Em “Zerovinteum”, o Planet Hemp descrevia o Rio de Janeiro como uma “cidade hardcore”, com “polícia, cocaína, Comando Vermelho”, onde “fazem sua segurança assassinando menor”. Desde 1997, quando lançou o álbum “Os Cães Ladram Mas a Caravana Não Para”, a banda ganhou e perdeu integrantes, se desfez e se refez, mas o cenário das letras não parece ter mudado muito.
Na verdade, para Marcelo D2, fundador do grupo, aquelas rimas fazem até mais sentido hoje. “Bolsonaro está aí há 30 anos. Liberdade de expressão, milícia, chacina, isso era um universo que a gente enxergava no Rio em 1997. E, infelizmente, é o que o Rio exportou [para o Brasil].”
O Planet Hemp não sobreviveu àquele Brasil e se separou por volta de 2003 em meio a disputas criativas e desavenças entre os integrantes, mas sua obra só ficou mais relevante ao longo dos anos. É um processo que levou ao retorno da banda para shows, há cerca de dez anos e, nesta semana, a “Jardineiros”, seu primeiro álbum de estúdio em 22 anos.
Segundo o rapper BNegão, esse título vem de dois temas que são caros ao quinteto -o autocultivo de maconha e o plantio de ideias. Isso porque aqueles assuntos introduzidos pelo grupo há quase três décadas, entre os quais a legalização de maconha, acabaram influenciando as novas gerações para além do que os próprios músicos imaginavam.
“Ao longo dos anos, encontrei muitos ativistas, alguns que são linha de frente no Brasil, dizendo que começaram a se ligar nas questões sociais a partir das letras do Planet. Então tinha muita cobrança, do tipo ‘cadê vocês no meio dessa loucura toda que estamos vivendo?’”, ele diz.
A “ex-quadrilha da fumaça”, como eles se autodenominam, retorna provocativa, atualizando os debates sobre o tráfico num momento em que a maconha foi descriminalizada em cidades da Holanda, Uruguai e Estados Unidos, entre outros lugares. Na nova “Remedinho”, ambientada no meio de uma bad trip, o Planet Hemp trata de hipocrisias, dizendo que “remedinho pode, cocaína não, cervejinha pode, bagulhinho não”.
“O tráfico é muito mais maléfico do que qualquer tipo de uso de droga”, diz D2. “É um absurdo a gente tratar isso como caso de polícia, prender o usuário em vez de levar a um psicólogo ou médico. Acho tão absurdo que, quando isso sai da minha boca, sinto que estou falando com uma criança de dois anos.”
Em “Puxa Fumo”, o refrão diz que “o presidente já fumou, o filho dele já fumou, ninguém morreu, olha a viagem”. BNegão fala que “o esquema é e sempre foi um olho no peixe e outro no gado”, e D2 também faz referência ao presidente Jair Bolsonaro, do Partido Liberal, citando um verso do samba-enredo da Mangueira de 2019 -“não há futuro sem partilha e nem messias com arma na mão”.
“A questão do Planet Hemp não era só dizer ‘vamos fumar maconha, ficar chapadão’”, diz D2. “Para a gente, a questão política, o tráfico e a ilegalidade sempre foram muito mais importantes. Essa questão é o que leva a maioria negra para as cadeias, que faz a polícia entrar nas favelas e chacinar pessoas. Isso é o que alimenta o pensamento de achar que um jovem pode morrer porque ‘era traficante’.”
Para BNegão, a discussão sobre a legalização no Brasil está no caminho errado, a partir do projeto de lei 399/15, que trata do plantio de maconha para uso científico e medicinal. “Está caminhando para ser um lance comandado pelo agronegócio. Vão meter uma maconha transgênica bizarra que só eles vão poder fazer, por causa desse PL tosco.”
Segundo o rapper, que reforça no novo álbum o antigo mantra da banda, “não compre, plante”, o projeto de lei tem potencial de limitar o cultivo de maconha a grandes agricultores. “O óleo [de cannabis] resolve a vida de tanta gente, é ridículo ter que pagar caro por isso. Era para estar no SUS, é barato de fazer. E vai ficar uma coisa elitizada porque a lei é só para os gaviões -que sempre estiveram contra, são proibicionistas e agora vão falar que está certo porque vão lucrar.”
