Guerra Fria 2.0: o que está em jogo na disputa entre EUA e China na região do Indo-Pacífico?


Há intelectuais que já enxergam o declínio do império norte-americano com base na experiência de seu antecessor hegemônico: o Reino Unido do período entre guerras, polvilhado por conflitos bélicos, pandemia (da gripe espanhola) e crises econômicas na primeira metade do século 20 — tal como, hoje, se desenha no horizonte dos EUA.

É possível adicionar o fator medo a essa equação, já que a ascensão da China como potência regional no Indo-Pacífico e mundial preocupa a cúpula do governo norte-americano.
Na tentativa de frear o dragão chinês, os EUA impuseram restrições ao acesso da China à tecnologia de semicondutores do país, acrescentando medidas destinadas a impedir o esforço de Pequim para desenvolver sua própria indústria de chips e avançar as capacidades militares do país.
A constante presença militar na região do Indo-Pacífico também é um dos tentáculos geopolíticos do governo de Joe Biden, com o Comando Indo-Pacífico dos EUA realizando ações de treinamento militar constantemente com Japão, Indonésia, Coreia do Sul e outras forças aliadas.
© Foto / Forças Aéreas dos EUA / Tylir MeyerCaças F-22 Raptors das Forças Aéreas dos EUA sobrevoam o oceano Pacífico em 20 de dezembro de 2022

Caças F-22 Raptors das Forças Aéreas dos EUA sobrevoam o oceano Pacífico em 20 de dezembro de 2022 - Sputnik Brasil, 1920, 28.12.2022

Caças F-22 Raptors das Forças Aéreas dos EUA sobrevoam o oceano Pacífico em 20 de dezembro de 2022
A ação fica cristalina no compilado de estratégias para a região, lançado pelo governo Biden em fevereiro deste ano, ante China e Rússia se impondo como polos de poder mundial.
Com as medidas de restrição e manobras de defesa, Washington mira o setor tecnológico chinês e o militar, já que exércitos ao redor do mundo dependem de tecnologia de ponta.
Porém, a agenda norte-americana encontra um entrave substancial: países do Indo-Pacífico que cultivam boas relações econômicas com a China e temem o poderio militar de Pequim.
Para esses países, aderir às ações de Washington pode significar a perda de receitas em exportações à China e de vantagens no âmbito da Nova Rota da Seda e em negociações na Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN).
O montante em jogo é alto: Japão e Coreia do Sul faturaram, somente em 2020, mais de US$ 130 bilhões (R$ 683 bilhões) em exportações para a China.
Além disso, o crescente poderio militar da China pode punir países da região, que são essencialmente marítimos, bloqueando acesso a territórios.
Wang Yi, ministro das Relações Exteriores da China, fala durante a 77ª Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas na sede da ONU em Nova York, EUA, 24 de setembro de 2022 - Sputnik Brasil, 1920, 25.12.2022

O que os avanços dos EUA sobre aliados chineses indicam?

Diego Pautasso, doutor em ciência política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e autor do livro “China e Rússia no Pós Guerra Fria”, disse à Sputnik Brasil que o que está em jogo nessa tentativa dos Estados Unidos para isolar Pequim na região é a transição sistêmica.

“Os Estados Unidos sabem que a China é o principal polo de poder desafiante, que é um país que está erodindo as bases da hegemonia americana e, portanto, os Estados Unidos traçam uma estratégia para tentar interditar, dificultar e criar graves problemas ao desenvolvimento e à ascensão geopolítica da China”, apontou.

Segundo Pautasso, na verdade, a política de contenção dos Estados Unidos à China é o núcleo da rivalidade sino-estadunidense que, por sua vez, é o núcleo da transição de poder no mundo.
A queda de braço afeta o sistema internacional como um todo e, obviamente, tem desdobramentos para toda a região da bacia do Pacífico e do Indo-Pacífico de uma maneira geral — considerando que o eixo e o epicentro da economia mundial se deslocou para lá, notou ele. “É evidente que isso impacta o conjunto das relações sistêmicas”, pontuou.
© Foto / Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA / Bridgette RodriguezFuzileiros navais dos EUA executam exercícios militares com equipe de apoio em Camp Hansen, Okinawa, no Japão, em 20 de dezembro de 2022

Fuzileiros navais dos EUA executam exercícios militares com equipe de apoio em Camp Hansen, Okinawa, no Japão, em 20 de dezembro de 2022 - Sputnik Brasil, 1920, 28.12.2022

Fuzileiros navais dos EUA executam exercícios militares com equipe de apoio em Camp Hansen, Okinawa, no Japão, em 20 de dezembro de 2022

É possível isolar a China na região?

