Em pesquisa realizada pelo Serviço de Psiquiatria do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), foi detectado que 91% dos moradores do RS sofrem de ansiedade devido ao estresse causado pelas enchentes ocorridas entre abril e maio deste ano. Burnout e depressão também foram listados no documento, que serve de parâmetro para facilitar o planejamento de ações futuras relacionadas à saúde mental.
A pesquisa serve de alerta também para a população rural do RS, que perdeu produções inteiras, animais e perfis de solo que demoraram décadas para se formar. Prejuízos que começam a ser contabilizados após cerca de 90 dias da catástrofe, já que algumas localidades ainda estão com acesso dificultado. Uma jornada que se inicia sem a definição clara de políticas públicas para direcionar esse retorno, criando assim um limbo de expectativas e frustrações.
Essa incerteza resultou no movimento SOS RS, iniciativa pública representativa que visa dar apoio jurídico, psicológico, social e político a milhares de produtores que tiveram suas propriedades destruídas pela força das águas. Grazi Camargo, produtora rural e uma das organizadoras do evento, comenta que o grupo se tornou um pilar de apoio diante desse cenário tão desafiador.
“Já se passaram três meses com quase nenhum apoio governamental. O que tivemos até o momento foi uma prorrogação dos pagamentos de safra e de custeio, que venceram em 30 de maio e 20 de julho, respectivamente. Alguns bancos aceitaram adiar esse pagamento para 15 de agosto, com acréscimo de juros do período em atraso. Esse prazo é inviável pois não houve tempo hábil para as pessoas se recuperarem ou até mesmo reiniciarem suas atividades”, comenta.
Em resposta ao anseio popular, uma Medida Provisória foi publicada no primeiro dia de agosto. Porém, o retorno não agradou o setor e pouco explica sobre como os inúmeros problemas econômicos do Estado serão solucionados.
“Estamos em um cenário pós-guerra e pedimos urgência. Nossa grande preocupação é sobre como a dívida rural, que é gigantesca, será solucionada. Enquanto não tivermos uma posição clara sobre isso, nossa próxima safra corre risco e, pior ainda, gera problemas psicológicos na sociedade”, argumenta Grazi.
A saúde mental é um assunto considerado tabu por parte da população brasileira e a situação se agrava no ambiente rural, já que muitas vezes os agricultores cumprem uma jornada de trabalho solitária e alheia aos tratamentos terapêuticos. Izabela Inforzato, consultora de recursos humanos, vem de uma família de produtores rurais e se especializou no atendimento de profissionais agropecuários. Dentro dessa expertise, normalmente o processo terapêutico busca encontrar uma linha de equilíbrio entre as equipes que trabalham no campo e os administradores das propriedades.
“A situação do RS extrapola isso por afetar todos os envolvidos na produção ao mesmo tempo, o que exige acompanhamento diferenciado. Essas pessoas precisam resgatar sua essência e reencontrar suas raízes, já que muitos aprenderam a trabalhar no seio familiar. A partir disso, direcionar essas capacidades no que mais gostam de fazer e assim ter um caminho para recomeçar”, orienta.
O Serviço Nacional de Aprendizagem Rural do Rio Grande do Sul (Senar-RS), em parceria com o Sistema CNA/SENAR, lançou o programa “Telessaúde no Campo”, que fornece atendimento médico e apoio psicológico aos trabalhadores rurais e seus familiares, residentes dos municípios decretados em calamidade pública e emergência. Para agendar consultas, é necessário ligar para o número 0800 941 546.
“Na nossa última manifestação, levamos uma psicóloga para abordar esse tema. Ouvimos relatos graves, de pessoas que estão feridas por dentro, mas que não levam mais essas preocupações para seus familiares. Essas pessoas buscam voltar às suas atividades, mas para isso é preciso ter recurso financeiro. Não dá para reconstruir o que foi perdido sem capital e é isso que estamos cobrando constantemente do governo”, reitera Grazi.
