Plano de Lula para inteligência artificial tem falhas e deve esbarrar em uso político de dados


O presidente Luiz Inácio Lula da Silva lançou no dia 30 de junho o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial, ou PBIA, um programa que tem a pretensão investir R$ 23 bilhões para colocar o país como protagonista global no desenvolvimento de inteligência artificial nos próximos quatro anos – uma possibilidade improvável, segundo analistas ouvidos pela reportagem. Eles avaliam que as propostas atuais para regulação do setor e o possível uso de dados dos cidadãos de forma política são algumas das falhas que permeiam o projeto.

Além disso, a amplitude da proposta, que abrange áreas como as da saúde e a das finanças, demanda por mão de obra qualificada para concretizar o projeto (que é escassa no Brasil) e a concorrência global (Estados Unidos e China lideram o setor) também levantam questionamentos sobre sua viabilidade.

O curto espaço de tempo estimado para sua implementação ainda traz questões sobre a real capacidade que o governo Lula terá de executar o plano, que pretende fazer com que o país não dependa das aplicações criadas por empresas de outros países.

O plano pretende dinamizar o desenvolvimento de soluções de inteligência artificial puramente brasileiras nos próximos quatro anos. O objetivo seria fazer com que o país se torne autossuficiente e não precise recorrer a ferramentas estrangeiras.

Um exemplo concreto é que o governo deseja a criação de um programa semelhante ao ChatGPT ou ao Gemini, que são ferramentas onde o usuário pode inserir quaisquer perguntas sobre tópicos variados e, com base em uma ampla base de dados, receber respostas em forma de texto. Elas funcionam tanto como assistentes pessoais para obtenção de informações como podem ser usadas para elaborar textos complexos. Como essas ferramentas são baseadas em modelos de linguagem, o governo quer criar uma versão que opere bem em português do Brasil.

Mas há outras aplicações em vista. No curto prazo o plano visa o desenvolvimento de programas para automatizar a transcrição de teleconsultas ou para otimizar diagnósticos no SUS; para disponibilizar dados climáticos e territoriais para produtores rurais; para analisar os milhões de processos nos portais dos Tribunais e gerar um modelo de IA para melhorar sua redação e até um sistema para o controle de frequência dos alunos do ensino básico.

No médio e longo prazo, o plano propõe desenvolver um supercomputador e uma nuvem nacional de armazenamento, que possa conter os dados brasileiros e que evite que o governo e empresas nacionais, por exemplo, precisem recorrer a computadores de empresas estrangeiras como AWS ou Google.

O plano prevê investimentos de R$ 23 bilhões em quatro anos. Mais da metade do valor, R$ 12,7 bilhões, será oferecida em crédito para que as ferramentas sejam desenvovidas pela iniciativa privada. O resto será aplicado por meio de uma combinação de investimento não reembolsável em bolsas de pesquisa, universidades, projetos de empresas privadas e estatais, e parcerias com a iniciativa privada.

O senador astronauta Marcos Pontes (PL-SP) afirma que o Brasil teria até capacidade e potencial para se tornar um protagonista no desenvolvimento de inteligência artiicial no mundo. Mas que, para tanto, o governo precisaria se comprometer com um programa de longo prazo. “Isso [ser protagonista em inteligência artificial] exige compromisso, consistência, investimentos em pesquisa e infraestrutura e capacitação profissional. Podemos dar passos largos nos próximos anos, mas é fundamental que haja continuidade, visão a longo prazo e determinação”, afirmou o senador.

Tiago Morelli, CEO e fundador das empresas Zaia e Go Enablers, que fornecem aplicações de inteligência artificial para negócios, afirma que é bom ver o governo finalmente fazendo um planejamento para o setor, mas não crê em uma operacionalização eficaz do plano.

Ele destaca que o histórico nada positivo de implementação de iniciativas governamentais, somado à operacionalização ambiciosa e complexa podem se tornar um problema. Nesse cenário, seriam necessárias a reinvenção e readaptação do plano para garantir que o “investimento vá para os lugares certos e para as empresas certas”. Tudo isso faz com que ele veja a iniciativa com descrença.

Viés e atrelamento político podem ser um risco para plano de IA de Lula

Uma das preocupações advindas de avanços em inteligência artificial fomentados pelo governo é o atrelamento do uso de dados a vieses políticos e ideológicos. Caso não haja independência no trato dessas informações, Morelli vislumbra o risco do plano “financiar uma ferramenta de controle ao invés de promover a liberdade e ajuda ao cidadão”.

Para que isso não aconteça, o governo deve manter e garantir a independência do uso de dados no desenvolvimento de suas aplicações de inteligência artificial. É o que já ocorre, por exemplo, com as informações de clientes do Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e do Banco Central, que são mantidas em sigilo.

Ao discursar no lançamento do Plano, Lula afirmou que a “nossa inteligência artificial começa por aí: a gente criar uma estrutura para que todos os dados desse país estejam compilados e à disposição da sociedade brasileira. Não tem que ter segredo”.