Pautasso disse que os Estados Unidos buscam reeditar a mesma lógica da Guerra Fria para conter a China.

“Qual o problema? O problema é que a China é muito diferente da União Soviética em vários aspectos. Por isso, a Nova Guerra Fria corre o risco de naufragar. Algumas diferenças substantivas. Primeiro é que a União Soviética só conseguia ombrear e rivalizar com os Estados Unidos no campo estratégico-militar, em algumas tecnologias estratégicas, por exemplo, a missilística e a aeroespacial. Já a China não. A China não só rivaliza como está à frente num conjunto muito significativo de tecnologias: energia solar, motores elétricos, baterias, supercomputadores, produção de eletroeletrônicos. Há um conjunto muito grande de tecnologias que a China está à frente.”

Wang Yi, ministro das Relações Exteriores da China, antes de encontro com Antony Blinken, secretário de Estado dos EUA, durante a 77ª Assembleia Geral das Nações Unidas em Nova York, EUA, 23 de setembro de 2022 - Sputnik Brasil, 1920, 24.12.2022

O segundo ponto, prosseguiu ele, é que a União Soviética estava em grande medida circunscrita ao bloco, no qual havia uma identidade socialista. Diferentemente da atual China, que é o maior parceiro comercial de 140 países.
O professor explicou que a União Soviética não tinha condição de bancar o sistema do ponto de vista do financiamento, das relações comerciais, da criação de iniciativas político-diplomáticas e comerciais que transbordassem a sua esfera de influência para além do bloco estritamente socialista. A China, por sua vez, faz isso em escala global.

“O Produto Interno Bruto [PIB] chinês já é superior em poder de qualidade de compra, deve ultrapassar em dólar e a projeção para as próximas décadas é que venha a ser o dobro do PIB estadunidense. Então isso tem um impacto geopolítico extremamente grande. Os aliados americanos da Guerra Fria praticamente não tinham relações com a União Soviética, sobretudo os principais. Hoje, os principais aliados americanos, inclusive na Ásia, inclusive no Indo-Pacífico (Japão, Coreia do Sul, Índia, Austrália, entre outros), têm nas relações com a China o seu principal mercado”, elencou.

© Foto / Comando Indo-Pacífico dos EUA / William WallaceFuzileiros navais dos EUA em exercício militar simulando ataque de helicóptero em Okinawa, no Japão, em 13 de dezembro de 2022

Fuzileiros navais dos EUA em exercício militar simulando ataque de helicóptero em Okinawa, no Japão, em 13 de dezembro de 2022 - Sputnik Brasil, 1920, 28.12.2022

Fuzileiros navais dos EUA em exercício militar simulando ataque de helicóptero em Okinawa, no Japão, em 13 de dezembro de 2022
Na época da Guerra Fria, disse Pautasso, os Estados Unidos ofereciam toda a estrutura de “estabilidade do sistema”: ofereciam uma moeda, um financiamento, o seu mercado e um paradigma econômico e tecnológico.
Com isso, conseguiam fazer com que os países gravitassem em torno do polo hegemônico que era o Atlântico Norte, enfim, os Estados Unidos.
“Hoje, o que os Estados Unidos têm a oferecer é basicamente cooperação militar e uma estratégia securitária e de produção de rivalidades. Só que sem a contrapartida econômica, comercial e tecnológica que hoje é oferecida pela China aos países vizinhos e aos países do mundo de maneira geral. Portanto, essa estratégia de contenção, de tentativa de interditar uma economia das dimensões da economia chinesa é insuficiente porque é como tentar agarrar uma criança e tentar agarrar uma bola grande. Não há capacidade para isso. A economia chinesa transborda por todos os lados. E pior: isso vai precipitar o desenvolvimento da autossuficiência chinesa em setores sensíveis, entre eles o setor de semicondutores.”
© Foto / Comando Indo-Pacífico dos EUA / Skyler CombsCaça F-16 Fighting Falcon, da Força Aérea dos EUA, durante exercício militar na Coreia do Sul em 20 de dezembro de 2022

