No manual dos árbitros, “atitude temerária” é a situação em que o jogador comete uma falta intencional — e, no caso do novo Lamborghini Temerario, o cartão vermelho foi para o Huracan. O antigo esportivo sai de cena após 11 anos e leva junto o lendário motor V10. No lugar, a Lamborghini estreia não apenas um esportivo como também um motor V8. É daqueles carros paradoxais, que usam a mais avançada tecnologia para entregar “mais por menos”.
Que grande responsabilidade vem atrelada à missão de substituir um superesportivo que vendeu quase 30 mil unidades em dez anos! Naturalmente, muito receio permeou o escritório da Lamborghini em Sant’Agata Bolognese, na região central da Itália — especialmente nas salas do CEO, Stephan Winkelmann, e do diretor de desenvolvimento, Rouven Mohr.
Ainda que a marca italiana viva tempos áureos, batendo recorde de lucro ao movimentar 836 milhões de euros em 2024 — R$ 5,2 bilhões na conversão —, ainda existem interrogações sobre a evolução dos superesportivos num futuro com privação de motores a combustão. Naturalmente, modelos híbridos surgem como alternativa.
Considerando que quem compra um Lamborghini preza pela vibração e pelo som de seu brinquedo (um dos três atributos mais apreciados pelos donos, segundo a marca), o futuro eletrificado é visto com certa apreensão. Por isso, os engenheiros desenvolveram um motor V8 totalmente novo, com duplo turbocompressor, produzido artesanalmente na fábrica italiana.
Enquanto a versão mais potente do esportivo anterior, o Huracan Evo, chegava a respeitáveis 640 cv de potência, o Temerario desenvolve escandalosos 800 cv, sem considerar o auxílio elétrico. O que se perde em cilindrada é mais do que compensado pela admissão induzida dos dois turbos, que trabalham na pressão máxima de 2,5 bar. De tal forma, a potência específica nesse esportivo é de 200 cv/litro.
Somando-se aos motores elétricos dianteiros, o rendimento total é de 920 cv, o que permite superar esportivos híbridos históricos como Porsche 918 Spyder (887 cv)e McLaren P1 (916 cv). Só não bate a conterrânea Ferrari SF90 (1.000 cv), mas chega próximo.
Além de contar com a ajuda dos turbocompressores, o motor pode chegar a insanas 10.250 rpm (na função launch control) com auxílio das bielas de titânio, do virabrequim plano e de um novo tipo de balanço nas válvulas. Este último recurso é o mesmo utilizado pelas equipes de Fórmula 1 para encurtar o tempo de abertura e aumentar o levantamento dos pistões.
No eixo dianteiro, dois motores elétricos trabalham para gerar 299 cv. E não acaba por aí: há um terceiro motor elétrico montado entre o V8 e a caixa automática de dupla embreagem. Este tem a missão de preencher com até 30 kgfm de torque os breves momentos das passagens de marchas. Em outras palavras, serve para mitigar o turbo lag. Quer dizer que estamos na presença de um carro 4×4, mas sem um diferencial para unir as rodas dianteiras às traseiras.
Uma observação sobre sua dramática carroceria: há menos vincos do que na do Revuelto, o que, segundo Mitja Borkert, diretor de design da Lamborghini, serve para lhe conferir um visual mais “clean”. Também tem menos arestas que os antecessores Gallardo e Huracan, não deixando de exibir as proporções e formas distintas da marca do touro enraivecido. É o respeito por uma tradição estilística que remonta aos anos 1960 — ou seja, praticamente desde que Ferruccio Lamborghini iniciou a concretização de seu sonho.
Eu me preparei para dirigir o Temerario no circuito do Estoril, em Portugal, onde decorreram os primeiros testes dinâmicos. O esportivo ainda estava em processo de homologação e não poderia rodar nas ruas. Acessar a cabine é mais fácil do que no Huracan, pois a soleira da porta é mais estreita. Diz a Lamborghini que ocupantes de até 2 metros de altura podem se acomodar com conforto, algo que este que vos escreve, do alto de seus 1,80 m, não pode comprovar.
Os bancos estão mais largos e confortáveis, com apoios laterais reforçados e aspecto mais esportivo. O material? Fibra de carbono, lógico. Toda a cabine remete a um caça, ainda mais porque os botões se multiplicaram — e, a partir de agora, não são mais compartilhados com a Audi, característica que incomodava os donos de Huracan.
Tendência irreversível nesse segmento, o interior foi dominado por carbono, alumínio e Alcantara. Telas são cada vez mais presentes, como o painel de instrumentos de 12,3’’ e a central multimídia vertical de 8,4’’.
