Há 55 anos, Gurgel começava sonho de ser fabricante brasileira de carros


Com a recente promessa da Lecar de investir R$ 870 milhões em uma fábrica no Espírito Santo, voltam as perspectivas de o Brasil ter novamente uma fabricante de veículos nacional. Mas esse texto não é sobre o presente. Mas um tributo a mais conhecida marca de carros brasileira. Há exatos 55 anos, em 1º de setembro de 1969, o engenheiro João Augusto Conrado do Amaral Gurgel realizava um sonho e fundava a Gurgel Motores.

A narrativa, na verdade, começa 20 anos antes. Em 1949, Gurgel se formava na Escola Politécnica de São Paulo. Seu projeto de conclusão da graduação era um carro popular que atendesse às necessidades brasileiras.

O nome era sugestivo: Tião. Reza a lenda que seu orientador jogou um balde de água fria na ideia mirabolante falando que “carro não é algo que se fabrica, carro se compra”. Gurgel apresentou uma proposta de guindaste para finalizar seus estudos. A ideia do automóvel, no entanto, nunca saiu de seu imaginário.

Começou fazendo karts e pequenos modelos infantis. Eram bem feitos, funcionais com motores monocilíndricos e capacidade para duas crianças.

Em setembro de 1969 a coisa ficou mais séria. Ainda em São Paulo, Gurgel fabricou seu primeiro carro: Ipanema. A história da marca traz nomes dos veículos bem enraizados do Brasil, principalmente de tribos indígenas.

Tratava-se de um bugre com capota de lona e feito de plástico reforçado com fibra de vidro. Usava componentes (suspensão e motor a ar 1.6) da Volkswagen. A clássica mecânica de Fusca ajudava na imagem de confiabilidade.

Surpreendeu tanto por sua capacidade no fora de estrada que, quatro anos depois, o Ipanema ficou mais robusto e foi transformado em uma espécie de jipe, com linhas bem quadradas. O nome? Xavante.

Gurgel registrou a patente do chamado Plasteel, um chassi que misturava plástico e aço. A carroceria do Xavante continuava a ser feita de plástico reforçado com fibra de vidro – e agora tinha um estepe sobre o capô. As rodas vinham calçadas em pneus de uso misto.

A novidade era o Selectraction, que garantia um bom desempenho off-road. A tecnologia da época consistia, por meio de alavancas, em frear a roda que patinava, por exemplo, e transferir a força para a outra roda com mais aderência e assim vencer o obstáculo – o que faz o diferencial nos dias atuais ou o sistema Locker da Fiat.

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O Xavante foi um dos principais produtos da Gurgel, perdurando quase até o fim da empresa. Caiu nas graças do Exército Brasileiro, que comprou um grande lote – havia uma versão específica para as Forças Armadas. Na sequência vieram as evoluções, X-10 e X-12, este último uma variante civil.

Com o sucesso, Gurgel resolver expandir o negócio e, em julho 1973, comprou um terreno em Rio Claro, no interior de São Paulo, para construir uma fábrica maior, que ficaria pronta dois anos mais tarde.

Nesse ínterim, outro passo ousado foi dado: um projeto de carro elétrico. O nome era mais uma homenagem ao Brasil: Itaipu E150, referente a usina hidrelétrica no Paraná. O carrinho minimalista de apenas dois lugares e design geométrico teve 27 protótipos produzidos. Pesava 460 kg, sendo 320 kg apenas das baterias.

A velocidade máxima dos primeiros modelos chegava a 30 km/h – os últimos atingiam 60 km/h. Apesar da previsão de começar a ser produzido em série a partir de dezembro de 1975 – com a expansão da fábrica de Rio Claro –, o Itaipu sofreu naquela época com problemas que são uma grande questão para os veículos elétricos atuais: peso das baterias, autonomia e durabilidade.

O modelo parou na fase conceitual e os protótipos viraram item de colecionador. Se tivesse sido produzido em série, o Itaipu seria o primeiro elétrico feito no Brasil — embora possa ser considerado como tal, uma primazia da Gurgel.  

Mais tarde, em 1980, Gurgel ainda apostaria no Itaipu E400, um furgão também elétrico que fez parte da frota de empresas brasileiras de eletricidade, mas também durou pouco. Tinha o equivalente a 11 cv, 80 quilômetros de autonomia e as baterias levavam até dez horas para serem recarregadas.

Voltando a 1976, o X12 passou a ter teto rígido, faróis embutidos na carroceria e um guincho na dianteira com 25 metros de extensão para encarar situações no fora de estrada. Em 1979, Gurgel lançou o furgão X15 – e suas variantes – e expôs sua linha de produtos no importante Salão de Genebra, na Suíça. Nessa época a gama da Gurgel chegava a ter uma gama de dez modelos – todos movidos a gasolina ou álcool.

O empresário não era muito a favor do combustível vegetal. Dizia que era melhor “usar as terras para o plantio de alimentos do que para alimentar veículos”.

