William Ruto, porém, herdará um país dividido e endividado, atingido pela inflação e uma moeda fraca.
“O principal problema do Quênia hoje, além do fato de que houve uma seca por quatro anos, é a redução do fornecimento de grãos e combustível, além de uma enorme dívida pública”, diz a especialista do Quênia Natalya Matveeva, pesquisadora do Instituto de Estudos Africanos da Academia Russa de Ciências.
Por sua vez, o professor X.N. Iraki, economista da Universidade de Nairóbi, fundador da Sociedade de Gestão de Operações do Quênia e da Fulbright Scholar, explica que “o aumento dos preços da energia, as chuvas abaixo da média e a recuperação pós-COVID contribuíram muito para a inflação do Quênia”.
“[William Ruto] também herdou a dívida nacional, que deve ser paga”, continua o acadêmico.
“Sem aumentar impostos ou reduzir as despesas do governo, ele pode ter que pegar mais emprestado. O desemprego e a concorrência por recursos limitados são outro desafio que ele deve enfrentar, adicionado às grandes expectativas dos eleitores”, disse ele.
Além disso, o presidente eleito tem que lidar com um país dividido, observa Iraki.
“A divisão vem do sentimento de que algumas regiões ou comunidades dominaram a liderança e o poder econômico, excluindo o resto”, diz o professor. “As classes econômicas sociais são reais. A menos que a economia se vire, as divisões se expandirão. Ruto no poder não mudará as coisas da noite para o dia, mas, se ele empreender as políticas certas, colocar as pessoas certas no lugar certo, podemos ver a economia girando a longo prazo. Mas a ‘sensação de bem-estar’ entre as pessoas comuns poderia catalisar a economia, assim como fez o [ex-presidente queniano Mwai] Kibaki após o fim da era da União Nacional Africana do Quênia (KANU)”.
De acordo com o The Star, um jornal queniano, William Ruto é visto por alguns como um defensor de uma abordagem neomarxista: ele se afastou do “tribalismo” e ofereceu “uma nova identidade” para as massas quenianas “traídas e sofridas”. “Queremos que todos sintam a riqueza deste país. Não apenas alguns no topo”, disse Ruto na campanha, enquanto promovia seu plano econômico “de baixo para cima”.
“Se ele conseguir dinheiro, [seu ‘plano econômico] é alcançável”, diz Iraki. “Há boa vontade suficiente. Mas levará tempo. Girar uma economia é mais difícil do que votar. A economia gotejada não funcionou, vamos tentar de baixo para cima. Ele deve começar mudando nosso pensamento, para ver possibilidades, para acreditar no trabalho e na inovação. Um obstáculo que ele enfrentará é a alta desigualdade no Quênia. Como escorre para baixo, de baixo para cima leva tempo, esperamos que os eleitores sejam pacientes.”
Estratégia focada na África
A abordagem de Ruto na política externa não é menos ambiciosa do que seus planos econômicos. Em seu manifesto, Ruto indicou que adotaria uma política externa focada na África, e por uma boa razão, de acordo com o dr. Njoki Wamai, professor assistente em política e relações internacionais na Universidade Internacional dos Estados Unidos África.
“O Quênia vai se concentrar mais no fortalecimento das relações com outros países africanos”, diz Wamai. “E lembre-se, isso vem de um contexto onde, por muito tempo, especialmente durante os dois primeiros regimes, os de Jomo Kenyatta e do presidente [Daniel Arap] Moi, os principais parceiros bilaterais do Quênia foram seus mestres coloniais, a Grã-Bretanha e outros países ocidentais. Isso começou a mudar, é claro, com Kibaki, porque o terceiro presidente trouxe a China, houve um aumento do trabalho com os países do BRICS. A partir do segundo Kenyatta [Uhuru, filho de Jomo Kenyatta e quarto presidente do país], houve esforços muito deliberados para ser mais pan-africano na política externa do Quênia.”
A mudança pan-africana de Ruto é uma “coisa boa”, segundo o professor, porque a África tem agora uma das populações que mais cresce e com as economias do continente se desenvolvendo em um ritmo mais rápido, mesmo em comparação com a Ásia.
