Voltando aos anos 1940, o episódio do bombardeio de Dresden, que deixou um total de mais de 25 mil mortes, é considerado por muitos um crime de guerra cometido pelas potências ocidentais, sobretudo porque a cidade alemã não se tratava de um objetivo militar significativo. O cenário de desolação deixado em Dresden após o bombardeio Aliado, contudo, parece ter estabelecido uma espécie de padrão nas mentes de determinados politicos no Ocidente até os dias atuais, cujas imagens são semelhantes ao que se observou em países como Afeganistão, Iraque e Síria e, mais recentemente, em Gaza. Afinal, o que explicaria a necessidade de aterrorizar civis para atingir objetivos militares ou mesmo políticos? Nenhum líder da época da Segunda Guerra Mundial, seja ele Winston Churchill ou Franklin Roosevelt, seria capaz de responder com clareza. Tampouco falta clareza e razoabilidade ao atual líder israelense, Benjamin Netanyahu, em justificar a morte de mais de 35 mil palestinos para a obtenção de seus objetivos militares, anunciados em outubro de 2023, de destruir o Hamas. É essa incongruência latente que tem levado milhares de estudantes a protestarem em campus universitários nos Estados Unidos, principal potência apoiadora de Israel. Contudo, não é só na América que tais protestos têm ganhado corpo, também na Europa temos visto um número cada vez maior de pessoas protestando contra as medidas adotadas pelos governos ocidentais de apoiar a barbárie testemunhada hoje no Oriente Médio.
Tanto no caso das bombas incendárias lançadas sobre Dresden, como nos ataques aéreos implementados por Israel em Gaza, a devastação causada em ambas as situações não condiz de forma alguma com os objetivos militares anunciados. Os Aliados, isso sim, sabiam que os efeitos de suas bombas sobre a cidade alemã resultariam num clima de verdadeiro terror para a população local; do mesmo modo Tel Aviv também tem ciência de que os danos causados em Gaza desde o início de suas operações, em outubro do ano passado, sujeitam a populaçao palestina a um cenário de caos e de desespero profundos.
Seja como for, fato é que a situação atual no Oriente Médio é ainda mais paradoxal, posto que perpetrada justamente por Israel, cujo próprio povo foi quem sofreu os horrores da Segunda Guerra Mundial, em especial o Holocausto. Dado o acirramento do antissemitismo europeu em finais do século XIX e no começo do século XX, os judeus se tornaram os “desumanizados” de então, culminando na admissibilidade de sua destruição na mente dos dirigentes nazistas, que possuíam nas mãos o controle de um poderoso Estado nacional.
Hoje um processo de “desumanização” ocorre com os palestinos de Gaza, privados de uma série de itens básicos de sobrevivência e, muitas vezes, até mesmo de suas próprias vidas, em função dos ataques do Exército israelense. Tudo isso acontece ao mesmo tempo com a anuência de americanos e europeus, que se dizem defensores dos “direitos humanos” e das liberdades individuais. Onde está agora o conceito de “responsabilidade de proteger”, tão proclamado pelo Ocidente em meados dos anos 2000, que fez com que a OTAN interviesse em países como Líbia, Síria e Iêmen? Onde está o lema revolucionário de “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, inaugurado pela Revolução Francesa de 1789? Onde se encontram os ideais iluministas da razão e da dignidade da pessoa humana, dos quais os europeus se orgulham tanto? Foi no rescaldo do assassinato em escala industrial conduzido pelos nazistas, nos ataques ocidentais a Dresden e no uso da bomba atômica em Hiroshima e Nagasaki que ficou provada a hipocrisia do Ocidente com relação ao que pregam em termos de valores. Em nome de uma pseudossuperioridade racial e moral é que seus políticos apoiam medidas como o fornecimento de apoio financeiro e militar às ações de Israel em Gaza.
© AP Photo / Hatem AliCrianças palestinas aguardam entrega de comida em abrigo improvisado na Faixa de Gaza. Rafah, 13 de novembro de 2023
Crianças palestinas aguardam entrega de comida em abrigo improvisado na Faixa de Gaza. Rafah, 13 de novembro de 2023
© AP Photo / Hatem Ali
O Estado de Israel, por outro lado, fundado por um dos povos mais oprimidos ao longo de toda a história, hoje tem se colocado numa posição de opressor, nesse caso dos palestinos, que sequer foram os culpados por todo o sofrimento infligido sobre os judeus nos séculos anteriores.
O principal algoz dos judeus foi sim o Estado “civilizado” da Alemanha — terra de Kant, Beethoven e Goethe — que construiu câmaras de gás e outros “complexos da morte” para pôr fim a uma nação inteira.
A partir dessa experiência, dado o remorso europeu com o que suas próprias mãos produziram, a solução encontrada no pós-guerra foi o estabelecimento do Estado de Israel na região do antigo mandato britânico da Palestina. Como resultado, portanto, da alocação de centenas de milhares de judeus vindos de diversas partes do mundo ao território escolhido para a fundação de Israel, outras centenas de milhares de famílias palestinas foram forçadas a deixar suas casas, evidenciando uma injustiça histórica cujas consequências são sentidas até hoje e continuarão a ser sentidas ainda por muitos anos.
No mais, longe de redimir-se perante a comunidade internacional — ou perante a “Maioria Global”, melhor dizendo —, o Ocidente, que mantém-se firme em seu apoio a Israel, não tem mais condições de defender sua posição de “mocinho”. Como demonstrado por Dresden, por Hiroshima, Nagasaki, Líbia, Afeganistão e tantos outros exemplos — o mais recente deles sendo Gaza —, as promessas de um mundo pacífico comandado pelas democracias liberais do Ocidente se mostraram nada mais nada menos do que farsas. Por outro lado, a trágica história vivenciada pelos judeus com o Holocausto foi transformada em justificativa para a admissibilidade de quaisquer ações ilegais que Israel julgar necessária para sua “segurança”, ainda que essas ações resultem em um sofrimento humano desmedido para um povo que nunca teve relação com as atrocidades cometidas pelos europeus nos séculos XIX e XX. Esse é certamente um dos paradoxos históricos e políticos mais tristes de nossos tempos. Também é uma prova de que o ser humano não é perfectível como queriam crer alguns. Pelo contrário, ele parece estar piorando ainda mais.
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Fonte: sputniknewsbrasil