A decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de determinar, por meio de uma resolução, que as plataformas digitais poderão ser punidas caso não tirem do ar conteúdos considerados prejudiciais à lisura das próximas eleições está sendo vista por juristas e entidades ouvidos pela Gazeta do Povo como um grave risco à liberdade de expressão, além de contrariar o Marco Civil da Internet e de avançar sobre prerrogativas do Poder Legislativo.
Por meio de uma nota técnica, o Instituto Sivis, organização civil dedicada à promoção dos valores democráticos no país, alerta para a possibilidade de censura prévia a partir do que foi estabelecido pelo TSE. A entidade lembra que o Marco Civil da Internet está em vigor há 10 anos e prevê a responsabilização dos provedores somente mediante ordem judicial específica, ou seja, quando um juiz determina a remoção de um conteúdo e a plataforma não cumpre a decisão.
O instituto ressalta ainda haver clara invasão da Corte sobre competência exclusiva do Congresso para legislar sobre temas como fake news (notícias falsas), discurso de ódio e recursos modernos de inteligência artificial e de distorção da realidade no meio online, sobretudo o deepfake – criação de imagens, vídeos ou voz de pessoas reais fazendo ou falando coisas que não fizeram ou falaram.
“É de suma relevância que a sociedade, incluindo jornalistas e defensores de direitos humanos, seja ouvida sobre questões que afetam a liberdade de expressão e a integridade democrática”, sublinha Henrique Zétola, presidente do instituto.
A crítica do Sivis centra-se no artigo 9º-E da Resolução Eleitoral 23.732/24 do TSE. Esse trecho diz que as plataformas da internet, como as redes sociais, serão “solidariamente responsáveis”, civil e administrativamente, se, durante o período das Eleições 2024, não removerem imediatamente conteúdos e contas considerados de risco pela Corte. Os ministros do TSE consideram casos “de risco”:
- Condutas, informações e atos que atentem contra instituições democráticas e o processo eleitoral;
- Divulgação ou compartilhamento de “fatos notoriamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que atinjam a integridade do processo eleitoral, inclusive os processos de votação, apuração e totalização de votos”;
- “Grave ameaça, direta e imediata, de violência ou incitação à violência contra a integridade física de membros e servidores da Justiça Eleitoral e Ministério Público Eleitoral ou contra a infraestrutura física do Poder Judiciário para restringir ou impedir o exercício dos poderes constitucionais ou a abolição violenta do Estado Democrático de Direito”;
- “Comportamento ou discurso de ódio, inclusive promoção de racismo, homofobia, ideologias nazistas, fascistas ou odiosas contra uma pessoa ou grupo por preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade, religião e quaisquer outras formas de discriminação”;
- “Divulgação ou compartilhamento de conteúdo fabricado ou manipulado, parcial ou integralmente, por tecnologias digitais, incluindo inteligência artificial”, que estiverem em desacordo com as regras previstas pelo próprio TSE.
Em fevereiro, o presidente do TSE, Alexandre de Moraes, disse que a resolução aprovada pela Corte é uma das “normas mais modernas do mundo” e permitirá que a Justiça Eleitoral tenha “instrumentos eficazes para combater o desvirtuamento nas propagandas eleitorais, nos discursos de ódio, fascistas, antidemocráticos e na utilização de inteligência artificial para colocar na fala de uma pessoa algo que ela não disse”.
Medida dificulta reações de partidos e candidatos
O consultor jurídico André Marsiglia, que subsidiou o parecer do Instituto Sivis, reconhece a preocupação do TSE em garantir a estabilidade do Estado Democrático de Direito diante do desafio da desinformação, mas receia que a medida tomada com essa intenção possa agredir a liberdade de expressão, um princípio fundamental para a sustentação do próprio regime democrático.
Como agravante, ele lembra que eventuais recursos movidos por candidatos ou partidos contra efeitos da resolução seriam examinados pela mesma Corte e pelos mesmos ministros que a editaram, limitando a eficácia desses instrumentos judiciais.
“Cabe então apelar à conscientização dos cidadãos e, sobretudo, dos juízes eleitorais acerca dos riscos decorrentes da aplicação imprudente dessas novas regras, para evitar uma escalada de censura nas eleições de outubro”, disse.
