Via @consultor_juridico | Na opinião do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, já não há como discutir a necessidade de regulação das plataformas digitais. A questão agora é decidir quando e como elas serão reguladas. Segundo ele, o modelo adotado pela União Europeia, a “regulação autorregulada”, que está presente no Projeto de Lei 2.630/2020, é uma boa alternativa para o Brasil.
O ministro fez essa avaliação nesta terça-feira (27/6), durante um dos paineis de debate do XI Fórum Jurídico de Lisboa.
Barroso afirmou que a internet ampliou o acesso ao conhecimento, às informações e ao espaço público, mas também possibilitou desinformação, informações falsas, discursos de ódio, destruição de reputações, teorias conspiratórias e maior difusão de mentiras.
“Algoritmo é uma palavra de que não tínhamos conhecimento até outro dia, mas vai se tornando o conceito mais importante do nosso tempo. As redes sociais modificaram de maneira significativa e impactante a escala da comunicação social.”
Ele destacou que o debate sobre regulação das redes sociais está diretamente relacionado a dois grandes pilares do Direito Constitucional, que são a limitação do poder e a proteção dos direitos fundamentais (dados pessoais, inclusão digital e liberdade cognitiva).
“Agora nós estamos tendo de transportar esses conceitos tradicionais para a revolução digital, o mundo virtual. A limitação do poder no Direito Constitucional tradicional é a limitação do poder estatal. Nós estamos lidando com a necessidade de limitar um imenso poder privado que se criou com as mídias sociais, já que elas criaram um espaço público imenso, global, mas que é gerido privadamente.”
A regulação das plataformas, segundo ele, é importante para disciplinar os comportamentos coordenados inautênticos. O ministro citou a ampliação artificial da mentira, a desinformação por meio de robôs e perfis falsos, conteúdos ilícitos, e a ação de provocadores contratados que, na avaliação dele, é o maior problema da internet atualmente. Para Barroso, o mundo se radicalizou a ponto de as pessoas não conseguirem mais compartilhar o senso comum.
“Se um indivíduo coloca em seu Facebook, por ignorância ou cretinice, que querosene é bom para Covid-19, e seus 20 seguidores acreditarem, nós temos um problema, mas de determinado tamanho. Mas, se essa notícia se espalha por centenas de milhares de pessoas, nós teremos um problema de saúde pública. É preciso ter controle sobre a amplificação artificial de uma mentira, de uma desinformação, e isso é possível de ser feito sem controle de conteúdo, basta verificar o comportamento atípico na rede de crescimento de uma determinada manifestação.”
Do ponto de vista econômico, a regulação das plataformas, segundo Barroso, vai gerar uma tributação justa das empresas, proteger direitos autorais e impedir a dominação de mercados. E vai também garantir o direito à privacidade. “As plataformas sabem o nome da gente, onde moramos, quanto ganhamos. Mas sabem também qual foi o último filme a que assisti, o último livro que comprei, a última pesquisa que fiz e a doença com que estou preocupado agora. É importante regular para que essas questões não sejam utilizadas indevidamente.”
O ministro observou que há dois modelos de regulação das plataformas puros no mundo, a regulação estatal e a autorregulação. No entanto, ele citou como modelo ideal para o Brasil o que foi adotado pela União Europeia, a “regulação autorregulada”. “Tem-se o arcabouço geral principiológico estatal e o dever de as plataformas terem termos de uso especificando quais são os conteúdos que ela não vai aceitar. Idealmente, no sistema de regulação autorregulada, as próprias plataformas implementam essa legislação.”
Barroso defendeu que o Brasil tenha um órgão regulador independente e não governamental, que faça o monitoramento das redes, das recomendações e, eventualmente, a aplicação de sanções. “Um órgão que tenha representantes do governo, das plataformas, da sociedade civil, da academia, mas minoritariamente governamental, porque no Brasil ninguém quer governo se metendo em conteúdo de expressão, porque nessa matéria o passado condena.”
O ministro acredita que a retirada de conteúdos deve ampliar o modelo previsto no Marco Civil da Internet. “Como regra geral, ele prevê que a plataforma só tem o dever de retirar um conteúdo após a primeira ordem judicial. A norma é boa, mas devemos ampliar as exceções. A primeira: se for inequivocamente um comportamento criminoso, as redes devem removê-lo de ofício. Portanto, elas devem ter um poder de cuidado de remoção por via algorítmica. Mas, havendo inequívoca violação de direito, a notificação deve ser feita de maneira privada.”