Pragmatismo de Ruto e laços estrangeiros do Quênia
O Quênia está historicamente ligado ao Reino Unido e aos EUA, sendo este último seu parceiro de defesa, observa Matveeva, acrescentando que Nairóbi está interessado em manter relações com o Ocidente. Por outro lado, a China tem dado as ordens no país da África Oriental, iniciando projetos ousados e incorporando sua visão da Iniciativa do Cinturão e Rota (em inglês: Belt and Road Initiative).
Ainda assim, parece que Ruto tem um olhar independente que não é influenciado nem pelo Ocidente, nem pela China.
“Ele está chegando sem muito apoio dos Estados ocidentais porque ele é visto como alguém não liberal, que não apoia ideias liberais e esse tipo de coisa”, observa Wamai.
Por outro lado, o presidente recém-eleito evitou em grande parte criticar a operação militar especial de Moscou na Ucrânia, ao contrário de muitos de seus colegas de governo, e se recusou a culpar a Rússia pela crise alimentar.
“Ruto é conhecido por ser uma pessoa pragmática com vasta experiência empreendedora”, diz Mikhail Lyapin, representante da AFROCOM (Câmara Russa de Comércio e Indústria) no Quênia. “A África como um todo não se importa com a operação militar especial [da Rússia] e só precisa obter o máximo de benefícios possível, ou seja, empréstimos, assistência na conclusão de usinas nucleares planejadas, alimentos (incluindo grãos) e fertilizantes.”
O que a Rússia poderia oferecer a Nairóbi?
A Rússia deve tentar desenvolver ainda mais as relações com as autoridades quenianas, acredita Lyapin. Há apenas dois países na África Subsaariana onde os riscos econômicos podem ser avaliados como médios e baixos, são eles o Quênia e a Nigéria, segundo ele. Esses países também são importantes polos econômicos através dos quais é mais fácil entrar em países vizinhos. Além disso, o Quênia e a Nigéria são Estados africanos importantes em termos de perspectivas de crescimento.
Embora o Quênia continue sendo um lugar lotado em termos de presença estrangeira, a Rússia ainda tem muito a oferecer ao Quênia, a fim de impulsionar seu desenvolvimento econômico e, ao mesmo tempo, não multiplicar sua dívida já bastante grande, de acordo com o especialista russo.
“[A Rússia pode oferecer] especialistas que, trabalhando aqui [no Quênia], poderiam treinar especialistas locais”, diz Lyapin. “Conheço excelentes diretores técnicos e diretores comerciais da Comunidade dos Estados Independentes (CIS) que se mudaram para a África para trabalhar e ganharam experiência na gestão de funcionários locais. Eles reformaram as habilidades dos funcionários para as necessidades de seus negócios e hoje estamos prontos para conquistar mercados junto com os funcionários africanos, trabalhando com eles de igual para igual.”
Embora a Rússia já esteja mantendo relações comerciais com o Quênia e fornecendo alimentos e matérias-primas para o país, essa cooperação poderia ser expandida dado o ritmo acelerado de crescimento da população e da economia do continente, enfatiza o especialista.
Além disso, a Rússia poderia ajudar o Quênia a resolver a questão do déficit energético do país.
Em 2017, Nairóbi teria mantido conversações com a Rússia sobre a construção de uma usina nuclear no país, um projeto que ainda está sendo considerado pela liderança queniana. A companhia estatal de energia nuclear russa Rosatom está em negociações com várias outras nações africanas para construir estações atômicas. Além disso, desde 2013, a empresa oferece programas de educação gratuita em ciência nuclear para estudantes africanos.
A partir de dezembro de 2020, 256 estudantes da África Subsaariana, incluindo Ruanda, Gana, Zâmbia, Quênia, Nigéria, Tanzânia, Uganda, Etiópia e África do Sul, estudaram na Rússia em especialidades relacionadas à energia nuclear. Em julho de 2022, a Rússia começou a construir a primeira usina nuclear do Egito para ajudar a nação norte-africana a acelerar seu desenvolvimento tecnológico e econômico.