O trabalho, intitulado “Povos indígenas e a sua Relação com o Regime Jurídico Brasileiro: como “estranhos de dentro”, da prática de retirada do meio ao infanticídio”, é a primeira dissertação de um estudante indígena do Programa de Pós-Graduação em Direito. A pesquisa, apresentada no último mês, foi defendida por Libério Uigumeareu, do povo indígena BOE, e discute o papel da multiculturalidade no sistema jurídico analisando a prática de “retirada do meio indígena”.
De acordo com o pesquisador, a posição de ‘primeiro indígena’ traz sentimentos mistos de felicidade, de uma perspectiva pessoal, mas também de angústia. “Já poderíamos ter outros indígenas defendendo dissertações no âmbito do direito antes, isso seria algo muito importante”, disse.
Libério contou que ingressou primeiro na graduação da UFMT através do programa Proind, que oportunizou 100 vagas exclusivas para indígenas do estado de Mato Grosso; depois se especializou em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pará; ainda tentou o mestrado uma primeira vez na UFMT, na turma de 2015, mas por motivos de saúde teve de deixar o projeto; e agora teve a oportunidade de regressar e concluir com sucesso essa etapa.
“Infelizmente o programa com o qual eu ingressei na UFMT foi encerrado em 2014, mas essas são iniciativas importantes, porque precisamos de mais indígenas na graduação e na pós também”, afirmou.
Agora mestre em Direito, Libério acredita que a presença de pessoas como ele no meio acadêmico enriquece as discussões de maneira geral e também propulsiona a reflexão científica sobre a cultura indígena. “Algo enriquecedor do ponto de vista científico e da vivência acadêmica”, completou.
E também algo necessário, conforme sua própria experiência de vida demonstra:
“Já ouvi de um jurista que os povos indígenas não obedecem ao Direito, fazem o que querem, não tem uma pena, que é tudo bagunçado. Ouvir isso é preocupante, porque nós não estamos inseridos apenas nos artigos 231 e 232 da constituição, estamos inseridos em toda ela e fora também, no Direito penal, civil, administrativo, e obedecemos essas normas”, pontuou.
“Como seria possível um jurista com essa falsa compreensão, que é carregada de preconceitos, julgar um indígena em um direito seu? Por causa dessa falta de conhecimento a gente precisa avançar no conhecimento sobre essas questões”, acrescentou.
Multiculturalidade
O objetivo da pesquisa de Libério foi contrastar os conceitos de ‘retirada do meio indígena’ e o ‘infanticídio indígena’, a partir de uma perspectiva multicultural.
“A retirada do meio indígena, seja pelo nascimento de gêmeos ou de crianças com necessidades especiais, é feita visando o coletivo. Os poucos povos que ainda fazem isso, seguem essa prática pela crença de que é algo para proteger o grupo. Então, a ideia da pesquisa é trazer essa visão indígena sobre isso”, explicou.
Parte da motivação de Libério para investigar o tema foi que seu povo, os Boe, tinham essa prática mas a abandonaram e, apesar disso, ainda haviam estudos e opiniões sendo divulgadas que afirmavam o contrário.
“E é importante destacar que foi a mesma perspectiva de proteção do coletivo que levou a essa mudança”, pontuou. “Por causa da violência histórica que os indígenas têm sofrido no Brasil, meu povo viu que seus números estavam reduzindo muito, então deixou essa prática para continuar protegendo o coletivo”.
De acordo com Libério, dentro do Direito brasileiro é prevista uma análise cultural dos povos indígenas, mas quando se fala sobre essa prática impera o preconceito de tratar o indígena como selvagem, algo criado desde o colonialismo e que perdurou de alguma forma no ordenamento jurídico até a Constituição de 1988.
“Era vinculada a essa visão preconceituosa conceitos como a incapacidade do indígena, a tutela do indígena e a integração deles, como se ser um indígena fosse algo passageiro e ele precisava se integrar ao meio. Apenas a constituição de 88 derruba isso e traz a autodeterminação dos povos e observação da multculturalidade”.
Outra motivação, de acordo com o pesquisador, foi de analisar o tema a partir de uma perspectiva indígena. “Claro que as culturas não são perfeitas, elas podem ser discutidas, mas a gente precisa ouvir o outro. O caso da multiculturalidade propõe exatamente isso, analisar os indígenas, observar os indígenas, mas também conversar com os indígenas, ter esse diálogo intercultural que é de suma importância, seja para questões jurídicas ou de políticas públicas”, concluiu.
Tendo sido aprovado pela banca do mestrado, o trabalho de Libério passará por ajustes finais e estará disponível para consulta pública no repositório de dissertações da Biblioteca Central da UFMT a partir de outubro.
Fonte: ufmt