Carla Rodrigues, coordenadora da área de Plataformas e Mercados Digitais da Data Privacy Brasil, uma organização não governamental focada em proteção de dados, afirma que um dos principais vetores do plano é a criação de uma infraestrutura nacional de dados robusta.

“Esse foco é fundamental porque a inteligência artificial depende diretamente da qualidade e da quantidade de dados disponíveis. Investir na infraestrutura de dados desde o início cria uma base sólida para o desenvolvimento subsequente de tecnologias de inteligência artificial”, afirma ela.

Um exemplo do que pode ocorrer caso não seja mantida a independência dos dados é o sistema de créditos sociais da China. Implementado a partir de 2014, ele combina diversas informações, desde históricos escolares até postagens em redes sociais, para gerar uma nota de cada cidadão.

Quanto maior a nota, maiores são os benefícios aos quais as pessoas têm acesso, como tratamento privilegiado em hospitais, escolas particulares e até direito a viajar. Por outro lado, cidadãos que criticam o governo, participam de cultos e cometem infrações de trânsito, por exemplo, têm suas notas rebaixadas, o que pode levar a restrições no acesso a serviços públicos, a créditos bancários e até mesmo a comprar uma casa própria.

Nesse sentido, Carla diz acreditar que o plano não pretende adotar políticas com restrições como as de países como a China. O que se pretende “é adaptar a inteligência artificial e outras tecnologias às necessidades e desafios locais, usando dados brasileiros para treinar e desenvolver sistemas de inteligência artificial de maneira ética e responsável”, além de “buscar melhorar as capacidades tecnológicas do país sem restringir o acesso ou a inovação global”.

Impulso real para o desenvolvimento da IA passa pela regulação e desburocratização

Outro ponto fundamental para o bom andamento do plano é a regulação não exagerada e o incentivo às empresas do setor de inteligência artificial, na opinião do senador Marcos Pontes. Ele avalia que a fim de criar um ambiente empresarial favorável, é preciso estabelecer uma regulamentação que incentive o desenvolvimento da tecnologia e que, ao mesmo tempo, estimule a iniciativa privada com colaboração internacional.

Para tanto, ele defende que o Ministério da Ciência e Tecnologia se envolva de forma mais enfática nas discussões do PL 2.338/23, também conhecido como o Marco Legal da Inteligência Artificial. De acordo com o senador, os investimentos previstos de R$ 23 bilhões no setor podem ser gravemente impactados se a regulamentação de inteligência artificial for mantida com a atual carga regulatória.

Ele explica que, da forma como está, o Marco Legal da Inteligência Artificial estabelece obrigações para a implementação de processos de controle que podem aumentar muito o custo do desenvolvimento de programas. O senador é um dos integrantes da Comissão do Senado encarregada de discutir o Projeto de Lei, que teve sua análise prorrogada até o dia 15 de setembro.

Como empreendedor, Tiago Morelli entende que, se o governo realmente deseja impulsionar a inteligência artificial no Brasil, o melhor que tem a fazer é desburocratizar, desregular e diminuir os impostos para o setor. “Isso sim iria fortalecer o empreendedorismo e abrir caminho para a inovação”, ao invés de o governo buscar ser “catalisador, regulador e executor”, disse.

No entanto, a visão presidencial parece desviar dessa abordagem. Durante o lançamento do plano, Lula afirmou que a inteligência artificial “nada mais é do que ter a capacidade de fazer a coletânea de todos os dados” e criticou as grandes empresas de tecnologia, as chamadas Big Techs, por fazer isso.

De acordo com o presidente, as Big Techs coletam os dados “sem pedir licença e sem pagar imposto, e ainda cobram dinheiro e ficam ricas por conta de divulgar coisas que não deveriam ser divulgadas”.

Plano propõe que seja criada uma IA brasileira, treinada a partir de dados e informações nacionais

Outro ponto que pode gerar controvérsias é a proposta de uma inteligência artificial treinada a partir de conteúdos brasileiros. Na visão de Lula, o Brasil tem história e conhecimento suficientes para criar e treinar sua própria inteligência artificial de modo a não depender de aplicações desenvolvidas por empresas de outros países.  

“Eu fiquei pensando se nós, um país 200 milhões de habitantes, um país que já completou 524 anos e tem um povo tão generoso, que vive uma diversidade tão extraordinária, esse país não pode criar o seu mesmo mecanismo, ao invés de ficar esperando que a inteligência artificial venha da China, venha dos Estados Unidos, venha da Coreia do Sul”, afirmou o presidente durante o lançamento do plano.

De acordo com Carla Rodrigues, as inteligências artificiais treinadas com dados locais podem ser mais hábeis em lidar com problemas específicos do Brasil e identificar oportunidades particulares do mercado local, como questões de infraestrutura, saúde pública, educação e outras áreas prioritárias.

Dessa forma, ela defende que, ao diversificar as fontes de dados para incluir mais informações de regiões como o Brasil, os desenvolvedores das inteligências artificiais podem ajudar a reduzir a concentração dos conteúdos em língua inglesa de aplicações como Chat GPT e Gemini, e criar modelos de inteligência artificial mais equitativos e representativos para o país.

