Governo quer PEC da Segurança para atropelar estados, mas governadores pedem autonomia sobre leis


A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) apresentada nessa quinta-feira (31) pelo ministro da Justiça e Segurança Pública Ricardo Lewandowski e pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) a governadores e ministros, que trata do Sistema Único de segurança Pública (Susp), é uma tentativa do governo de ampliar sua influência na segurança nos estados. Levandowski é um notório defensor de políticas de desencarceramento de presos e, por isso, analistas ouvidos pela reportagem temem que ele esteja tentando nacionalizar esse tipo de ideias.

Mas o plano do governo de emplacar a PEC da Segurança gerou grande resistência de governadores e pode caminhar no sentido oposto ao que o governo deseja. Isso porque governadores como os de Goiás, Ronaldo Caiado (União), do Espírito Santo, Renato Casagrande (PSB) e de Sergipe, de Fábio Mitidieri (PSD), usaram o debate público para defender a autonomia dos estados para legislar em assuntos de segurança, como processo e execução penal, ao invés de seguir a política do governo do PT.

Na prática isso quer dizer que os estados poderiam ter leis diferentes sobre assuntos como maioridade penal, acesso a armas, audiências de custódia e intensidade e estabelecimento de penas para crimes. Assim, estados com Assembleias Legislativas controladas pela oposição em tese poderiam ter leis mais duras – ao contrário do que deseja o governo do PT.

A apresentação da PEC da Segurança é a resposta política de Lula para um dos pontos mais fracos atribuídos a seu governo: a contenção da violência.

“Não dá para falar de segurança pública quando você tem uma legislação que protege muito mais o bandido que o cidadão. Se o cidadão for preso por roubar uma galinha, para tirar ele da cadeia é difícil, agora para tirar o traficante é um ou dois dias”, disse o governador do Sergipe a Lula e seus ministros durante a reunião.

Já governador do Rio de Janeiro Cláudio Castro (PL) disse que a União quer determinar políticas de segurança, mas não está claro quem vai pagar a conta dessas políticas. “Gasto R$ 13 bilhões [por ano] com segurança pública. O governo federal vai assumir isso?”, questionou.

Para o especialista em segurança pública Marcelo Almeida, esse é outro ponto de amplo debate. “A União quer o controle, mas os estados seguirão bancando? Isso não está claro e não faz muito sentido”.

A proposta do governo com a PEC é que os estados que aderirem às políticas nacionais de segurança pública poderão contar com verbas federais para complementar seus orçamentos de segurança.

“Pode ocorrer uma grande interferência federal nos estados e quando um estado não aderir à política nacional, ficará sem verbas federais. Isso é uma forma de obrigar a adesão a essa política”, afirma o advogado e especialista em segurança pública Alex Erno Breunig.

Veja as principais propostas da PEC da Segurança defendida pelo governo

  • Ampliar competências da União sobre estados: A PEC garante à União a ampliação de competência para definir linhas de atuação da política de segurança pública e defesa social, incluindo o sistema prisional (penitenciárias estaduais) com a proposta de políticas unificadas.
  • Constitucionalizar o Sistema Único de Segurança Pública (Susp): a PEC propõe a inclusão do Susp na Constituição para garantia, segundo a União, de maior força e abrangência. 
  • Novas competências da Polícia Federal (PF) e da Polícia Rodoviária Federal (PRF): Pela Proposta de Emenda à Constituição, a Polícia Federal também ficaria responsável por combater crimes ambientais, de organizações criminosas e milícias com repercussão interestadual ou internacional. Já a PRF atuaria também em ferrovias e hidrovias federais.
  • Padronizar protocolos e dados: a PEC indica a padronização de documentos como boletins de ocorrência, mandados de prisão e certidões de antecedentes criminais. A proposta também quer uma linguagem unificada entre as forças policiais.
  • Constitucionalizar o Fundo Nacional de Segurança Pública e Política Penitenciária: Essa alteração daria ao fundo a garantia de que as verbas não seriam contingenciadas (bloqueadas). Os recursos são destinados a projetos e ações que estejam de acordo com a política nacional de segurança pública e defesa social.

Analistas temem promoção de política de desencarceramento

Analistas ouvidos pela reportagem mostraram especial preocupação com os poderes que o governo Lula pode ganhar para definir políticas nacionais de segurança pública.

