‘Relações para fora do eixo’: especialistas explicam vantagens da aproximação entre BRICS e África


Professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Kauê Lopes explica que o Brasil tem construído muitos acordos, comerciais e tecnológicos, com países africanos, por meio de articulações feitas sobretudo por governos mais à esquerda, incluindo universidades e empresas públicas e privadas.
Para ele, a cooperação com países do Sul Global tende a ser mais horizontal, sobretudo com nações com algum tipo de vínculo à história brasileira. “De forma geral, a gente pode observar uma tendência à transformação das relações para fora do eixo, da antiga relação do eixo metrópole-colônia.”
Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, e presidentes dos países amigos do BRICS, posam para foto oficial após a reunião do grupo, no Sandton Convention Centre. Joanesburgo - África do Sul - Sputnik Brasil, 1920, 24.08.2023

Pesquisador visitante do Centro Latino-Americano e Caribenho da Escola de Economia e Ciência Política de Londres (LACC-LSE, na sigla em inglês), Lopes ressalta que os diferentes territórios produzem gêneros comerciais distintos, o que facilita trocas.
Neste mês, o mercado do Quênia se abriu para o arroz brasileiro; em agosto, os dois países reiteraram a integração cultural; e em março foi aprovado pelo Senado o acordo Brasil-Quênia na área de educação.
Para o presidente da Câmara de Comércio Afro-Brasileira (AfroChamber), Rui Mucaje, os laços entre esses dois países têm se fortalecido por iniciativas de ambos os lados — ele entende que o Brasil pode se fortalecer ao compartilhar setores estratégicos e contribuir para a segurança alimentar queniana, por exemplo.
Guiado pelo princípio Ubuntu, que significa “Eu sou porque nós somos“, o entendimento de Mucaje é que é possível cooperar comercialmente respeitando também diretrizes da economia azul [desenvolvimento sustentável dos recursos costeiros], nos setores agropecuário, turístico, energético e de construção civil. “Essas áreas representam oportunidades valiosas para empresas e instituições brasileiras no Quênia.”

“Por outro lado, é essencial que haja reciprocidade por parte do Brasil. Um exemplo: o Quênia é um dos maiores produtores de chá do mundo, porém ele enfrenta dificuldades na exportação para o Brasil. Isso ressalta a necessidade de políticas brasileiras que facilitem a entrada de produtos quenianos no mercado nacional. As relações comerciais entre os países devem ser encaradas como uma via de mão dupla.”

O professor Kauê Lopes comenta que o Brasil tem exportado manufaturados para países africanos, como congelados ou biscoitos.
Grãos são comercializados em mercado de rua na Nigéria, país que vive uma intensa guerra civil. Kano, 14 de julho de 2023 - Sputnik Brasil, 1920, 08.12.2023

Dessa forma, tem havido uma aproximação cada vez maior de outros países africanos. Em agosto, Brasil e Angola assinaram sete acordos de cooperação; em abril, foi assinado um projeto de cooperação em segurança alimentar com Moçambique.
Tais aproximações se intensificaram durante as gestões de Dilma Rousseff e Luiz Inácio Lula da Silva, segundo Lopes, mas é um cenário comum desde a ditadura militar.
“O governo Geisel é o primeiro que reconhece a independência de Angola. Isso já significa um olhar estratégico e geopolítico para os países do Sul, em uma relação Sul-Sul que começa a ser construída.”
Para Mucaje, o Brasil tem uma das maiores redes diplomáticas no continente africano e sempre apoiou nações em surgimento.

A importância do BRICS no Sul Global

Vem ganhando destaque, principalmente a partir do século XXI, a intensificação das relações comerciais e políticas entre os países africanos e as nações do Sul Global, segundo Lopes, que destaca a relevância desse fenômeno especialmente no que tange aos países do BRICS, grupo composto por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, com certo protagonismo.
Segundo ele, a China tem papel crucial há décadas, com estratégia agressiva na busca por matérias-primas para impulsionar a industrialização, o que levou o Dragão Asiático a estabelecer numerosos acordos bilaterais com países africanos. “Em muitas das principais economias do continente, os asiáticos tornaram-se o principal parceiro de importação.”
Helicópteros da Marinha sobre embarcação durante operação conjunta Poseidon, em 2021 - Sputnik Brasil, 1920, 13.11.2023

O especialista destaca que, embora nem todos os países africanos tenham a China como principal parceiro de exportação, a presença chinesa é marcante no campo da importação, fornecendo não apenas matérias-primas, mas também produtos industrializados.
Quanto às preocupações sobre a influência desses países, Lopes questiona a narrativa de cooptação ou neocolonialismo, especialmente no caso chinês. “Não acredito que seja, porque a colonização pressupõe uma instituição colonial; esse é o fundamento da colonização, uma relação de exclusivo colonial, exploração completamente assimétrica e violência militar.”