Caça F-16 Fighting Falcon, da Força Aérea dos EUA, durante exercício militar na Coreia do Sul em 20 de dezembro de 2022 - Sputnik Brasil, 1920, 28.12.2022

Caça F-16 Fighting Falcon, da Força Aérea dos EUA, durante exercício militar na Coreia do Sul em 20 de dezembro de 2022

A presença como um problema

Elias Jabbour, professor de economia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e autor do livro “China: o Socialismo do Século XXI”, lançado neste ano, afirmou que a estabilidade da região do Indo-Pacífico está em xeque.
Tentar isolar a China da Coreia, Japão e outros países dentro daquela região da Ásia, argumentou Jabbour, vai provocar instabilidade com propósito único de tentar minar as possibilidades da China alcançar a soberania tecnológica nas infraestruturas de semicondutores.
“A própria presença dos Estados Unidos na região hoje é um problema de segurança na região. Se observar o mapa da China, por exemplo, a China está cercada de bases militares. Os americanos fazem grandes lançamentos de Taiwan para demonstrar que eles são águas internacionais”, diz o professor da UERJ.
Isso levou a uma escalada que nesta semana levou Pequim a fazer uma grande operação de “invasão” do espaço aéreo de Taiwan.
“‘Invasão’ entre aspas porque Taiwan é parte da China. Então hoje, em certa medida, ao lado da Ucrânia e do conflito ucraniano, a região mais perigosa do mundo é o estreito de Taiwan. São os três pontos do mundo hoje em que eu vejo, como chamaria o velho marxista, onde a luta de classe atua em sua maior forma, que é onde a luta de imperialismo e povos da periferia se dá de forma mais intensa. Então, a presença americana já é um problema de segurança, de política, de economia. Os EUA estão querendo encurralar a Coreia do Sul, só que a maior parte das exportações da Coreia do Sul hoje são para a China”, observou.
© Foto / Comando Indo-Pacífico dos EUA / Chad J. PulliamAviões da Marinha dos EUA voam em esquadrão com caças 16s das Forças Armadas da Indonésia em 18 de dezembro de 2022

Aviões da Marinha dos EUA voam em esquadrão com caças 16s das Forças Armadas da Indonésia em 18 de dezembro de 2022 - Sputnik Brasil, 1920, 28.12.2022

Aviões da Marinha dos EUA voam em esquadrão com caças 16s das Forças Armadas da Indonésia em 18 de dezembro de 2022
Perguntado sobre a possibilidade de isolar a China na região, Jabbour deu uma resposta categórica: “Não”.
Isso porque todos os países ali dependem da China de alguma maneira no mercado de exportação e importação.
“Há muitas empresas chinesas migrando para países como Bangladesh, Vietnã, Laos e outros países. E todo mundo ali tem a China como seu principal mercado doméstico. É impossível isolar a China do mundo porque a China hoje é a principal parceira comercial de 140 países do mundo. Então é impossível isolar a China do seu entorno. É uma tarefa hercúlea”, ressaltou.
Joe Biden, presidente dos EUA, durante reunião com seu homólogo chinês, Xi Jinping (fora da foto), em 2021 - Sputnik Brasil, 1920, 26.12.2022

O escritor não vê nenhum benefício em potencial levados pelos EUA aos países do Indo-Pacífico.

“O que os americanos têm a oferecer, por exemplo, àqueles países como Camboja e o Laos, que hoje recebem grandes investimentos chineses em infraestruturas? O que os americanos podem entregar para Filipinas e Indonésia?”, questionou. “Eu não vejo nada. A não ser o discurso de instituições, democracia, como foi na Cúpula das Américas, em que os países latino-americanos ficaram ansiosos com um possível discurso do Biden oferecendo um grande pacote de investimentos em infraestruturas na região e o que veio foi discurso de democracia e instituições. Enfim, os americanos não tem nada a oferecer ao mundo faz tempo, não é? Cá entre nós”, concluiu.

© Foto / Força Aérea dos EUA / Chad J. PulliamCúter da Guarda Costeira dos EUA atracado em Sydney, na Austrália, em 14 de dezembro de 2022

Cúter da Guarda Costeira dos EUA atracado em Sydney, na Austrália, em 14 de dezembro de 2022 - Sputnik Brasil, 1920, 28.12.2022

Cúter da Guarda Costeira dos EUA atracado em Sydney, na Austrália, em 14 de dezembro de 2022

Fonte: sputniknewsbrasil

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