A ministra do Planejamento e Orçamento, Simone Tebet, citou restrições ao abono salarial entre as possíveis medidas do governo para equilibrar as contas federais e assim cumprir as metas fiscais.
A ideia tende a provocar divergências dentro do próprio governo, a começar pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), e atrair críticas do PT. Em ocasiões anteriores, Lula e seu partido atacaram iniciativas de contenção dos chamados gastos sociais.
A ministra afirmou que há dois eixos de revisão de gastos: um para correção de fraudes e erros estruturais, e outro de integração de políticas públicas. A limitação ao abono salarial entraria nesse segundo eixo.
O abono salarial é pago anualmente a trabalhadores com carteira assinada que recebam até dois salários mínimos (R$ 2.824) por mês. Hoje, um trabalhador com esse rendimento ganha pouco menos que o rendimento médio dos empregados com carteira assinada do setor privado – que foi de R$ 2.948 no trimestre encerrado em julho, segundo a pesquisa Pnad Contínua, do IBGE.
Instituído pelo artigo 239 da Constituição Federal, o abono consiste numa espécie de 14.º salário e seu valor pode chegar a um salário mínimo (R$ 1.412), para o caso de quem ficou empregado durante todo o ano de referência.
A sinalização da ministra foi feita no sentido de limitar o público-alvo do abono: o benefício passaria a ser pago somente a quem recebe até um salário mínimo.
Em um governo que concentra esforços em aumento de arrecadação, essa é uma das poucas propostas que apareceram no sentido de limitar despesas – em ocasiões anteriores, a própria Tebet chegou a falar em desvincular Previdência e outros benefícios do salário mínimo, e também houve discussões sobre a revisão dos pisos de gastos com saúde em educação. Esses debates, porém, foram interditados.
A sugestão de restringir o abono salarial não é nova. Observadores das contas públicas defendem há anos algum tipo de limitação. Restringir o benefício apenas para trabalhadores que ganham até um salário mínimo abriria espaço fiscal extra de R$ 256 bilhões em uma década, segundo estudo divulgado no ano passado por Gabriel Leal de Barros, economista-chefe da gestora Ryo Asset e ex-diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI).
Não é a primeira vez que o governo propõe mudanças no abono salarial. No governo de Jair Bolsonaro (PL), a reforma da Previdência também previa a limitação do benefício a quem ganha um piso salarial. O trecho, porém, foi retirado durante a tramitação no Congresso. Naquele momento, as economias esperadas eram da ordem de R$ 150 bilhões.
Por outro lado, defensores dos benefícios sociais podem questionar a medida, caso seja realmente adotada. No debate da desvinculação de salário mínimo e INSS, por exemplo, os ministros da Previdência e do Trabalho vieram a público criticar a iniciativa.
A Gazeta do Povo procurou o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). A pasta não quis se manifestar sobre os comentários da ministra Tebet. Afirmou que o assunto não está em pauta no MTE e que, como não há nenhuma discussão oficial sobre mudanças no benefício, não se pronunciará.
Marcus Pestana, diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), que acompanha e produz relatórios de análise das contas públicas, afirmou que, do ponto de vista econômico, o governo precisa equalizar os gastos e a arrecadação.
O coordenador do curso de Direito da Faculdade Belavista, Ricardo Castagna, concorda que é necessário equilibrar as contas. “Esse é um governo gastador, que quanto mais arrecada, mais amplia as despesas, e é uma torneira que não se fecha”.
No entanto, ele avalia que cortar o abono é fazer com que “os mais pobres paguem essa conta, uma medida de extrema injustiça social”. Castanho defende que há muitas “gorduras” que podem ser mexidas no Orçamento, como o aumento dos gastos com o funcionalismo público e a indexação de benefícios à inflação.
Governo federal tem contas no vermelho desde 2014, com apenas uma exceção
Desde 2014, durante a presidência de Dilma Rousseff (PT), o governo federal gasta mais do que arrecada, o que tem aumentado a dívida pública consecutivamente. Naquele ano, o déficit primário (o saldo antes do pagamento de juros da dívida) correspondeu a 0,4% do PIB. Logo saltou para 2,6% em 2016.
Nos anos seguintes, o percentual deficitário em relação ao PIB diminuiu, chegando a 1,3% em 2019. No entanto, em 2020, primeiro ano da pandemia de Covid-19, o aumento de gastos levou a um déficit de 9,8% do PIB. Na sequência, o governo Bolsonaro conseguiu derrubar o saldo negativo para 0,4% do PIB, e em 2022 alcançou o primeiro superávit desde 2014, equivalente a 0,5% do PIB, num contexto de crescimento econômico, contenção de gastos com pessoal, dividendos elevados de estatais e postergação de despesas com precatórios.