No início dos anos 1980 a Gurgel resolve apostar no XEF, um sedã de duas portas e com três bancos dianteiros. Tinha apenas 3,12 metros (um VW up! tem 3,68 m), 680 kg e mecânica da Volkswagen Brasília. O tamanho diminuto, a falta de capacidade para levar grandes bagagens e, sobretudo, o preço prejudicaram as vendar do mini sedã.

Nos anos seguintes, o X12 – principal modelo da Gurgel e que foi rebatizado para Tocantins – passou por diversas atualizações. Até que, em 1984, surgiu o Carajás, uma espécie de SUV da época com motor 1.8 de origem VW e refrigeração líquida – e não a ar como os demais. O desenho era quadradão, com o estepe em cima do capô. A suspensão era independente nas quatro rodas. 

Em 7 de setembro 1987, João do Amaral Gurgel ousa novamente. Cria o CENA – sigla para Carro Econômico Nacional. O carro foi projetado para o ser o veículo mais barato vendido no Brasil.

Era pequeno, frágil e usava motores VW modificados: dois cilindros, 650 cm³ (com 26 cv) ou 800 cm³ (com 32 cv) refrigerados a água – à época diziam que era motor de Fusca 1.200/1.300 cortados ao meio, uma mentira.

O nome CENA, por sua vez, foi alvo de conflito com a família do piloto brasileiro Ayrton Senna. Em 1988, saía o CENA e surgia o icônico BR800. O número foi devido à cilindrada do motor – a Gurgel abandonou o de menor deslocamento.

Gurgel fez uma campanha agressiva de comercialização do novo modelo. A única forma de adquirir o produto era comprando ações da Gurgel Motores S/A, uma ideia para capitalizar a companhia e, com isso, expandir a produção. A campanha citava outro lendário empresário automotivo de sucesso: “se Henry Ford o convidasse para ser seu sócio, você não aceitaria?”.

E deu certo: 8 mil pessoas aderiram ao projeto. O carro valia cerca de US$ 3 mil dólares e outros US$ 1.500 foram angariados em venda de participação. Quem comprou se deu bem: um ano depois o BR 800 tinha ágio de 100% e mais de mil unidades emplacadas.

O sonho de ter um carro compacto 100% nacional durou pouco, entre 1988 e 1991. Mas teve seus méritos enquanto durou. O motor 0,8 litro, feito de alumínio e silício, foi um deles. Projetado pela própria Gurgel, funcionava bem com refrigeração a água e sistema de ignição que dispensava distribuidor.

Mas não se entendia bem com a transmissão de relações longas, vinda a picape Chevy 500. O resultado era pouca agilidade. Outro problema ficava por conta da ventilação precária da cabine, o que tentou ser resolvido com uma escotilha pequena na capota. Prejudicado pela legislação tributária e pelos fortes concorrentes no mercado, o BR 800 deixou de ser fabricado quatro anos depois do lançamento.

A década de 90, que tinha tudo para alavancar a Gurgel, na verdade, teve efeito oposto. O governo do presidente Fernando Collor abriu o mercado e isentou todos os carros com motor menos que 1.0 de IPI – e provocou a vinda de uma enxurrada de fabricantes com modelos mais baratos que o BR800 e, claro com mais dinheiro para investir.

Foi a vez do Fiat Uno virar o popular mais vendido, uma vez que a Chevrolet, Ford e Volkswagen apostaram em carros mais pesados (Chevette Junior, Escord Hobby e Gol 1000).

O BR800 ainda evolui para o Supermini em 1992 para rivalizar com a grande concorrência. O carrinho tinha 3,19 metros de comprimento e apenas 1,90 m de distância entre-eixos.

A Gurgel teve tempo de pensar no projeto Delta para tentar sobreviver. Era outro carro de baixo de custo que tinha, inclusive, previsão de ser feito no Ceará. Porém, o governo do Estado não honrou com os compromissos e o modelo nunca saiu do papel.

Em meados de 1993, o fim do fabricante nacional estava próximo. A Gurgel entra em concordata. A última tentativa de salvar a marca – e a fábrica – foi o pedido de empréstimo de US$ 20 milhões ao Governo Federal. Um ano depois, em 1994, a Gurgel declara falência – 40 mil carros foram vendidos em toda a história –, porém o sonho, a trajetória e a contribuição de João Augusto Conrado do Amaral Gurgel – que faleceu em 2009 – seguem na memória 50 anos depois.

A história da Gurgel volta à tona em 2004. Mas de uma forma bem esquisita. Um emprésario paulista aproveitou a prescrição do registro do nome Gurgel no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) e o comprou – inclusive com o logotipo. Diz-se que pagou módicos R$ 850. Fato é que a “nova marca” comercializa triciclos e empilhadeiras chinesas e a sede da empresa está localizada na cidade de Três Lagoas, no Mato Grosso do Sul.

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Fonte: direitonews

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