Por outro lado, o senador Marcos Pontes relembra que o Brasil já possui dezenas de programas de inteligência artificial desenvolvidos em território nacional, em diversos setores da indústria e do agronegócio. Há, inclusive, um concorrente do ChatGPT, chamado MariTalk, criado por uma startup nacional de pesquisadores da UNICAMP.

O senador avalia que grande parte das discussões e preocupações que estão circundando sobre inteligência artificial hoje decorrem de ferramentas ligadas às redes sociais. “Contudo, não são essas ferramentas que vão mudar nossa economia e colocar o país como o expoente dessa nova revolução tecnológica. As pessoas precisam entender que inteligência artificial não é só ChatGPT e ferramentas que ajudam na criação de Memes, é muito mais, e que os desenvolvimentos mais importantes da inteligência artificial estão na indústria e no Agro”.

Escassez de mão de obra é outro desafio para implementação do plano de IA de Lula

A necessidade do emprego de mão de  obra qualificada é outro ponto que pode afetar a realização do plano. Ainda que disponha de profissionais com ampla formação e know how na área, o país enfrenta escassez de mão de obra e fuga de cérebros (quando os melhores profissionais migram para outras nações em busca de melhores condições de trabalho).

Para suprir essa lacuna, seria necessário investir na formação de mais profissionais para o setor, além de gerar incentivos a fim de tornar a pesquisa em inteligência artificial mais atraente. Marcos Rogério Estevam, gerente de projetos em dados e inteligência artificial da DataGrupo para o governo federal, explica que o plano é realmente ambicioso e abrange muitas e diferentes áreas o que faz com que a meta de quatro anos pareça agressiva.

Na sua visão, o ponto mais complexo é o dos recursos humanos. Apesar de ter profissionais e cientistas capacitados para tomarem a frente nos eixos propostos, a questão é se há mão de obra o suficiente para cumprir com tudo que foi programado. Ele entende que seria necessário formar um corpo maior de cientistas e pesquisadores para levar o plano adiante.

A fim de mitigar o problema da mão de obra, o plano busca contemplar a promoção de programas de capacitação e treinamento intensivo em inteligência artificial e áreas correlatas. Para tanto, prevê parcerias com instituições de ensino e iniciativas de qualificação profissional para formação de novos talentos e reciclagem profissional, conforme explica Carla Rodrigues.

Além das iniciativas locais, o plano ainda prevê a cooperação internacional com países que já possuem uma infraestrutura de inteligência artificial avançada. Na visão da equipe que elaborou o plano, essa colaboração pode permitir a transferência de conhecimento e tecnologia, aumentando o processo de implementação e capacitação das iniciativas.

Protagonista da corrida global pela IA em quatro anos

O Plano Brasileiro de Inteligência Artificial é fruto de uma solicitação feita pelo presidente Lula no início do ano ao Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia (CNCT). De acordo com o CNCT, a proposta começou a ser elaborada em março e envolveu a participação de mais de 300 profissionais, 117 instituições privadas, públicas e da sociedade civil.

Um dos objetivos do plano é fazer com que o Brasil seja protagonista global em inteligência artificial. Nesse sentido, mesmo com investimentos da ordem de R$ 23 bilhões, é preciso considerar que há países e empresas com anos à frente do Brasil na pesquisa e desenvolvimento em inteligência artificial.

Além do prazo exíguo, a experiência de nações que investem há anos no setor pode ser um empecilho para que o plano cumpra com sua função. Analistas internacionais afirmam que mesmo países desenvolvidos da Europa e Ásia dificilmente conseguirão competir efetivamente com os Estados Unidos e a China nesse setor.

Carla Rodrigues afirmou que o prazo é desafiador, mas que a equipe que elaborou o plano desenhou metas mensuráveis para cada uma das 54 ações previstas, além de indicar sua fonte de recursos, o que melhora a viabilidade financeira dessas iniciativas. Outro ponto que faz com que a implementação seja plausível é a ênfase dada à rede de dados, fundamental para o desenvolvimento de tecnologias de inteligência artificial.

China e Estados Unidos, para se ter uma ideia, têm investido em computação quântica. Ainda que nenhum dos dois países tenha conseguido produzir um computador quântico, quando o fizerem, isso elevará de forma exponencial sua capacidade de processamento de dados e, portanto, a qualidade, amplitude e velocidade de suas soluções em inteligência artificial.

Diante desses avanços, dizer que o Brasil pretende ser protagonista global em inteligência artificial é praticamente o mesmo que dizer que o país deseja ser protagonista global em projetos espaciais.

De acordo com o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial, os EUA estariam destinando R$ 63 bilhões em investimentos públicos para pesquisa e desenvolvimento de inteligência artificial de 2021 a 2024, com estimativas de R$ 380 bilhões em investimentos privados apenas em 2023. Na China, o cenário se inverte, com R$ 306 bilhões estatais e R$ 39 bilhões privados destinados ao desenvolvimento da inteligência artificial.

Os R$ 23 bilhões brasileiros estão mais próximos do total investido pela Alemanha, R$ 29 bilhões.

Fonte: gazetadopovo

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