Musicalmente, o Planet Hemp também está renovado. Com a ajuda do produtor Nave e do duo Tropkillaz, a banda expande o rap de guitarras com batidas eletrônicas, coros, instrumentos de sopro e uma diversidade de estilos. Estão lá as bases de rap, as influências de dub e afrobeat e os samples -o mais criativo é o trecho de “Bateu Uma Onda Forte”, de MC Carol, em “Onda Forte”.
E há também, claro, o hardcore e o punk que marcou o Planet Hemp. “Como não tem beatmaker, nesse setor da banda eu sou o punkmaker”, afirma Nobru, autor dos instrumentais de algumas dessas faixas mais pesadas.
A banda destaca o entrosamento desse núcleo roqueiro, que hoje tem Formigão, baixista remanescente da formação original, Pedro Garcia, baterista do grupo desde o fim dos anos 1990, e Nobru, que substituiu Rafael Crespo na década passada. “O Planet precisa disso até para diferenciar o que é o meu trabalho solo, ou do Bernardo [BNegão]. Essa energia vem muito da guitarra”, diz D2.
A música “O Ritmo e a Raiva” marca o reencontro do Planet Hemp com Black Alien, rapper que fez parte da banda mas passou anos brigado com D2. “Minha relação com ele sempre foi de briga, de porradaria, meio de irmão. Na nossa juventude era assim, mas agora, ficando velho, não tem mais isso”, ele diz. “Tê-lo nesse disco era essencial.”
Na faixa, D2 rima de maneira narrativa sobre a criação do Planet Hemp nos anos 1990 com Skunk, rapper que morreu antes mesmo do lançamento de “Usuário”, disco de estreia do grupo -a relação dos amigos é explorada no filme “Legalize Já”. Em sua estrofe, Black Alien recorda a prisão da banda em 1997, em evento midiático que marcou a história dos artistas.
Sempre perseguido pelo seu discurso e atitude, o Planet Hemp foi, na visão de BNegão, um “acidente dentro da música brasileira”. “É uma banda underground que habita o mainstream. Antes de entrar, eu já via isso de fora. Você tem uma banda que faz um som pesado, crítico e falando sobre maconha? Isso não tem como dar certo -não nesse nível.”
Ele lembra de quando “Usuário” foi lançado, e a banda tinha força nos shows -para 500 a mil pessoas-, mas ninguém tinha coragem de tocar as músicas no rádio, e na MTV só passava de madrugada. Foi só depois de um ano do álbum, e quando um pessoal novo, como diz o rapper, chegou na gravadora que eles decolaram.
“Em algum momento, alguma rádio tocou, ninguém foi preso, todo mundo começou a tocar, estourou o negócio, e aí virou uma loucura”, diz BNegão.
Para D2, a prisão em 1997, sob acusação de apologia da maconha, foi o ápice das perseguições. “A gente estava aparecendo na TV, e todo mundo assim meio curvado. Minha mãe falou que a gente não poderia abaixar a cabeça, que precisavam da gente. Ficamos abatidos.”
O rapper diz que a prisão foi o primeiro baque que gerou o fim da banda. “Já estávamos querendo fazer coisas diferentes. O BNegão tinha os projetos dele, eu queria fazer um álbum solo, o Rafael [Crespo] tinha as paradas dele. Ainda fizemos turnês, gravamos disco, fizemos um ‘ao vivo’, mas aquilo foi uma freada gigante.”
Do acidente à prisão, passando pela morte de Skunk e pelas desavenças entre os integrantes, soa bastante improvável que o grupo imaginado pelos seus criadores estivesse em atividade quase 30 anos depois. “Virou uma banda de multidão”, diz BNegão. “E todas as nossas conversas eram baseadas em coisas underground. Nunca foi feito para multidão. É uma coisa maluca, porque ninguém nunca imaginou. Mas a gente foi indo. O Planet é isso. A gente vai fazendo.”
JARDINEIROS
Quando A partir de sexta (21)
Onde Nas plataformas de streaming
Autor Planet Hemp
Gravadora Sony