São seis da manhã e a confusão é grande no gabinete de credenciamento do Kennedy Space Center. Desde que Elon Musk passou a se envolver com as atividades no restritíssimo espaço, o movimento no local passou a ser muito mais intenso, com o lançamento de pelo menos um foguete de quatro em quatro dias.
É por isso que entre os preparativos de pré-lançamento e a desmontagem de cada megaoperação existe muita gente envolvida entrando e saindo da “zona X”.
Nesse caso, no entanto, o projétil não chegará à órbita terrestre e ficará em um nível de altitude zero. A Bugatti quer apenas demonstrar do que é capaz o Chiron.
Os 1.600 cv e 440 km/h que constam no seu cartão de visita fazem com que o hipercarro de Molsheim seja o automóvel mais rápido na face da Terra, mas como essas velocidades não podem propriamente ser testadas em uma estrada qualquer, encontro-me aqui na fila para o balcão do escritório de credenciamento da base espacial de Cabo Canaveral, no estado da Flórida (EUA).
Passaporte, visto, carteira de motorista, uma foto de identificação rápida e finalmente recebo o título oficial de amigo de gente distinta como Buzz Aldrin e Neil Armstrong, que também tiveram de assinar as mesmas papeladas quando iniciaram sua pioneira viagem à Lua partindo daqui — talvez sem a necessidade de passar por esse purgatório de espera no credenciamento antes de chegar ao “paraíso”…
Mas, ao contrário desses ilustres “colegas”, nesse caso não vou me dirigir à base de lançamento; ficarei na pista localizada nas suas imediações. O nome é bastante banal: Instalação de Lançamento e Aterrissagem.
Situa-se dentro de um aeroporto gerido pela Space Florida depois de ter assinado, em 2015, um contrato de exploração válido por 30 anos. Hoje o lugar é usado pela Nasa e por algumas companhias privadas.
Ao entrar no ônibus, atravessar o portão e iniciar o trajeto passamos em frente ao Edifício de Montagem de Veículos, onde foram construídos os foguetes Saturno, para pousar na superfície do nosso satélite, e o chamado “rastejador” (crawler, em inglês), uma espécie de trator com esteiras tipo tanque de guerra que leva os foguetes à base de lançamento.
O edifício — situado em uma zona com microclima especial — tem portas enormes (nada menos que 139 metros) e um volume de cerca de 3,7 milhões de metros cúbicos, o que o torna um dos maiores pavilhões do mundo.
Tão imponente quanto o “rastejador”: duas gigantescas esteiras, cada uma com aproximadamente 40 m, movidas pela força de 16 motores elétricos com um total de 4.480 kW (ou 6.091 cv) — o que lhes confere o título de maiores “máquinas agrícolas” do planeta, pesando, juntas, mais de 5.500 toneladas.
O maior, o mais forte, o mais potente… isso está prestes a se tornar uma enxurrada de superlativos, mas isso já era esperado por estarmos na base espacial mais famosa do mundo. E prestes a dirigir um carro que se enquadra com perfeição nesse cenário, uma vez que até o modelo de entrada (bom, é maneira de dizer) tem motor 8.0 de 16 cilindros, com 1.500 cv de potência e 163,3 kgfm de torque, e é avaliado em cerca de 3 milhões de euros.
Mais superlativo que isso? Também há, no caso, essa versão Super Sport (facilmente reconhecível pela dramática seção traseira que estica seu comprimento em 23 cm) que temos em mãos, com 1.600 cv e etiqueta de preço de 3,8 milhões de euros.
No final da curta viagem, nosso veículo para à sombra do enorme ônibus espacial — outro recordista no Kennedy Space Center —, que consegue a proeza de tornar os números do Chiron muito pouco dramáticos.
Ao ser lançado para órbita com hidrogênio líquido e uma mistura de perclorato de amônio e alumínio, é empurrado com uma força de 30,16 meganewtons e uma aceleração que chega aos 3 g (qualquer coisa como 30 metros por segundo ao quadrado).
Mas existe uma razão para estarmos nessa base que serviu para 78 pousos do ônibus espacial, localizada na zona pantanosa da Flórida, e não em uma pista de corridas comum.
Seus 91 metros de largura e uma espessura de quase 1 metro (precisa aguentar o crawler e o ônibus espacial), além de um comprimento de 4,6 km, a tornam uma das dez maiores pistas de decolagem do mundo… e o cenário para uma viagem alucinante a bordo do Chiron Super Sport.
Uma missão de semelhante calibre só pode ser cumprida com a indumentária adequada. Mesmo não sendo um traje de astronauta, é um macacão de piloto de automóveis feito sob medida que, uma vez vestido, levo comigo para o briefing como o que precede qualquer missão espacial. Ok, um pouco mais curto e simples, porque tudo se resume a segurar o volante com firmeza e acelerar de forma alucinada até 400 km/h.