HISTÓRIAS DE UM RS EM CONSTRUÇÃO
Bibiana Terra Barbosa – Produtora Rural
Sou produtora rural de Palmares do Sul, no litoral norte do RS, e tenho duas propriedades. Nossa sede, que fica entre duas lagoas, foi a mais afetada pelas cheias e ficou 100% impactada. Já vivemos outras enchentes, então sabíamos o que fazer, mas dessa vez foi um nível jamais visto. Nossos galpões de produtos, máquinas, peças, tudo encheu de água. Consegui sair com meus filhos antes da situação ficar crítica, mas meu irmão e meu marido ficaram no local, na tentativa de inibir roubos.
No entanto, a água continuou subindo e eles saíram do local, deixando a propriedade abandonada por cerca de um mês. Só conseguimos entrar de carro recentemente e começamos a mensurar os danos e realizar a limpeza. É muito lodo, fedor e muita coisa estragada. Um prejuízo enorme e uma grande devastação, sendo que na lavoura perdemos nossos canais de irrigação e ainda não sabemos como será a safra de arroz, pois não há estrutura para o plantio.
Meus silos foram afetados pela falta de energia e isso comprometeu a qualidade do arroz armazenado. Não sei nem o que conseguirei vender, já que uma parte pode ter apodrecido ou amarelado. Os animais também foram muito afetados e tivemos que improvisar áreas para eles ficarem, estando sem pastagens.
Teremos muitos detalhes para consertar o trabalho de uma vida inteira, ou seja, não conseguiremos nos organizar o suficiente até o dia 15. Em condições normais, nessa mesma época eu já estaria com todo meu planejamento pronto, com custeios feitos e insumos negociados. No entanto, não tenho nada disso em mãos e não sei nem como serão feitas as minhas vendas ou o valor que irei receber pela minha produção.
Precisa ser um planejamento de longo prazo. Enquanto isso, fico pensando na questão da negociação, esperando para tomar uma decisão sobre a nova safra, mas ao mesmo tempo tenho que pensar em como vender os produtos e fazer o máximo de esforço para manter toda a equipe.
O produtor rural sabe que precisa ser resiliente, no entanto estamos desamparados e ninguém dorme direito com essas preocupações. Não temos medo do trabalho da reconstrução, o que incomoda é a falta de uma resposta definitiva, de uma ação governamental além do discurso bonito.
Carolina Neves Palmeiro e Joaquim Rodrigues de Freitas – Produtores Rurais
Carolina: Moramos em Pelotas, cuja zona urbana não foi tão atingida quanto outras cidades. Tivemos tempo para evacuar, mas no campo não teve o que fazer e algumas áreas estão alagadas até agora, com o gado sem ter o que comer. Recentemente fomos até Brasília e parece que as pessoas acham que o problema já acabou. Pelo contrário, os problemas estão apenas começando e a devastação econômica está presente em todo o Estado.
Todo mundo está desmotivado, sem saber o que fazer. Queremos honrar nossas dívidas, mas para isso precisamos ter a capacidade de nos reerguer e até agora não vejo condições para isso acontecer. Não bastasse isso, além das condições climáticas severas, as pressões por pragas e doenças estão cada vez mais intensas. Se não houver uma movimentação forte e eficiente sobre isso, ficaremos muito vulneráveis a essas condições adversas.
Joaquim: O sul vem de três anos de seca e muita gente já enfrenta problemas para continuar na atividade. Este ano era para ser de recuperação, mas acabamos perdendo tudo mais uma vez. Nossa perda de lavoura foi de praticamente 100%, então estamos muito apreensivos pois muitas famílias dependem dessa produção para se sustentar.
Esperamos um pronunciamento do governo, que até agora não trouxe boas perspectivas, e estou assustado pois não tenho como atender meus compromissos. Nem mesmo o gado, que sempre teve liquidez, está com poucas vendas. Estamos à deriva e com muito medo pela sociedade como um todo, já que, se não houver negociação, haverá uma quebradeira generalizada. Já passei por outras crises, mas essa vai demorar muito tempo para se recuperar. Se não houver apoio e forma de viabilizar, vai ser bem complicado.
