Há 30 anos, o mundo debatia quais seriam as implicações geopolíticas diante da iminente ascensão da China e de alguns Estados na Ásia, como a Índia. De lá para cá, é inegável que a força da economia asiática provocou profundas mudanças na organização política internacional, sobretudo nos organismos de discussão multilateral.
Agora especialistas apontam que a África será o próximo grande agente de transformação na reorganização da política internacional. Como definiu Analúcia Danilevicz Pereira, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o mundo está de olho no “despertar africano” e suas implicações.
Com a consolidação dos jovens Estados da África, após duras guerras que se arrastaram pelos anos 1970 e 1980 para se libertar do colonialismo europeu, a União Africana (UA) começa a ganhar força dentro dos organismos de discussão multilateral. Provas de que esse movimento está crescendo estampam capas de jornais e ganham destaque no noticiário.
Em maio, por exemplo, o presidente de Senegal, Macky Sall, atual presidente da União Africana, apelou pela criação de uma agência de notação financeira pan-africana, pois, para ele, as agências internacionais “exageram o risco de investimento na África, aumentando o custo de financiamento”.
O atual presidente da UA argumentou que existem estudos a indicar que pelo menos 20% dos critérios de classificação para os países africanos se baseiam em fatores culturais ou linguísticos “bastante subjetivos” ou “alheios aos parâmetros” que medem a estabilidade de uma economia.
Recentemente, no último dia 9, o presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, anunciou um acordo de isenção de visto para visitantes quenianos. Ao lado de William Ruto, presidente do Quênia, eles celebraram o acordo de paz da Etiópia, intermediado pela União Africana e selado na primeira semana do mês.
O movimento pan-africano
O pan-africanismo não é um conceito novo quando se trata do desenvolvimento da África, embora atualmente ele dependa da capacidade de se construir uma visão contemporânea do estilo de vida “tradicional” africano, fundado em uma base coletivista e na mútua responsabilidade social entre os indivíduos. Como pensar e realizar esse movimento é a tarefa de uma geração de intelectuais.
A criação da Unidade Africana ocorreu em 1963. Em 2002, a organização foi transformada na União Africana, dando início a uma entidade com intenções pautadas nos moldes da União Europeia, que serviu para lançar as primeiras bases de um continente livre para a circulação de pessoas, um Parlamento continental, um tribunal pan-africano e um banco central, para que no futuro possa circular uma moeda única.
Conforme explica Anselmo Otavio, professor de relações internacionais da África e Oriente Médio na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), “quando se fala em pan-africanismo, é preciso destacar que não é um movimento novo. Ele começa no século XIX e ganha força nos processos de independência africana“.
O pesquisador destaca que após passar por um “período enfraquecido”, nos anos 2000, ressurgiu “a ideia de renascimento africano”, principalmente após as transformações no continente “que foram potencializadas pelas potências emergentes, como a China”.
Segundo ele, existe um notável avanço econômico no continente, que, associado aos objetivos internos de cada nação, possibilitou que os países africanos buscassem “criar alternativas para fortalecer o comércio local e promover o desenvolvimento econômico da região de forma autônoma, preservando os seus próprios interesses”.
“O que acontece no pan-africanismo, na atual conjuntura, é um hibridismo entre algumas características do movimento e o renascimento africano. Esse hibridismo traz consigo uma estratégia de contestações do sistema internacional, principalmente [no que diz respeito à] […] busca por um desenvolvimento mais autônomo, menos dependente. A busca por fortalecer o continente africano a partir da integração internacional”, disse.
O maior desafio do movimento pan-africano é garantir o fortalecimento da África no século XXI, em meio à pobreza, guerras, doenças e corrupção. Entretanto, como aponta Analúcia Danilevicz Pereira, a aproximação de países considerados rivais na região “é um primeiro passo para alavancar a região no mercado global”.
Segundo ela, é importante observar que “existe uma maturidade desses Estados, e é preciso considerar a jovialidade deles. Eles rapidamente amadureceram e definiram seus projetos nacionais”. Segundo ela, nesse sentido, tem havido um movimento nessa direção de união, “com a adesão de valores e do diálogo multilateral”.
“Tudo isso reflete o novo pan-africanismo, um espaço para discutir interesses coletivos e políticas que venham ao encontro do interesse desses Estados. Isso está se refletindo em um novo despertar de autonomia das nações africanas com relação às questões de políticas externas”, disse.
