Esta semana, André Paixão, editor-chefe da Autoesporte, e Marcus Celestino, editor da mesma publicação, me desafiaram a escrever sobre os avanços da indústria automobilística da China. Como gosto de desafios, logo topei.
É intrigante como o mundo dá voltas. Até 2018, as empresas estrangeiras eram obrigadas a formar joint ventures com outras empresas chinesas para participarem do mercado local. Agora, grandes grupos europeus procuram as empresas do país asiático para desenvolvimento e apoio nas áreas de eletrificação e tecnologia. Stellantis, Volkswagen, BMW, Mercedes, Jaguar Land Rover, entre outras, fazem parte deste rol.
Atualmente, vale frisar, a China tem aproximadamente 150 marcas ativas. Destas, temos aproximadamente 100 companhias domésticas. Com base nos dados de vendas globais disponibilizados pela empresa Marklines, nota-se que quase todas as principais montadoras do país apresentaram crescimento elevado entre 2023 e 2024. Veja abaixo:
A Marklines também disponibilizou a participação de mercado da China na comparação com outros países. Atualmente, desponta como líder absoluto com 35% das vendas, seguido de muito longe por Estados Unidos, com 18,3%, Índia (5,8%), Japão (4,9%), Alemanha (3,5%) e Brasil (2,9%).
E essa dominância aparentemente irá demorar a ter fim. Até mesmo porque, não adianta… Seja por determinação legal, seja pelo desenvolvimento natural da indústria automobilística. Gostando ou não, querendo ou não, os veículos serão, num futuro breve, em sua maioria eletrificados.
O mix irá variar de país a país, de acordo com as questões regionais. Alguns mercados serão majoritariamente elétricos – como hoje já ocorre com Noruega. Outros, como o Brasil, irão iniciar o processo com os híbridos leves e atingirão a maturidade com os híbridos plug-in. A questão que predomina é… Quantos destes veículos serão Made in China?
E aí, para tentar contextualizar minha resposta, farei uma divisão histórica da indústria automobilística da China. O fiz em 5 partes:
I) Pré-Industrialização
Pouco se tem a agregar exceto o fato de que o primeiro projeto de veículo automotor, na verdade um caminhão de porte médio denominado Minsheng 75, e sua fábrica foram destruídos com a Invasão japonesa da Manchúria em Setembro de 1931.
II) Fase Pós Instauração da República Popular da China (1949 – 1980)
Nessa fase, o desenvolvimento da indústria automobilística foi restrito pela falta da livre concorrência e pelos resquícios da Revolução Cultural Chinesa (1966 – 1976), no qual o principal objetivo era manter as premissas do comunismo.
Uma pequena exceção ocorreu entre 1950 e 1960, quando a China desenvolveu um caminhão para uso militar baseado em um outro modelo russo. Neste período também foram criadas diversas fábricas de montagem de veículos, a maioria com foco em caminhões de uso militar ou industrial.
III) Reforma Econômica (1980 – 2000)
Com uma produção interna demasiadamente limitada para a sua demanda, a China passou a importar muitos veículos automotores. Mesmo com um imposto de importação de 260%, estas subiram a níveis que ocasionaram problemas na balança comercial daquele país. Por este motivo, foi decretada a suspensão de dois anos na importação de veículos no final de 1985.
Uma política de joint venture de 1979, obrigatória para empresas externas que queriam atuar na China, viabilizou o início de uma nova indústria automobilística aproximando o capital e a tecnologia das empresas mais desenvolvidas – com destaque para as companhias de capital norte-americano, europeu e japonês.
Mesmo em kits CKD, com baixa transferência tecnológica, a alta produção tornou os chineses conhecedores do processo de manufatura. Nos anos 2000, as empresas que trabalharam em regime de joint venture eram:
E outras companhias de capital chinês também passaram a atuar a partir da metade dos anos 1990. São elas:
IV) Era do Crescimento (2001 – 2020)
Em 2001, a China entrou para a Organização Mundial do Comércio (OMC) para basicamente deslocar a sua economia anteriormente baseada no modelo socialista para uma economia de mercado (o que ficou denominado por economia socialista de mercado). E, mais importante: para ter garantias das regras da OMC de que suas exportações não seriam discriminadas.
Por outro lado, os demais membros da organização seriam atraídos pela grandiosidade do mercado chinês, em fase de abertura, e também estariam lastreados por regras que restringiriam a exportação chinesa a ponto desta não se tornar um incômodo para as economias locais.
Já na OMC, a China passou a diminuir as tarifas de importação, possibilitando o acesso dos consumidores locais aos veículos novos bem mais atualizados, aumentando a competição dentro do seu mercado e derrubando os preços de forma contínua, ano a ano. Grande parte disso ocorreu pela ascensão da classe média motivada pela sinergia da China com a nova economia do mundo capitalista, que teve como base os setores de maior valor agregado. Antes, bom recordar, a China já iniciava este processo como exportadora de produtos processados de baixa e média tecnologia e complexidade.