“Não se preocupe, porque temos o corpo de bombeiros e o médico de emergência em alerta, assim como os mergulhadores”, procura me tranquilizar Johny Bommer, diretor da agência JBPG, que organiza esse “Teste Aerodinâmico em Reta” para a Bugatti. “Mergulhadores?”, estranhei.
“Sim, porque se levantar voo e sair da pista, pode afundar rapidamente em uma das muitas lagoas repletas de crocodilos que temos aqui em volta.” Bom saber…
Pierre-Henri Raphanel (ex-piloto profissional que teve várias participações em Le Mans e uma breve passagem pela F1 no final dos anos 1980) também ajuda a normalizar meu ritmo cardíaco com algumas frases tranquilizantes, enquanto o tecido anti-inflamável do macacão começa lentamente a colar em minhas costas, produto da ansiedade e do clima abafado da primavera.
Raphanel parece lidar bem com a ideia de servir de copiloto, certamente o mais destemido do mundo. Ajuda o fato de ter acompanhado milhares de test drives, primeiro no Veyron e depois no Chiron, e familiarizado bilionários de todo o mundo com essa joia sobre rodas antes de a comprarem para suas exclusivas coleções.
E aqui está ele sentado ao meu lado, o único piloto da história da F1 que participou apenas do GP de Mônaco em toda a sua carreira (não se qualificou para os restantes na temporada de 1988, mas, com os carros da Larrousse ou da Coloni, já extintos, era difícil fazer melhor).
A volta de “aquecimento” é feita a 240 km/h, uma velocidade que, em uma estrada pública nos EUA, daria direito a uma boa temporada com alimentação e hospedagem de graça, mas que o Chiron Super Sport alcança de forma quase indolente.
O passo seguinte, chegar a 320 km/h, serve mais para elevar a confiança do que propriamente constituir um desafio.
É certo que, a essa velocidade, um avião comercial levantará o nariz apontando para o céu, mas o Chiron mantém tanta firmeza no contato com o asfalto que provavelmente até daria para retirar as mãos do volante. Como isso não é um teste de sistemas de condução autônoma, não o farei. Mas só por isso!
Quanto mais a agulha analógica do velocímetro sobe, mais minha pulsação se acalma. Raphanel parece tranquilo. Em parte, porque ele está prestes a se livrar dessa ingrata tarefa: na aceleração até o objetivo da missão, 400 km/h, ele estará fora do carro, assistindo ao momento transcendente.
É certo que nenhum dinheiro no mundo paga esse risco, mas não é menos verdade que o bater da porta quando Raphanel sai do carro faz com que minha autoconfiança desabe como um castelo de cartas reduzido a escombros pela explosão de lançamento de um foguete da SpaceX.
É a hora das dúvidas. Ainda faltam alguns itens da lista para serem checados antes da viagem e a contagem regressiva já começou. O Chiron foi desenvolvido para chegar a extremos, mas não basta pisar no acelerador. Os responsáveis por essa iniciativa estão bem cientes da sua responsabilidade, então não negligenciam medidas de segurança.
Começa com uma segunda chave, chocantemente sem adornos, que insiro à esquerda do meu banco e rodo uma vez para ativar o modo de alta velocidade. Enquanto a eletrônica verifica, novamente, todos os sistemas, inclusive a pressão dos pneus, vejo no espelho como o enorme spoiler se achata atrás de mim e sinto o carro se aproximando alguns milímetros do asfalto.
Tudo a postos para a conclusão dos meus 15 minutos de fama (contando a preparação, a execução… e a recuperação do ritmo cardíaco).
É preciso lembrar que resistir à tentação de tocar o pedal do freio ou conseguir não mover o volante mais que alguns graus deveria ser possível até chegar aos 440 km/h (Andy Wallace, outro famoso piloto de testes da Bugatti, estabeleceu o recorde de 490 km/h nesse carro, o que lhe valeu um registro no Livro de Recordes do Guinness).
Tal como num bom filme de suspense, na primeira tentativa alcanço 375 km/h, porque um alarme do sensor de pressão dos pneus desperta e corta a propulsão. Na segunda vez, a pressão no tanque de combustível deixa de ser suficiente.
Embora ainda haja mais de 50 litros de gasolina sendo sugados nas minhas costas, mesmo que o motor W16 engula 100 litros em oito minutos de aceleração máxima, devem ser suficientes para chegar ao final da pista de decolagem.
Números impressionantes, mas incomparáveis aos do ônibus espacial, que faz desaparecer cerca de 100 toneladas de combustível em dois minutos e atinge velocidade de 27 mil km/h em oito minutos.