Luise Jardim Pedó – Advogada
É uma situação muito delicada e de abandono, principalmente para os pequenos produtores e para a agricultura familiar, que é a maior característica produtiva do RS. O produtor é mais familiar e parece até um contrassenso, pois o atual governo levantou a bandeira da agricultura familiar, mas é justamente esse produtor que está mais abandonado neste momento.
Tem agricultores com essa característica que não têm como plantar ou planejar a próxima safra. São pessoas que já sofreram com dois, três anos de seca e que agora passam por essa situação de alagamentos. Mesmo em cidades em que a situação de calamidade não foi decretada temos problemas, pois a soja apodreceu na lavoura e esses casos não fazem parte da prorrogação do dia 15 de agosto.
A orientação que tenho dado é para que meus clientes façam o pedido de prorrogação conforme o manual de crédito rural, que prevê essa condição para caso de perda de safra comprovado por laudo técnico realizado antes do vencimento. Porém, nem todos os produtores estão conseguindo realizar esse laudo por ser muito criterioso e por exigir capacidade financeira para pagar o recurso a longo prazo. Pode ser que muitos desses pedidos sejam indeferidos, pois muitos agricultores não sabem nem quais serão as condições de plantio e isso vai virar um problema social muito grande.
Além disso, os pequenos agricultores não têm assistência jurídica ou organização administrativa. É diferente de produtores mais capitalizados, que possuem a capacidade de negociar soja, mesmo que avariada, para ter um capital de giro. Para aqueles que têm menos de 100 hectares, a margem fica muito apertada, com cerca de R$ 5 mil de lucro por mês e poucos recursos para superar crises. Esses estão com uma dívida muito alta e apenas esse lucro mensal não fica viável para realizar o pagamento, são necessários outros recursos para dar maior segurança a esses agricultores.
Dou como exemplo a história do meu pai, que sempre foi produtor rural, desde muito jovem. Ele buscou uma formação como agrônomo para sair de um contexto social muito humilde e acreditava que estudar era o caminho para o sucesso. Ele se formou como agrônomo e mudou o contexto social dele, pois teve a oportunidade de trabalhar como responsável técnico de uma grande lavoura de arroz.
A partir dessa experiência, ele resolveu arriscar produzir por conta própria. Para isso, minha família vendeu o único imóvel que tinha e deu entrada em uma área arrendada. Porém, a pessoa que comprou o imóvel não fez o pagamento total e isso foi um baque. Meu pai teve que cuidar da lavoura como podia, chegou a pulverizar essa área a pé, utilizando um costal.
Apesar das dificuldades, a lavoura dele rendeu bem e isso deu a oportunidade para ele deslanchar na produção. Até que em 2004 houve uma enchente em que perdemos muita coisa para a inundação. Não por acaso, naquele ano entrou arroz do Uruguai no país, algo muito parecido com o que tentaram fazer recentemente. Esse arroz veio mais barato, pois os custos de produção no Uruguai são menores e isso fez com que o mercado regulasse os preços para baixo.
Ele tentou armazenar arroz, pensando que a situação fosse melhorar, mas acabou vendendo a um preço muito pior e não conseguiu pagar os custos da safra. Além disso, ele era avalista de um vizinho, que também não conseguiu pagar as contas. Esse vizinho nunca conseguiu se recuperar do prejuízo e meu pai demorou 20 anos para quitar essa dívida como avalista.
Por insistência e ajuda de um amigo, ele atuou como consultor para áreas de arroz e soja em terras baixas. Abriu sua própria empresa e conseguiu se estabilizar. Minha formação em direito agrário nasceu dessa história e isso me forjou para ter uma compreensão da situação atual. Meu pai demorou 20 anos de reestruturação, com alguns traumas que ele leva até hoje, como o receio de voltar a plantar. Fico pensando nos produtores nesse momento, já que nem todos conseguiram ter uma formação como a de meu pai e dependem exclusivamente de suas lavouras. Me preocupa quanto tempo essas pessoas levarão para retomar o controle de suas vidas.
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Fonte: noticiasagricolas