Enquanto as joint ventures com as empresas estrangeiras dominavam o mercado das classes média e alta, pequenas e médias empresas automotivas estatais e privadas chinesas iniciavam a produção para atender o mercado interno. Entretanto, essas JV transferiam pouca ou nenhuma tecnologia para as chinesas, e se prestavam a basicamente copiar os veículos ocidentais. Iniciou-se assim o desenvolvimento de veículos desde o início do processo de criação, quando a indústria chinesa passou a adquirir conhecimento e a desenvolver seus padrões e suas patentes.
Em paralelo, num processo de consolidação orientada pelo governo chinês, uma série de pequenas empresas fecharam ou se consolidaram, e a China iniciava o seu caminho para se tornar uma potência nesta área.
Em 2018, o governo chinês anunciou o fim da obrigatoriedade das joint ventures e permitiu que as empresas estrangeiras assumissem a propriedade das operações das fábricas estabelecidas no país. A ideia era aumentar a competitividade do mercado interno e facilitar o desenvolvimento da indústria local. No mesmo ano liberou empresas estrangeiras focadas em novas energias para atuar no país; a Tesla iniciou suas operações fabris a partir deste decreto.
Para entendimento do crescimento do mercado, segundo dados da Organização Internacional dos Construtores Automotivos (OICA), a China passou de 2.334.440 de carros de passeio e comerciais leves produzidos em 2001 (8ª maior produtor mundial) para 25.225.242 unidades em 2020 (1º colocado).
Outros dados: em 2006 a China ultrapassou a Alemanha na produção mundial de veículos; em 2008, aproveitando-se da crise global, ultrapassou os EUA e, em 2009, alcançou o Japão.
V) Período Contemporâneo (2021 – atualmente)
Em 2009, a China criou o “Plano de Ajuste e Revitalização da Indústria Automobilística”, que estabelecia as premissas da produção e do desenvolvimento dos veículos elétricos locais. Sem condições de brigar em igualdade de condições com os veículos a combustão interna das empresas tradicionais, a estratégia foi desenvolver um novo segmento para atender necessidades ambientais de redução das emissões ao mesmo tempo em que evitaria a dependência do petróleo externo. Tal ação se provou mais do que acertada e surtiu efeito mais do que positivo.
Entendendo a importância das baterias no arriscado plano de mudança para uma indústria de veículos elétricos, ainda no início dos anos 2000, o governo chinês passou a dar ênfase no desenvolvimento desse elemento.
Apesar de ter recursos naturais restritos nessa área, passou a controlar a matéria-prima necessária muito antes que qualquer concorrente entendesse a importância de minerais como lítio, cobalto, cobre, níquel, estanho, grafeno… E ainda mais relevante, dominou o processo produtivo destes elementos e da fabricação da bateria. Para surpresa do ocidente, tudo transcorreu de forma extremamente discreta.
A ampla utilização dos veículos eletrificados bem como o relativo revés das marcas tradicionais em acompanhar esta mudança fizeram da China uma verdadeira potência em relação a eletrificação. Hoje mais de 75% das baterias de íon lítio, aproximadamente 85% da produção de anodos e 70% da capacidade global de produção de cátodos são produzidas na China.
Com subsídios governamentais, isenções tributárias e acordos políticos, diversas marcas surgiram e desenvolveram ainda mais a tecnologia dos veículos elétricos. Entidades governamentais chinesas e governos locais adotaram os modelos do segmento no transporte público, resultando num volume significativo em especial nas grandes cidades. Em paralelo o governo adotou um controle da produção e da qualidade das baterias elétricas visando uma competição interna saudável a fim de propiciar a inovação tecnológica.
Com o passar do tempo, o excesso de produção dos veículos elétricos levou as montadoras chinesas a aumentar as exportações e expandir as vendas no exterior. Importante destacar que a indústria chinesa ainda produz veículos com motores à combustão interna mas conforme já destacado não são os veículos mais atrativos ou os mais competitivos daquele mercado.
Os veículos chineses deixaram de ser apenas cópias com baixa inovação de veículos ocidentais para entregar design, tecnologia e qualidade. Ricardo Bacellar, analista do setor automotivo brasileiro e apresentador do programa “Papo de Garagem”, costuma dizer que a indústria chinesa fez a “lição de casa e investiu massivamente em unidades fabris de alta capacidade, na infraestrutura interna e portuária, na logística, em educação e no seu desenvolvimento geral”.
Não à toa, os chineses produzem mais e mais carros a cada ano que passa. E a tendência é de que não parem por aí. A concorrência vai ter de correr atrás.
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Fonte: direitonews