“Nos parece que o mais preocupante não é o que está escrito ou está sendo falado da PEC. O mais preocupante é o possível objetivo da proposta. Na minha avaliação, se pretende centralizar as competências da União e, principalmente, enfraquecer as polícias militares”, disse o analista Breunig.

O especialista também acredita na adoção de políticas incisivas de desencarceramento. Quando era ministro do Supremo, Lewandowski implementou uma política de audiências de custódia que colocou em liberdade cerca de meio milhão de presos em um período de oito anos.

“Tenho esse receio. O que é um fomento à criminalidade. A ideia [para infratores] de que cometer crimes não dá nada de punição é muito perigosa para a segurança pública. Penso que a Constituição teria que ser alterada para dar mais autonomia aos estados, não para diminuir a autonomia”, diz. Para o advogado, questões como porte de arma e cumprimento de penas deveriam ser competência legislativa dos estados e não atribuições da União.

Governadores elogiam iniciativa de debater segurança, mas querem mudanças na PEC

A maior parte dos governadores reunidos por Lula na quinta-feira elogiaram a iniciativa de se discutir o problema da segurança pública em âmbito nacional. Mas muitos, como Cláudio Castro (PL), do Rio, e Tarcísio de Freitas (Republicanos), de São Paulo, disseram que por si só a proposta de emenda constitucional como foi apresentada não será capaz de resolver o problema da violência.

A PEC é estudada há meses pelo Executivo, mas os governadores trataram a reunião como o início de um debate nacional.

Tarcísio de Freitas disse que o texto “não é um produto pronto” e que os governadores devem fazer as suas sugestões. “A gente teve um primeiro contato com o texto agora. É importante digerir esse texto, fazer proposições”, afirmou. Ele defendeu mudanças profundas na legislação penal e até no Estatuto da Criança e do Adolescente, mas diferente dos colegas de Goiás, do Sergipe e do Espírito Santo, deu a entender que essas alterações devam ocorrer nacionalmente no Congresso e não nas Assembleias Legislativas dos estados.

O governador de Goiás, Ronaldo Caiado (União), criticou a proposta, afirmando que o texto transfere competências que atualmente são dos governadores para a União e que isso é “inadmissível”. Caiado avalia que o papel do governo federal deve ser de apoio, e não de “imposição de regras” e que “se trata de uma usurpação de poder, uma invasão de prerrogativas que já são asseguradas aos governadores”. Atualmente pela Constituição compete aos estados gerir a segurança pública. Um dos argumentos é a especificidade de cada região.

Para o analista Marcelo Almeida, parece não ter havido articulações e debates conjuntos para a estruturação do texto da PEC, o que deve gerar um ponto de fragilidade na tramitação institucional até a aprovação. “Não nos pareceu ter havido um diálogo institucional entre os estados e o governo federal, muitos governadores disseram que ficaram sabendo pouco tempo antes do texto e se mostraram contrários, então acredito que haverá resistências no andamento e aprovação”.

A PEC é alvo de intensas críticas sob o argumento que redesenha a estrutura da segurança pública no Brasil, centralizando competências e expandindo o papel da União, o que pode fragilizar os estados e políticas de segurança adotadas por eles.

O governo federal diz que o objetivo da PEC também está pautado em uma coordenação nacional ao que chama de respostas rápidas e integradas ao combate do crime organizado, com atuação que transcende as fronteiras estaduais e até mesmo nacionais. “Fronteiras já são uma competência da União e olha o que temos observado nas últimas décadas, um avanço desenfreado do crime organizado, das facções que crescem com o tráfico internacional de drogas e armas em territórios dominados”, segue o especialista.

A PEC, que segundo Lula ainda pode sofrer alterações com sugestões dos estados, altera os artigos 21, 22, 23, 24 e 144 da Constituição.

O advogado Breunig afirma que o Susp, o Sistema Único de Segurança Pública mencionado na PEC, já havia sido criado em uma lei de 2018. “Não me parece que a ideia é criar algo novo nesse ponto, mas sim garantir que o governo federal faça a total coordenação, com a destinação ou retenção de verbas, assim com a ampliação de competências das polícias da União. Me parece que a ideia não é fazer o serviço das PMs, mas fazer quando for conveniente à União”, completa.

