimento.
Praticamente não se encontra plástico na cabine, o tradicional ABS. O contato desse polímero com o corpo dos ocupantes beira o sacrilégio. Então, apenas couro legítimo, madeira e outros materiais nobres visíveis nos maiores painéis. Os bois são criados na altitude, em fazenda da própria Rolls, pois em locais elevados não há tanta incidência de insetos. Também não há cercas nessas propriedades. Tudo isso para não marcar a pele do animal e gerar “defeitos” no produto final.
O Spectre também estreia um novo padrão de LEDs no interior. Portas e teto são forrados de pontos de luz (quase 6 mil), simulando um céu estrelado. O resultado é um efeito elegante, ainda que a descrição sugira uma decoração kitsch.
Por ser um cupê, são duas portas gigantes de 1,5 m de largura. Estendem-se quase até os bancos traseiros e, pelo formato da carroceria, a coluna B foi suprimida. É a maior porta já utilizada nos carros da marca. Mesmo feita de alumínio, é tão pesada que conta com dois pontos de ancoragem, além da trava. No entanto, não requer esforço dos usuários, pois seu funcionamento é elétrico, ao toque de um botão. Quando o motorista se acomoda no assento, basta pressionar o pedal de freio e a porta é recolhida automaticamente.
Por causa dos novos tempos, o quadro de instrumentos trocou os relógios analógicos por uma tela de TFT. Ao lado, uma central multimídia ocupa toda a porção do painel. Ambos são inéditos na Rolls–Royce nesse nível de integração. Provavelmente, o que “o cliente não vê” é igual ao que o Grupo BMW utiliza nos demais modelos (a Rolls pertence aos alemães desde 1998), mas a interface é exclusiva. Tem mostradores maiores e mais simples. A tela não exibe tantos dados e possibilidades de configuração simultaneamente, o que poderia ser um “ruído” para um usuário típico.
Para contrastar, os grossos carpetes de lã de carneiro feitos à mão estão presentes no assoalho. São quase 6 centímetros de espessura e uma maciez digna de travesseiro chique.
Ainda sobre hábitos dos donos, a bateria de 102 kWh proporciona autonomia de 530 km no ciclo WLTP. No critério adotado no Brasil, esse número deve ficar em 450 km. Porém, é suficiente para atender ao cliente médio de um Rolls, que roda pouco por ano — a média é de 5.100 km anuais.
Concebido e projetado como um elétrico, o Spectre sucede ao Phantom Coupé com as qualidades esperadas por seu público-alvo — um super-rico que gosta de dirigir ele próprio seu iate terrestre. A Rolls tinha uma missão árdua com o Spectre: fazer com que ninguém sentisse falta do motor V12. Eu, que não sou cliente, nem lembrei. E isso que a experiência de dirigir um Phantom, em 2005, continua fresquinha em minha memória.
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Fonte: direitonews