Em 2023, primeiro ano do governo Lula, o rombo voltou a saltar, chegando a 2,3% do PIB em meio à forte expansão de gastos permitida pela PEC da Transição, a “PEC fura-teto”.
Como as contas federais estão no vermelho antes mesmo o pagamento dos juros, a dívida pública cresce rapidamente e se aproxima de 80% do PIB.
Governo estabeleceu meta de déficit zero, mas está longe de cumpri-la
Segundo Marcus Pestana, da IFI, para que o governo recuperasse a saúde das finanças, de forma a estabilizar a trajetória da dívida, seria preciso chegar a um superávit de 1,4% do PIB por ano.
Mas um superávit dessa monta não consta nos horizontes do governo Lula, que para este ano se comprometeu a atingir o limite inferior de tolerância da meta de déficit zero. Na prática, isso significa permitir um resultado negativo de até 0,25% do PIB, ou cerca de R$ 29 bilhões.
Para 2025, a meta inicial era de superávit de 0,5% do PIB, mas ela já foi revisada para baixo, e agora é idêntica à de 2024: resultado neutro, com tolerância de 0,25% do PIB para mais ou para menos.
No acumulado deste ano até julho, o governo central acumulou déficit primário de aproximadamente R$ 78 bilhões. Para reduzir o rombo ao limite de tolerância da meta, portanto, o governo precisa baixá-lo em quase R$ 50 bilhões até o fim do ano.
O Relatório de Acompanhamento Fiscal (RAF) da IFI de agosto afirma que as projeções para o restante do ano não asseguram o cumprimento da meta fiscal.
De acordo com a instituição, os números indicam a necessidade de um esforço fiscal nos últimos cinco meses do ano, com uma ação combinada de reforço das receitas orçamentárias e controle das despesas públicas – ou seja, maior arrecadação e corte de gastos.
Sozinha, restrição ao abono não resolve desequilíbrio nas contas públicas
Nesse cenário, a adoção de restrições a benefícios como o abono salarial pode contribuir para o equilíbrio das contas. No entanto, sozinha, a medida não é suficiente. Em 2023, por exemplo, o governo gastou R$ 25 bilhões com o abono, ou 0,23% do PIB.
Além disso, o corte cogitado por Simone Tebet não afetaria o Orçamento deste ano, nem do próximo. Segundo a ministra, essas medidas só poderão ser discutidas com o Congresso no segundo semestre de 2025.
Assim, possíveis impactos apareceriam, no mínimo, a partir de 2026, último ano do mandato de Lula.
Abono salarial compõe renda, mas não necessariamente reduz a pobreza
Um dos principais argumentos de especialistas para justificar um corte no abono salarial é que, por ser destinado a pessoas que estão ou estiveram protegidas pela carteira assinada, recebendo até dois salários mínimos, o benefício não é tão eficaz em combater a pobreza. Nesse sentido, os recursos poderiam ser aplicado em políticas sociais mais efetivas, como o Bolsa Família, por exemplo.
Atualmente, os trabalhadores que recebem até dois salários mínimos têm direito ao abono. Para tanto, eles precisam estar cadastrados há mais de cinco anos no Fundo de Participação PIS-Pasep ou no Cadastro Nacional de Informações Sociais (CNIS). O abono é liberado dois anos depois do ano-base, no qual devem ter sido contabilizados, pelo menos, 30 dias trabalhados.
Assim, após dois anos, os beneficiários têm direito a receber até um salário mínimo, no valor correspondente ao vigente na data do pagamento. O benefício é pago na proporção dos dias trabalhados no ano-base.
A proporcionalidade no pagamento do benefício foi instituída no governo Dilma, em 2014. Até então, todos os trabalhadores com direito ao abono recebiam 100% do salário mínimo, independentemente de quanto tempo tivessem trabalhado de fato no ano de referência.
Com a mudança na lei, o pagamento passou a ser proporcional ao período trabalhado. Exemplo: se a pessoa esteve empregada com carteira assinada por seis meses no ano de referência (ou seja, 50% do ano), passou a receber 50% do valor do abono, e não mais 100%.
Joelson Sampaio, professor de Economia da FGV EESP, afirma que o abono tem o caráter de ajudar famílias de menor renda. Contudo, ele concorda com Tebet na avaliação de que poderia ficar restrito a quem recebe no máximo um piso salarial.
“O ponto é que pode voltar a ser para quem recebe um [salário mínimo] e, a partir disso, consolidar algumas políticas públicas em termos de junção. Há políticas com o mesmo objetivo de forma desagregada e, quando as agregam, podem ser mais eficazes”, diz.
“O benefício tem um papel para famílias de menor renda, mas uma revisão pode trazer um fôlego orçamentário para governo”, completa.
Fonte: gazetadopovo