“Essas relações não são simétricas, mas o fato de elas não serem simétricas não significa que existe uma colonização, um neocolonialismo ou uma cooptação dos interesses. Há acordos bilaterais construídos nos quais os líderes africanos têm agência nesses acordos e eles estabelecem o que é importante para os seus países.”

Para ele, tais termos deslegitimam a capacidade das lideranças africanas de defenderem seus próprios interesses nacionais, incluindo estratégias adotadas para reduzir vulnerabilidades.
Ele ressalta o potencial inexplorado dos países africanos, aproveitado pouco a pouco por países do Sudeste Asiático, como Indonésia e Malásia, ou do mundo árabe, como os Emirados Árabes Unidos. “Quando falam que a África é a última fronteira do capitalismo, é isso que eles querem dizer. Existe ali um potencial de 1,2 bilhão de habitantes no continente.”
Ele destaca a dificuldade de generalizar as relações, já que cada país africano responde de maneira única às relações externas. A Índia é destaque especialmente na África Oriental, por proximidade social e geográfica, por exemplo. “Tem países que modularam o discurso para o século XXI, como a França, mas que continuam tocando práticas altamente imperialistas.”

“No Mali, em Burkina Faso, no Níger e em outros países de colonização francesa, há uma grande rejeição a qualquer tipo de relação com esse país. Inclusive a população civil abraça fortemente uma intensificação de relação com outros países, como a Rússia, por exemplo. Isso não deve ser olhado como um tipo de manipulação nem nada, a gente tem que entender quais os motivos que levaram a isso.”

Seguno Mucaje, o Brasil tem certa liderança regional na América Latina e historicamente defende a inclusão de países africanos em fóruns globais significativos, como o G20. “Graças aos esforços conjuntos da Índia e do Brasil, a União Africana foi incluída, representando os 55 países do continente, cada um com suas características e desafios únicos.”
Mucaje ressalta que a Rússia também já teve presença na luta pela libertação de diversos países, “que culminou em uma ampla cooperação em vários setores, inclusive na formação profissional”, enquanto a África do Sul apresentou ao mundo um histórico de lutas sociais e contribuições.
Para ele, a criação do BRICS representou uma grande mudança na geopolítica global. A crescente inclusão de países africanos no grupo — inicialmente a África do Sul, a partir de 2010, e, mais recentemente, Egito e Etiópia — tem sido um “desenvolvimento notável”.

“O BRICS agora congrega mais de 40% da população mundial e mais de 25% da riqueza global. Esse fórum, de elevada importância, reflete os anseios de diversas nações africanas, propondo a formação de uma nova ordem mundial que ofereça voz a países historicamente excluídos das decisões globais e que compartilham realidades e soluções similares.”

Apesar disso, ele entende que, além das potências do BRICS, a África ainda tem cooperação “indispensável” com países do Ocidente. “Durante minha experiência em Angola e em minhas viagens pelo continente, particularmente em Ruanda, percebi que a cooperação internacional pode ser decisiva na redução de conflitos.”
“Infelizmente muitos desses conflitos, exacerbados por influências externas, evoluíram para guerras e genocídios, marcando profundamente as relações entre as nações. Na minha visão, o processo de ‘cooptação’ não é a estratégia mais eficaz no atual contexto africano. A história nos ensina que é a união que fomenta a paz na África e em todo o mundo.”
© Ricardo Stuckert / PRDa esquerda para a direita: presidentes Luiz Inácio Lula da Silva (Brasil), Xi Jinping (China), e Cyril Ramaphosa (África do Sul); o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi; e o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, durante cúpula do BRICS na África do Sul. Joanesburgo, 23 de agosto de 2023

