STF: recusar transfusão de sangue por motivos religiosos é constitucional? Saiba mais sobre o caso


As audiências começaram há duas semanas. O julgamento diz respeito a dois recursos extraordinários (RE): o Tema 952 (RE 979.742), que trata da liberdade religiosa justificar o custeio de tratamento médico indisponível na rede pública, e o Tema 1.069 (RE 1.212.272), sobre o direito de autodeterminação de Testemunhas de Jeová de se submeterem a tratamento médico realizado sem transfusão de sangue, em razão de sua consciência religiosa.
Em 2023, a Procuradoria-Geral da República (PGR) publicou parecer defendendo o direito de indivíduos decidirem livremente exercer a liberdade religiosa e recusar transfusão de sangue em procedimentos médicos. Porém, a PGR refutou a ideia de obrigação do poder público de arcar com tratamento alternativo nesses casos específicos.
Em 2021, a Organização Mundial de Saúde (OMS) publicou uma diretriz mundial em caráter de urgência de implementar o programa de gerenciamento do sangue do próprio paciente (PBM, sigla em inglês para “Patient Blood Management”), em razão de suas vantagens clínicas e econômicas, com redução da mortalidade, infecções e tempo de internação.
Judicialmente, hospitais públicos no Brasil têm sido condenados a aceitar o tratamento PBM no pré, intra e pós-operatório. O PBM utiliza eritropoietina, a hemodiluição normovolêmica aguda usando o sangue do próprio paciente.

Mas, afinal, a recusa é constitucional?

O advogado especialista em direito da saúde Elton Fernandes explicou para a Sputnik Brasil que recusar transfusão de sangue é, sim, compatível com as leis brasileiras.

“Se o ser humano é um fim em si mesmo, cada um decide soberanamente os rumos de sua vida, desde que isso não implique mal a outrem. Da mesma forma que ninguém é obrigado a tratar um câncer, ninguém pode ser obrigado a receber uma transfusão de sangue. […] não há razão para que a sociedade tutele tais condutas”, argumentou.

O advogado ressaltou que seguidores da religião dos Testemunhas de Jeová não são suicidas.
“Eles desejam mecanismos alternativos de tratamento que podem ser empregados para que os riscos da transfusão sejam mitigados. Isso é compatível com a Constituição e, consequentemente, com o sistema público de saúde”, defendeu.
O chefe do Serviço de Clínica Médica do Hospital Federal dos Servidores do Estado (HFSE), o endocrinologista Sylvio Provenzano, também conversou com a Sputnik Brasil sobre o assunto. Ele defendeu que, independentemente das questões de ordem religiosa, o tratamento alternativo à transfusão deve ser sempre prioridade, sobretudo doenças crônicas em que a anemia faz parte do quadro clínico.
Provenzano destacou que o sistema de gerenciamento do sangue que protege contra transfusões preconizado pela OMS é altamente recomendável.

“Através desse tratamento [PBM], [é possível] reduzir a necessidade de transfusões, até porque por mais que hoje o sangue a ser transfundido seja exaustivamente testado contra uma série de doenças, é verdade que sempre existe risco no momento de transfusão”, comentou ele.

O médico ressaltou que grandes instituições pelo país vêm implementando as medidas orientadas pela OMS, tanto em relação aos equipamentos necessários como também de capacitação junto às equipes.

“Normalmente utiliza-se um hormônio, que é a eritropoetina. Porém, a eritropoetina, que é utilizada para estimular a medula óssea a produzir as hemácias, os glóbulos vermelhos, demanda um tempo de ação em torno de duas semanas para que os efeitos surjam”, explicou.

Provenzano, que trabalhou por quase 30 anos em emergências de hospitais públicos no Rio de Janeiro, explicou que existem situações em que a transfusão de sangue é a única alternativa para salvar vidas.

“Acidentes automobilísticos, atropelamentos, acidentes por projétil de arma de fogo, por arma branca: todos provocam processos hemorrágicos agudos, e o paciente chega praticamente exsanguinado na emergência. Não temos outra alternativa para salvar essas vidas que não seja com transfusão.”

O médico também citou a situação vivida por ele há alguns anos em que atendeu uma criança que sofreu um acidente automobilístico, e a família era Testemunha de Jeová e não autorizou a transfusão de sangue do filho.

“Tivemos que pedir auxílio inclusive da polícia para assegurar o direito da transfusão que, a bem da verdade, salvou a vida daquela criança naquele momento. Não é desrespeitar a religião, é que às vezes situações médicas se impõem a determinada crença ou princípio religioso, e a gente tem que ter em mente que o juramento do médico é, sempre que puder, salvar vidas, sempre aliviar o sofrimento”, salientou.

“Imagina o sofrimento de uma criança com trauma abdominal, uma ruptura de baço, que perdeu uma quantidade imensa de sangue dentro da cavidade abdominal, pálida como cera, precisando tomar uma bolsa de sangue, ou duas, ou três, para preservar sua vida”, ponderou.
De acordo com Fernandes, no caso de transfusões envolvendo crianças, o Estado deveria intervir.
“Assim como nenhum pai ou mãe pode dispor da sexualidade de seus filhos, eles também não podem dispor da vida deles. O exercício do poder familiar, nesses casos, não é absoluto.”

Há insegurança jurídica para os profissionais de saúde?

Para Fernandes, esse é possivelmente o principal problema atual em relação à recusa de pacientes à transfusão de sangue.

“Os médicos têm medo de serem responsabilizados criminalmente por omissão de socorro e até homicídio. O médico faz um cálculo rápido: entre ser processado criminalmente por homicídio ou responder pelo crime de constrangimento ilegal, cuja pena é mínima, os profissionais sempre preferirão o crime menos grave. Honestamente, é isso que um advogado orientaria um médico a fazer, à luz do atual estado das decisões judiciais. Por isso, essa definição do STJ [Superior Tribunal de Justiça] é extremamente importante”, opinou o advogado.

Ele chamou a atenção ainda para o fato de que os que rejeitam a transfusão de sangue são uma minoria social e que o impacto econômico e social de uma decisão favorável do STF ao pleito das Testemunhas de Jeová será ínfimo.

“Faz bem conviver com aqueles que pensam tão diferente da maioria e faz bem que respeitemos a singularidade deles”, concluiu.

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Fonte: sputniknewsbrasil

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