Os recursos de telemetria são muito avançados para que o motorista vista com perfeição a pele de um piloto. Há um software para controlar tempos por volta e até dados para “melhoria” da pilotagem. Está confirmado o pacote Alleggerita, cerca de 25 kg mais leve, que deixará as voltas nos autódromos ainda mais rápidas ao adicionar spoiler traseiro mais elevado, difusores, soleiras e para-choques de fibra de carbono. Um dos benefícios desse pacote é a melhoria do desempenho aerodinâmico, especialmente na traseira.
Na face do volante há quatro seletores que possibilitam ao motorista conservar as duas mãos bem fixas no aro. Quando subi a moldura vermelha do botão de partida dos motores, em modo Cittá, o Temerario despertou sem o habitual ronco tenebroso. Nesse programa, apenas os propulsores elétricos são iniciados.
Aliás, não acordar os vizinhos é uma das vantagens desse híbrido plug-in que, depois de finalizar uma viagem, pode voltar à cidade em modo “pantufas”. Isso porque a bateria de 3,8 kWh proporciona até 10 km de autonomia elétrica e pode ser carregada em meia hora (em estações de 7,3 kW). É um conjunto pequeno para evitar o acréscimo excessivo de peso. Ainda assim, o Temerario ostenta 250 kg a mais que seu antecessor.
Pisando fundo no acelerador, vai de zero a 100 km/h em 2,9 segundos. As mudanças de marchas são rápidas e relativamente suaves, a depender do modo de condução. À minha frente, o conta-giros se aproximava da linha vermelha com frequência. É quase redundante dizer que um carro com esses predicados deixa os ocupantes colados ao banco, mesmo que não tenha sido possível alcançar os 343 km/h de velocidade máxima em Estoril (o máximo que vi a instrumentação atingir foi 307 km/h).
Para conter a animosidade da macchina, a Lamborghini instalou discos carbo-cerâmicos de 410 mm x 38 mm na dianteira e de 380 mm x 32 mm na traseira. Há um avançado sistema eletrônico “by-wire”, sem ligação física entre o pedal e as pinças, que permite que a sensação do pé do motorista no pedal nunca mude.
Perguntei ao instrutor que tipo de correções poderia fazer para melhorar minhas voltas. Ele sugeriu que não me preocupasse em parar com tudo antes das curvas, ou até que prolongasse as frenagens. Tinha razão, pois poupei alguns décimos de segundo nas voltas seguintes.
Mesmo com a distribuição de peso mais incidente sobre a traseira (44%/56%), a vetorização efetuada pelos motores elétricos dianteiros é crucial para a eficácia do Temerario.
O “cérebro” do sistema aplica o torque de forma seletiva em cada roda para permitir que o carro gire sobre o próprio eixo mais facilmente em curvas, mitigando a tendência de alargar a trajetória. O comportamento dinâmico parece afiado e preciso em condições extremas.
Esse mesmo cérebro ainda propicia três níveis de deslizamento: no primeiro, o eixo não tem autorização para se soltar; no segundo, o esportivo pode “abanar sua cauda”; no terceiro, é como aprender a andar de bicicleta sem as rodinhas de apoio. Para acionar uma condução ainda mais permissiva, só em modo Corsa ESC Off, que desliga o controle de estabilidade.
Nas saídas de escape, não tendo o mítico V10 para ecoar, segue um efeito acústico empoderado. Porém, se o capacete abafou meus tímpanos dentro do carro, pelo lado de fora deu para sentir saudade do antigo V10.
Sobre a suspensão, não há grandes considerações a fazer nessa primeira experiência dinâmica. O asfalto do autódromo do Estoril não tem quaisquer irregularidades, além de que os modos Cittá e Strada nem foram utilizados.
Já no caso da direção, mesmo levando em conta que os programas usados fossem mais esportivos, o Temerario se mostrou mais leve que o esperado: o volante tem desmultiplicação considerável, com 2,5 voltas entre batentes, a mesma de um Volkswagen Golf. Questionei um engenheiro sobre essa característica e ele respondeu que esse carro será frequentemente usado por seus donos no dia a dia.
Em suma, o novo Temerario usa muitos recursos do irmão Revuelto. O esportivo combina motor V8 biturbo e três propulsores elétricos, sendo dois deles dianteiros. É certo que a sonoridade fica longe de igualar o estridente V10, e que o modelo ainda engordou em comparação com o antecessor. No entanto, com a capacidade de proporcionar experiências de pilotagem como essa, muitos proprietários devem deixar o saudosismo de lado. Outra questão é o preço temerário: o Huracan era oferecido pelo equivalente a R$ 1,5 milhão, mas o novo esportivo será posicionado em R$ 2 milhões.
Quer ter acesso a conteúdos exclusivos da Autoesporte? É só clicar aqui para acessar a revista digital.
Fonte: direitonews