Para que as plataformas não se tornem censoras privadas, a moderação de conteúdo deve ser acompanhada de transparência (termos de uso claros), do devido processo legal (se remover tem de notificar e dar direito a recurso) e de equidade (não pode remover por categorias suspeitas), dise o ministro. “O bom senso conduzirá ao consenso de que é preciso regulá-las, mas que apenas precisamos acertar a dose para não comprometermos a liberdade de expressão. Somos contemporâneos de um momento decisivo da democracia e dos direitos fundamentais.”
Ricardo Campos, professor assistente na Faculdade de Direito da Goethe Universität Frankfurt am Main, na Alemanha, foi o mediador do painel “Responsabilidade das plataformas por conteúdos ilícitos e riscos sistêmicos”. Segundo ele, analisando a história constitucional recente, em toda tecnologia que atinge massas há um desejo — um interesse legítimo — para que os Estados democráticos estabeleçam, de alguma forma, responsabilidades para essas tecnologias. “Isso aconteceu com o rádio e a televisão. Mas o regime de regulação da comunicação tradicional não é adequado para a nova tecnologia.”
O relator do PL 2.630/2020, deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP), também participou do painel. Ele explicou que o modelo europeu implica necessariamente instituição de sistema de supervisão pública. “É inaplicável o parâmetro europeu se não houver mecanismo de supervisão pública. A mera autorregulação nos conduz ao estado atual. Portanto, ela me parece insuficiente. É preciso estabelecer regramento.”
Na percepção do parlamentar, a era digital modula o comportamento social. A regulação das redes sociais, segundo ele, tem dimensão ética e civilizatória. “O universo digital não é mera projeção virtual daquilo que é vivido no cotidiano. Um dado da vida e do funcionamento de redes sociais é que se produz um modelo de negócios ancorado em extremismos. O discurso de ódio engaja.”
Coordenadora acadêmica do Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da FGV Conhecimento, Caroline Tauk, juíza federal do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, afirmou que os provedores de internet começaram a produzir técnicas para controlar discursos que acabam, de certa forma, manipulando o público. Uma dessas técnicas é o “filtro-bolha”, quando as plataformas direcionam ao usuário conteúdos personalizados. “O que, à primeira vista, parece inócuo, mas é perigoso porque exclui conteúdos que não me interessam e bloqueia posts contrários ao que penso.”
Outras formas de controle são as notícias falsas, a desinformação e o emprego de robôs. Ela salientou, no entanto, que as próprias plataformas têm dificuldade para identificar e banir o uso delas. Diante desse cenário, segundo Caroline Tauk, faz-se necessária a intervenção governamental para controlar e proteger o discurso público.
Líder de pesquisa no Grupo Tecnologia, Poder e Dominação no Instituto Weizenbaum e professora do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), Clara Iglesias Keller disse que a “autorregulação regulada” proposta no PL 2.630/2020 é um arranjo bem-vindo, mas o debate deve voltar as atenções também ao uso dos dados pessoais dos usuários por meio das plataformas. “A minha grande preocupação são as expressões desse poder que estão voando fora do nosso radar. A gente tem muito foco em conteúdo, mas não tanto no poder sobre dados. Não fizemos uma discussão séria sobre o que, de fato, as plataformas podem fazer com nossas informações. A Lei Geral de Proteção de Dados é suficiente? Não sei. É uma conversa que precisa acontecer.”
O evento
Esta edição do Fórum Jurídico de Lisboa tem como mote principal “Governança e Constitucionalismo Digital”. O evento é organizado pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), pelo Instituto de Ciências Jurídico-Políticas da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (ICJP) e pelo Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da FGV Conhecimento (CIAPJ/FGV)
Ao longo de três dias, a programação conta com 12 painéis e 22 mesas de discussão sobre temas da maior relevância para os estudos atuais do Direito — entre eles debates sobre mudanças climáticas, desafios da inteligência artificial, eficácia da recuperação judicial no Brasil e meios alternativos de resolução de conflitos.
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Fonte: Conjur