Marsiglia ainda aponta outros fatores relevantes em jogo. “A resolução será aplicada não só pelo TSE, mas por juízes de primeira instância. Como as eleições municipais são menos visíveis à grande mídia, candidatos locais estão quase sempre submetidos à crítica de um jornalismo menos estruturado, portanto, mais suscetível a ceder à aplicação de regras ainda sem o amadurecimento necessário”, observou.
Marco Civil da Internet está na mira do STF
O ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF) e ex-presidente do TSE Marco Aurélio Mello vem alertando nas últimas semanas, por meio de entrevistas à imprensa, sobre a necessidade de a Corte Eleitoral brasileira se ater neste ano à sua função básica, de mera coordenadora da disputa eleitoral.
Para ele, a série de 12 resoluções emitida pelo TSE para regulamentar as Eleições 2024 implicará em retrocessos à democracia, pois seus decorrentes regramentos estariam sendo ditados sem respeitar os limites do Judiciário definidos pela Constituição.
O advogado especializado em cidadania digital e temas ligados à tecnologia Hélio Ferreira Moraes afirma que a resolução do TSE que busca regular a inteligência artificial nas eleições, na prática, revoga artigos do Marco Civil da Internet, desvirtuando a essência de uma lei aprovada pelo Congresso há 10 anos.
Embora reconheça que o Congresso ainda não tenha deliberado sobre uma lei específica para combater a desinformação em plataformas online, ele entende que essa suposta omissão dos parlamentares não justifica conceder aos tribunais superiores poderes para atropelar outras esferas de competência.
“Não vejo nas medidas tomadas também uma solução clara para essa questão complexa. Acredito ser necessário regulamentação e a discussão está hoje polarizada entre a defesa da ausência total de regras e uma intervenção excessiva, partidarizada e perigosa”, avaliou.
O STF também está analisando mudanças relacionadas à regulação das plataformas digitais, inclusive a possibilidade de revogação do artigo 19 do Marco Civil da Internet, que isenta as empresas de tecnologia da responsabilidade sobre publicações feitas por terceiros.
“Em 12 anos aconteceram muitas coisas, e evidentemente temos que revisitar para adaptar às novas realidades”, disse o presidente do STF, Luís Roberto Barroso, em um evento em 8 de março, ao comentar sobre uma eventual atualização do Marco Civil da Internet. Contudo, ainda não há uma previsão para a retomada desse julgamento.
No Congresso, o tema está sendo abordado no Projeto de Lei 2630/2020, conhecido como “PL da Censura” ou “PL das Fake News“, mas a tramitação está travada desde meados do ano passado.
Em dúvida, plataformas se inclinarão à censura
Para Hélio Moraes, o ideal é o Legislativo definir uma regulação que não cerceie a liberdade de expressão. Nesse sentido, ele aponta para o fato de a resolução do TSE incorrer em grave equívoco ao apresentar dois conceitos juridicamente indefinidos e amplamente subjetivos: os relacionados à “divulgação de fatos notoriamente inverídicos” ou “gravemente descontextualizados”. Ao facultar às próprias plataformas a avaliação dos conteúdos para concluir se ocorreu alguma das situações, o tribunal levanta questões delicadas.
“Como um provedor determinaria se Bolsonaro pode ser chamado ou não de genocida ou se Lula pode ser considerado corrupto ou não? Tudo requer um critério claro de verdade, o que é extremamente difícil de estabelecer”, ponderou.
Da forma como está, a responsabilidade solidária imposta às empresas cria pressão significativa sobre elas, levando-as a retirar conteúdo do ar para evitar conflitos com tribunais e indivíduos, fortalecendo assim a autocensura.
“O atual mecanismo de responsabilização para meios de comunicação já é rigoroso, podendo até cassar candidaturas. Ir além disso pode resultar em restrição excessiva à liberdade de expressão durante o período eleitoral”, protestou.
Riscos com a “função social” dos provedores
Por fim, o advogado observa que a discussão sobre o papel da inteligência artificial nas eleições é relevante, mas precisa ser abordada com cuidado, considerando que a intenção de falsear informações sempre existiu, envolveu grupos de perfis ideológicos diversos e usou de todos os recursos disponíveis.
Além disso, Hélio Moraes vê com preocupação a ampliação das competências judiciais para interromper a disseminação de informações falsas sob a justificativa de que os provedores teriam uma função social, “uma obrigação que precisa ser claramente estabelecida juntamente com os critérios para sua aplicação”.
Fonte: gazetadopovo