A especialista apontou que hoje é possível verificar uma “cooperação [de países da África] com eixos não tradicionais, como a China e a Rússia, que garantem essa capacidade de barganha desses países”. Ela entende que existe um elemento “que permanece ao longo desse processo”, que são “as condições de desenvolvimento econômico da região”.
“Quando se tem claramente quais são as demandas coletivas, qualquer movimento político se torna mais fluido”, declarou.
Novos fóruns globais de discussão
A chegada de outras esferas de discussão, a respeito do comércio internacional ou de questões de ordem geopolítica, faz parte das mudanças econômicas que o mundo inteiro está vivendo. Para os especialistas consultados pela Sputnik Brasil, a ascensão econômica do continente africano abriu novas portas para os diálogos bilaterais.
Analúcia Danilevicz Pereira citou como exemplo, nesse contexto, a ressignificação do BRICS e a importância da Organização para Cooperação de Xangai (OCX), organismos que ganharam força “em termos de interação, como os fóruns de diálogos bilaterais”. Ela aponta que “é um contexto no qual está se discutindo a nova ordem econômica internacional, com regras que sejam favoráveis aos países em desenvolvimento, que precisam diversificar suas bases econômicas”.
“É curioso como esse movimento ocorre silenciosamente enquanto existe um esvaziamento das organizações gerenciadas pelas grandes potências ocidentais, como a Organização Mundial do Comércio [OMC]. Por outras vias, fóruns e eixos, é preciso haver um novo padrão de estabelecimentos comerciais”, comentou.
Conforme apontou a especialista, o reflexo do “despertar” da África “vem sendo observado nas últimas décadas“, dado o crescimento mundial dos países da região desde 2014. “Isso revela um avanço significativo no fortalecimento desses novos eixos, que foram se materializando em um sistema de cooperação econômica que permitiu o deslocamento dos eixos econômicos”, afirmou.
Para ela, o contexto do conflito na Ucrânia evidenciou essa união no continente africano, pois em reuniões da Organização das Nações Unidas (ONU), “os países africanos foram assertivos ao acompanhar o voto chinês e entender o que está por trás desse conflito”.
Vale lembrar que, nesse sentido, entrou em vigor em 1º de janeiro de 2021 a Zona de Comércio Livre Continental Africana (AfCFTA, na sigla em inglês), mediante acordo assinado por quase todos os países, com exceção da Eritreia. A AfCFTA nasce com a promessa de ser uma oportunidade de desenvolvimento regional, em um momento em que a África e o mundo se recuperam da pandemia provocada pelo coronavírus.
Mesmo com os desafios, a AfCFTA é uma oportunidade que os países africanos têm de se desenvolver e solucionar antigos entraves comerciais e diplomáticos. Essa pode ser a maior zona de livre-comércio do mundo ao se considerar o número de habitantes que participam dela: 1,3 bilhão de pessoas, de acordo com dados do Banco Mundial.
Se operar como planejado, a zona de livre-comércio poderá elevar o produto interno bruto (PIB) da região em até 7%, ou US$ 450 bilhões (R$ 2,4 trilhões), até 2035, segundo estimativas do próprio Banco Mundial.
Como fica o Brasil?
A professora da UFRGS entende que as políticas do Brasil para a África oscilam muito ao longo dos anos, entre períodos dinâmicos, com a ideia de que a África é um lugar estratégico para o país, e muitos constrangimentos, principalmente nos anos 1980 e 1990. Em 2003, diz ela, “as relações foram retomadas, com circunstâncias favoráveis, em meio à desordem internacional, que permitiram ao Brasil lançar políticas direcionadas para o continente”.
“O que precisa ser observado é que a África é uma região extremamente favorável para as interseções internacionais, com muito espaço para o desenvolvimento econômico”, comentou, acrescentando que isso fica muito claro quando “observamos os documentos de política externa da Rússia, China, Índia e Oriente Médio“.
Segundo ela, “se o Brasil, novamente, perder essa oportunidade, esses espaços serão ocupados por outros países”.
Na avaliação de Anselmo Otavio, o continente africano que o Brasil vai encontrar, a partir da eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, “é dinâmico, cada vez mais articulado e querendo soluções para os seus desafios. E o Brasil pode apresentar grandes características que são positivas para o fortalecimento de relações diplomáticas com países africanos, principalmente no âmbito Sul–Sul”.
Segundo ele, o Brasil é o segundo país do mundo com maior população negra, “e, por isso, a criação de uma política para a África passa por uma questão social, de conhecer mais a nossa própria sociedade”.
Fonte: sputniknewsbrasil