Rio de Janeiro — Após ser exibida na competição oficial do 75º Festival de Cannes, a cópia restaurada em 4k de Deus e o Diabo na Terra do Sol, obra máxima de Glauber Rocha e um dos filmes mais importantes do Cinema Novo, emocionou o público carioca, que lotou a maior sala do Estação NET Botafogo na noite desse simbólico 7 de Setembro, nos 200 anos da Independência do Brasil.
Antes da exibição do filme, uma breve conversa reuniu parte da equipe de restauro. Participaram do bate-papo a cineasta e pesquisadora Paloma Rocha, filha de Glauber e diretora do projeto; o produtor e cineasta Lino Meireles; o cineasta Walter Lima Júnior, que fez assistência de direção em 1964; o fotógrafo Luís Abramo, diretor de fotografia da cópia renovada; o ator Othon Bastos, que interpretou Corisco na trama; e o jovem Gregory Baltz, diretor do curta Uma Carta para Glauber. O encontro foi conduzido pelo jornalista Fabrício Duque, editor do site Vertentes do Cinema.
A restauração foi um trabalho hercúleo, feito a partir de áudios, negativos e positivos originais, preservados pela Cinemateca Brasileira, e envolveu, nos últimos três anos, profissionais altamente qualificados, arregimentados por Paloma. “Fizemos um trabalho minucioso. A minha direção foi no sentido de escolher a melhor equipe de cinema que conheço hoje, com habilidades técnicas e muita sensibilidade, e também de manter a integridade do filme. É muito difícil decidir se tira ou se deixa o grão em determinadas cenas, por exemplo”, pontuou.
Lino Meireles – entusiasta da ideia de digitalizar os clássicos do cinema nacional para que os novos espectadores os conheçam com a qualidade que os filmes merecem – destacou as coincidências que cercaram todo o projeto. “Um dia descobri que a filha do Glauber morava em Brasília. Logo depois nos conhecemos por causa de um filme meu, Candangos. Do nosso encontro, surgiu a ideia de restaurar um filme de seu pai. Pensei logo em Câncer, Claro, Cabeças Cortadas, dos anos 1970, mas Paloma me surpreendeu, convidando para trabalhar em Deus e o Diabo na Terra do Sol. Glauber mostrou esse filme ao redor do mundo há 58 anos, e agora nós vamos refazer esse caminho com essa história tão brasileira”, disse o produtor.
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Paloma dedicou esta e todas as futuras sessões à avó paterna, Lúcia Rocha (1919-2014), que cozinhou para o elenco e costurou – ela mesma – alguns figurinos de Deus e o Diabo, o seu longa-metragem favorito de Glauber. “Foi ela quem teve a ideia e a vontade de preservar a obra do filho. Sem ela, talvez a gente não estivesse aqui esta noite. Fundou o Tempo Glauber e passou vários anos da sua vida dedicada a reunir a sua obra até eu chegar. Em 2003, começamos a restaurar as películas, na época ainda em HD, e a documentação de cerca de 22 mil páginas e 4 mil fotografias. Depois de um processo longo e contínuo, o Tempo Glauber Digital está prestes a dar acesso ao público a 224 projetos”, rememorou a herdeira do cineasta.
Othon Bastos contou que ele não era a primeira escolha de Glauber para dar corpo ao cangaceiro cujo rosto está estampado no famoso cartaz de Deus e o Diabo. “Já éramos amigos, mas o Corisco seria interpretado por outro conterrâneo nosso, Adriano Lisboa, que era um homem alto e fortíssimo, e deveria travar um duelo final com o Antônio das Mortes, que seria interpretado por Maurício do Valle, igualmente grande e forte. Glauber me procurou para substituí-lo, e pontuei que deveríamos fazer um cangaceiro diferente, brechtiano, que se guiasse pela razão, pois sou pequeno. Gostaria que todos que filmaram comigo estivessem aqui ao meu lado. Yoná (Magalhães), Maurício (do Valle), Sonia (dos Humildes), Geraldo (Del Rey), Lídio (Silva)…”, salientou. Aos 89 anos, Othon é o único ator vivo do elenco.
Na plateia do Estação NET Botafogo, um dos cinemas de resistência da cidade, havia alguns rostos conhecidos no meio cultural, como os dos filhos do compositor-cineasta Sérgio Ricardo: Neville de Almeida, Marina Lutfi e João Gurgel – eles fizeram um pocket show de encerramento do evento. O cantor, compositor e ator Jards Macalé, autor da trilha sonora de O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1969), outra pérola de Glauber Rocha, também abrilhantou o evento. Macalé era um garoto de 21 anos quando o filme foi lançado e estava acomodado numa poltrona do Cine Ópera, naquele julho de 1964.
“Ah, me emocionei agora!”, exultou assim que as luzes acenderam, em entrevista ao Metrópoles. “Prestei atenção numa coisa que nunca tinha reparado: a valorização do silêncio nesse filme. Tem tiro, tem grito, tem música incidental, mas os silêncios são tão profundos… e o som melhorou muito na cópia em 4k. Sumiu o chiado, aquela coisa embrulhada da época. E a imagem está espetacular. Lamento pelo Brasil, que hoje me parece ainda pior, com a fome e o fanatismo religioso em alta. Deus e o Diabo na Terra do Sol é um filme de amanhã”, sentenciou Macalé.