O especialista, que também é vice-presidente da Associação dos Oficiais da PM e dos Bombeiros Militares do Paraná (Assofepar), avalia que a competência para a prevenção e repressão ao tráfico e a atividade de polícia de fronteira já são da União. “No entanto, essa competência não tem sido exercida na plenitude, tanto que temos sérios problemas nessas áreas. Não precisa alterar nenhuma competência, basta instrumentalizar as polícias da União para que exerçam na plenitude suas competências atuais”.

Moro diz que se Lula estivesse preocupado com a segurança, trabalharia a favor, não contra

“Se o governo Lula realmente se importasse com segurança pública, trabalharia a favor e não contra o endurecimento da lei penal e processual penal. O veto contra a Lei 14.843 e o parecer da AGU [Advocacia Geral da União] para derrubá-la no STF são exemplos. Essa PEC da segurança pública é puro diversionismo”, alerta o ex-ministro da Justiça e hoje senador Sergio Moro (União-PR).

A Lei a qual Moro se refere prevê alteração de trechos da Lei de Execução Penal quanto ao monitoramento eletrônica do preso (tornozeleira), estipula realização de exame criminológico para progressão de regime e restringe o benefício da saída temporária de presos.

Presidente de Frente Parlamentar diz que PEC da segurança é uma “porcaria”

O ministro da Justiça Lewandowski destaca no texto da PEC que, diante do aumento da criminalidade organizada e da necessidade de uma política de segurança pública mais integrada, a mudança é fundamental e que, ao reunir forças e coordenar esforços entre a União, estados e municípios, a proposta quer criar uma base sólida e eficiente para a segurança pública brasileira, abrangendo da prevenção à repressão.

Tudo isso é contestado pelo presidente da Frente Parlamentar da Segurança Pública, o deputado federal Alberto Fraga (PL-DF). Ele afirma que a PEC “é uma porcaria” e não trouxe novidades práticas. “A única novidade é ruim, dar mais atribuição para a Polícia Rodoviária Federal que já não dá conta de exercer suas atividades por falta de efetivo”, cita ao lembrar que o texto leva à Constituição o que já está previso na lei que criou o Susp e isso, por si só, eliminaria a necessidade da PEC.

“A PEC fala em criar integração entre as polícias. O Susp já prevê isso. Falta fazer na prática, porque lei já tem”, reforça ao avaliar que a lei de 2018 jamais foi implementada.

O deputado criticou o fato de a bancada da Segurança Pública não ter sido chamada para dialogar e que isso representa uma a “falta de tato e habilidade” do governo federal.

Fraga acredita que durante a tramitação no Congresso, a Proposta de Emenda Constitucional terá muitas emendas.

PEC da segurança pública cria novas atribuições e provoca polêmica na PF

Outra medida elencada pela PEC é a de atribuir à Polícia Federal o poder de investigação de crimes com repercussão interestadual ou internacional, incluindo delitos que afetam bens e interesses da União, como florestas e áreas de preservação. Em situações emergenciais, essa espécie de nova polícia ostensiva federal poderá atuar em apoio às forças de segurança estaduais, o que segundo a PEC fortaleceria o combate a atividades ilícitas em regiões de alta criminalidade. A PRF também receberia, entre as novas incumbências, a de monitoramento e patrulhamentos em rios e ferrovias. A decisão gerou controvérsias em ambas as categorias.

Em nota, a Federação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (Fenadepol) disse que a “minuta de PEC da Segurança Pública não foi apresentada às entidades de classe dos delegados de Polícia Federal nem das demais categorias que igualmente atuam na linha de frente de combate à criminalidade”.

A entidade reforça que a matéria representa um preocupante aumento de atribuições da PF, que causará insegurança jurídica e sobrecarga do órgão, “que já opera em seu limite e lida com cortes orçamentários expressivos, já conhecidos do governo atual, que afetaram até a indenização de sobreaviso de seus policiais”.

A Federação também entende que a PEC retira atribuições das polícias estaduais e distorce as funções da atual PRF, instituição civil, buscando uma simetria com a PM, que “não se encaixa no espírito da Constituição Republicana”. “Quanto à valorização do Susp, bastaria cumprir a lei já existente”.