Da esquerda para a direita: presidentes Luiz Inácio Lula da Silva (Brasil), Xi Jinping (China), e Cyril Ramaphosa (África do Sul); o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi; e o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, durante cúpula do BRICS na África do Sul. Joanesburgo, 23 de agosto de 2023 - Sputnik Brasil, 1920, 13.12.2023

Da esquerda para a direita: presidentes Luiz Inácio Lula da Silva (Brasil), Xi Jinping (China), e Cyril Ramaphosa (África do Sul); o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi; e o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, durante cúpula do BRICS na África do Sul. Joanesburgo, 23 de agosto de 2023

As dificuldades atuais do continente africano nas relações comerciais

Diretor de comércio exterior da Câmara de Comércio, Indústria e Serviços do Brasil (Cisbra), Arno Gleisner explica à Sputnik Brasil que a África tem um mercado em crescimento, impulsionado pelo aumento populacional, mas há desafios, sobretudo pelo baixo poder de consumo.
“Muitos países africanos têm problemas políticos, conflitos étnicos e de outra natureza, inclusive com guerras. Dificuldades com pagamento também são recorrentes na região, mas o continente é rico em recursos naturais e sua produção industrial é muito baixa.”
Segundo ele, há alta importação de itens manufaturados e demanda de engenharia e bens. “Quando uma construtora efetua um trabalho em um país africano, ela também importa ou faz com que outros prestadores de serviço que estão no entorno importem produtos brasileiros complementares.”
No entanto, ele entende que o fluxo comercial ainda é muito forte com antigas potências coloniais europeias. “Vínculos e procedimentos, tanto comerciais como logísticos, facilitam negociações e pagamentos. A proximidade é um benefício evidente para os países europeus.”
Ainda assim, ele entende que a África do Sul, parte do BRICS, já cria uma ponte natural para os países não ocidentais, apesar das dificuldades logísticas.
Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante chegada a Joanesburgo para a cúpula do BRICS. África do Sul, 21 de agosto de 2023 - Sputnik Brasil, 1920, 01.12.2023

Além disso, a Índia tem uma “vantagem na relativa proximidade e na existência de população de origem indiana, com muita participação no comércio; tem muitos comerciantes de origem indiana”.
Já a Rússia teve uma influência política e econômica maior, principalmente na época da União Soviética.
Em relação ao Brasil, ele observa que é possível existir uma reaproximação nos próximos anos. “O Brasil teve uma participação maior também em bens e serviços, mas a retomada é possível, existindo muitos brasileiros com sólido conhecimento em relações do mercado africano.”
© Sputnik / Grigory SysoevBandeiras dos países-membros do BRICS durante a 15ª cúpula do BRICS, em Joanesburgo, na África do Sul

Bandeiras dos países-membros do BRICS durante a 15ª cúpula do BRICS, em Joanesburgo, na África do Sul - Sputnik Brasil, 1920, 13.12.2023

Bandeiras dos países-membros do BRICS durante a 15ª cúpula do BRICS, em Joanesburgo, na África do Sul
Por outro lado, o professor e pesquisador Kauê Lopes destaca que a cooperação tecnológica também pode oferecer ameaça comercial, já que todos os países são concorrentes.
Por exemplo, o cacau é nativo da bacia amazônica, conforme registros da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), mas tem ótimo desempenho na Mesoamérica e também em países africanos. “Costa do Marfim e Gana são os dois maiores produtores de cacau do mundo.”
O Brasil historicamente apoia outros países — como quando a Embrapa mandou pesquisadores à África Ocidental para auxiliar no cultivo do algodão —, mas isso pode significar uma concorrência no futuro. “É uma situação complexa do ponto de vista político e econômico.”

“Atualmente a gente tem esses acordos sendo construídos, de […] diferentes ordens de cooperação, mas já sabendo também que existe um potencial de concorrência mais para frente.”

Por fim, Mucaje entende que é preciso mais iniciativas comerciais entre os diferentes países. “Atualmente a cooperação comercial entre Brasil e Quênia ainda não atinge todo o seu potencial”, exemplifica.
“Portanto, é imprescindível a promoção de mais iniciativas comerciais. Estas representam uma forma essencial de diplomacia e devem ser cada vez mais incentivadas em um contexto global, visando fortalecer laços e desenvolver ambos os países.”

Fonte: sputniknewsbrasil

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