Mas, como prevenir é melhor do que remediar, o software mais uma vez obriga o Chiron a entrar em modo de emergência, que limita a velocidade a 380 km/h. Nunca pensei em falar algo assim, mas é uma velocidade muito baixa.
Houston, do we have a problem? “Não, não temos”, responde Raphanel, que assume o controle da missão e leva o carro para reabastecer. E assim como acontece tantas vezes com foguetes aqui no Centro Espacial Kennedy, meu lançamento foi apenas adiado e a contagem regressiva foi reiniciada após o almoço. O drama sobe de tom.
Um almoço leve, claro, para não devolver a refeição já processada ao para-brisas do Chiron em plena aceleração balística.
Os sensores aprovam, o controlador da missão estica o polegar e, na minha cabeça, “Rocket Man”, de Elton John, só deixa de ser audível quando o cilindro 16 vocifera no meu pescoço. O Chiron Super Sport dispara sobre o cimento imperturbável e não se distrai nem com a grossa faixa branca na pista, nem com o vento lateral que sibila cada vez com mais decibéis por entre os poucos arbustos.
Os quatro turbos sopram 60 mil litros de ar por minuto para os cilindros, o virabrequim gira a mais de 7.000 rpm e a cada segundo quase 100 metros de pista desaparecem sob as quatro rodas. No entanto, Elton John está certo quando canta “and i think it´s gonna be a long long time”.
Porque mesmo que eu nunca tenha dirigido tão depressa, meio minuto parece aqui uma eternidade para processar minhas sensações: zero a 100 km/h em 2,4 segundos, 200 km/h após 5,8 s e acima dos 300 km/h ao fim de 12,1 s para, finalmente, chegar aos 400 km/h depois de 28,6 s. Como dizia antes, uma eternidade vivida em modo acelerado.
“Não olhe o velocímetro”, martela Raphanel na minha cabeça antes do “lançamento”, “olhe sempre a linha branca no asfalto à sua direita”.
Só que quanto mais perto estamos de um objetivo, maior é a tentação de olhar para baixo — 380, 390, 395 e ainda algumas centenas de metros até a bandeira. Coragem para continuar a pisar, respirar fundo mais uma vez… e finalmente os 400 km/h são alcançados.
Ato contínuo, agitam-se as bandeiras para a esquerda e a direita, marcando o ponto de frenagem — uma das fases mais perigosas da “missão”.
Nada de pânico e força nos freios para não sair da trajetória e aguentar o impacto tal como os astronautas quando o ônibus espacial usa todos os recursos ao seu alcance (inclusive um para-quedas horizontal) para conseguir parar. Não estranha que sejam submetidos a treinos de meses para isso.
Gradualmente, aumento a pressão no pedal, o que faz com que a energia massiva se transforme em calor, levando os discos de carbono do tamanho de uma pizza grande a brilhar entre as rodas, enquanto a asa traseira entra em ação para ajudar a concluir a missão com sucesso.
Mesmo semicerrados, os olhos vislumbram o velocímetro, que caiu até a zona de conforto… 380, 360, 340, 320, 300 km/h e, depois dessa provação, até esse piloto não profissional volta a se sentir confortável ao volante.
Ainda bem que a velocidade máxima de cada viagem é guardada no pequeno visor adicional no console central para que seja possível confirmar que não foi apenas um sonho: os 400 km/h estão lá, bem marcados.
Enquanto o Bugatti arrefece após esse passeio infernal, o piloto improvisado demora um pouco mais para fazer algo parecido. Estamos em uma “pista ativa” e o álcool é proibido por aqui, por isso nada de festejos no pódio com chuva de champanhe.
Mas aquela pancadinha nas costas, em sinal de aceitação no restrito “clube dos 400” (o grupo imaginário e elitista dos motoristas que já alcançaram 400 km/h), vale muito mais que uns goles apressados no gargalo de um Magnum 2.5, o champanhe mais caro do mundo.
Além disso, quando Raphanel me sussurra, com certo ar conspiratório, que esse clube não admitiu mais de duas ou três dúzias de pessoas (entre clientes da Bugatti e um punhado de engenheiros), meu peito começa a inchar e as costas recuperam sua verticalidade. Nesse contexto, dirige-se devagar na F1.
Claro que é preciso ter muito mais coragem para ser amarrado a um tubo gigante cheio de combustível. Porém, se pensarmos que só os EUA já levaram (e trouxeram de volta) mais de 300 astronautas ao espaço, esse meu “clube dos 400” é definitivamente mais exclusivo. Espero que tenham ideia de com quem estão lidando na próxima vez que eu tiver de passar pelo escritório de credenciamento…
Fonte: direitonews