A Federação Nacional dos Policiais Rodoviários Federais (FenaPRF) avalia que “toda mudança legislativa que tenha por finalidade dar segurança e respaldo jurídico aos PRFs será bem-vinda” e que na prática a categoria já exerce todas as atribuições baseadas apenas em uma portaria do Ministério da Justiça.

“E, quando se quer questionar qualquer fato da execução da missão, se levanta que é inconstitucional a presença da PRF naquela determinada ação policial. Mas a PRF continua sendo utilizada, independentemente de governo e ideologia partidária para estas finalidades infraconstitucionais, o que fragiliza juridicamente e torna vulnerável o desempenho de quem apenas está obedecendo ordens (o PRF)”.

Na nota, o presidente da Federação, Tácio Melo da Silveira, diz ver como positiva a iniciativa do ministro Lewandowski e do governo federal no encaminhamento da proposta.

Entidades emitem manifesto conjunto e dizem que PEC é desnecessária e inadequada

Em um manifesto conjunto enviado à Gazeta do Povo, assinado pela Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (Adepol do Brasil); pela Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF), pela Associação Nacional das Entidades Representativas dos Militares Brasileiros (ANERMB); pela Federação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (Fenadepol); pela Federação Nacional das Entidades Militares Estaduais (Feneme) e pela Federação Nacional dos Peritos Oficiais em Identificação (Fenappi) as entidades afirmam que o Brasil não precisa de PEC sobre segurança pública e chamam a proposta de inadequada e desnecessária.

Veja a nota na íntegra, abaixo:

As entidades de classe de âmbito nacional reiteram, tal como já frisado em vários momentos, ser inadequada e desnecessária a discussão, no Congresso Nacional, de Proposta de Emenda à Constituição defendida pelo Excelentíssimo Ministro da Justiça e Segurança Pública e apresentada pelo Governo Federal, conforme amplamente anunciado pela mídia.

Inadequada porque a proposta não foi amplamente debatida com as forças de segurança pública e as associações que representam seus integrantes. Inadequada porque o enfrentamento da criminalidade organizada demanda solução dialogada, estudada e amparada em dados quantitativos e qualitativos que permitam a construção de um modelo tangível e robusto, que possibilite uma atuação concertada em todos os níveis de atuação – federal, estadual e municipal.

Desnecessária porque o ordenamento jurídico brasileiro já contempla muitas ferramentas de enfrentamento efetivo à criminalidade organizada, tais quais a Lei 13.675/18, que instituiu o Sistema Único de Segurança Pública – SUSP, a Lei 12.850/13, que define organização criminosa e dispõe sobre os meios de obtenção de prova, a Lei 14.735/23, Lei Orgânica Nacional das Polícias Civis, a Lei 14.751/23, Lei Orgânica Nacional das Polícias Militares e Bombeiros Militares, Lei 13.022/14, Estatuto das Guardas Municipais, dentre outras. 

A título de exemplo, cumpre citar que já é possível hoje que a Polícia Federal atue no enfrentamento de organização criminosa, ainda que esta não cometa crimes da competência da Justiça Federal, desde que exista repercussão internacional ou interestadual que exija repressão uniforme, nos termos da Lei 10.446/02. das forças de segurança, protocolos de atuação conjunta dos órgãos, respeitadas suas atribuições constitucionais, ações de capacitação e treinamento que envolvam integrantes dos órgãos listados no artigo 144 da Constituição Federal, aquisição de soluções tecnológicas que permitam investigações mais eficientes, padronização e unificação dos dados estatísticos ligados à mancha criminal, dentre outras.

A redução dos índices de criminalidade não é alcançada com mudanças constitucionais, mas com soluções construídas pelo diálogo entre os entes federativos e órgãos envolvidos. Suprimindo lacunas e corrigindo deficiências paulatinamente detectadas por meio de um processo transparente e participativo.

Por fim, as entidades subscritoras deste informam que irão trabalhar democraticamente perante a sociedade e todas as instâncias, principalmente no Congresso Nacional, alertando as sobreditas inadequação e desnecessidade da PEC apresentada pelo Governo Federal, para que o país não gaste energia em medida que não garanta efetividade no enfrentamento à criminalidade organizada.

Fonte: gazetadopovo

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