‘Golpe na hegemonia do dólar’, avaliam analistas sobre avanços da Cúpula do BRICS


Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, a pesquisadora Thaís Araripe, integrante do Núcleo de Estudos do BRICS (NEBRICS), analisou os principais desdobramentos da Cúpula do BRICS no Brasil.
Segundo ela, o documento final refletiu tendências já esperadas, mas trouxe alguns avanços relevantes, especialmente no que diz respeito à regulação da inteligência artificial e ao uso de moedas locais no comércio entre os membros do bloco. “A questão da regulação da inteligência artificial foi um dos pontos mais estratégicos e sensíveis da cúpula“, classificou.

“O encontro reforçou a ideia de que cada país tem o direito de regular as grandes tecnologias, conforme suas prioridades nacionais. Isso está diretamente ligado à soberania digital, que é fundamental para o Sul Global.”

Para ela, o tema ganha peso diante do domínio atual das grandes empresas de tecnologia, majoritariamente sediadas nos Estados Unidos, o que reforça o caráter geopolítico da disputa por dados, algoritmos e infraestrutura digital.
Thaís também chamou atenção para o trecho do documento que critica o aumento do protecionismo global, ainda que sem mencionar diretamente os Estados Unidos.
“Há um tom de incômodo. Não é uma postura antiocidental, mas sinaliza uma preocupação com barreiras tarifárias, que são um risco ao comércio internacional“, pontuou.
Apesar de algumas expectativas em torno da criação de uma moeda comum entre o BRICS, a pesquisadora lembra que esse não era um objetivo prioritário. Ainda assim, ela considera importante o avanço no uso de moedas locais dentro do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), o que pode representar um passo significativo rumo a alternativas ao sistema financeiro internacional dominado pelo dólar.
Para ela, o principal diferencial do bloco é justamente a criação de instituições alternativas, em vez de apenas tentar reformar as existentes.

“Essas iniciativas, como o uso das moedas locais e os mecanismos próprios de financiamento, mostram que o BRICS está criando um meio alternativo ao sistema tradicional.”

Sobre a presença do conflito Israel-Palestina na declaração final, Thaís afirmou que a defesa da criação de um Estado palestino já aparecia em cúpulas anteriores, mas agora surge com mais ênfase. Ainda assim, faz um alerta: “Existe uma ambição no discurso do BRICS, mas a capacidade de implementação dessa paz ainda esbarra nas estruturas do sistema internacional, que continua muito condicionado à influência de países como os Estados Unidos.”
A pesquisadora também comentou o apoio à entrada do Brasil e da Índia como membros permanentes do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU).
“É um tema histórico da diplomacia brasileira, mas eu não acho que essa reunião tenha nos deixado nem mais perto nem mais longe. Falta uma proposta concreta do BRICS para pressionar por essa reforma.”
Segundo a pesquisadora, o Brasil deveria apostar com mais intensidade no BRICS como espaço de afirmação do Sul Global: “É uma plataforma fundamental para construirmos uma voz coletiva, com mais autonomia e poder de decisão no cenário internacional.”
Por fim, Thaís fez uma crítica à gestão brasileira da cúpula. Para a pesquisadora, o tempo curto e a concentração de agendas com o G20 e a COP30 “acabaram diminuindo o protagonismo do Brasil no BRICS”.

“Faltou cuidado com os debates preparatórios, o que pode ter comprometido avanços em temas importantes, como as moedas e os sistemas de pagamento.”

Bolsa de grãos e resseguradora

O analista geopolítico Marco Fernandes destacou o que, segundo ele, são as principais inovações debatidas durante a Cúpula do BRICS deste ano: a criação de uma bolsa de grãos e de uma resseguradora própria.
Ambas as propostas, diz, refletem a crescente tentativa do bloco de reduzir a dependência de instituições ocidentais e ampliar a soberania econômica.
Segundo Fernandes, a ideia de uma bolsa de grãos foi lançada pela Rússia no ano passado e ganha força como alternativa à bolsa de valores de Chicago, onde hoje se define o preço global dos alimentos.
O analista lembrou que os países do BRICS produzem mais de 60% do arroz, 55% da soja, 50% do milho e 45% do trigo no mundo. Para ele, a proposta tem potencial de garantir “maior estabilidade dos preços” e ampliar o controle dos países produtores sobre o mercado global. O debate está diretamente conectado ao processo de desdolarização, afirma.

“Entre 80% e 90% das commodities no mundo hoje são negociadas em dólar.”

Ele defende a criação de mecanismos que permitam transações em moedas locais, como reais, rúpias ou rands. “Isso seria um golpe na hegemonia do dólar”, pontuou.
Outra proposta inovadora, também impulsionada pelos russos, é a criação de uma resseguradora do BRICS. Fernandes explica que as resseguradoras — “a asseguradora da asseguradora” — têm se tornado uma ferramenta indireta de sanções.
Ele citou o caso do teto de preço ao petróleo russo imposto pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), que é reforçado pela recusa das resseguradoras europeias e estadunidenses em cobrir cargas que ultrapassem esse limite.
“As resseguradoras viraram a polícia das sanções do Ocidente”, afirmou. Segundo ele, uma força-tarefa já foi formada após a cúpula, a fim de avaliar a viabilidade técnica da proposta.

O viés da mídia tradicional

A professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Beatriz Bíssio também elogiou o desenvolvimento da iniciativa da bolsa de grãos, ignorada pela cobertura da grande imprensa brasileira.

“A mídia tradicional prefere minimizar os aspectos positivos e maximizar o que considera negativo.”

Para além disso, a professora destacou o sucesso da cúpula brasileira e o papel do Brasil como articulador de pautas que ligam o combate à fome à reforma das instituições multilaterais.
O próprio tema que o Brasil escolheu para a conferência — “Fortalecendo a cooperação do Sul Global para uma governança mais inclusiva e sustentável” — já reflete o interesse de que a declaração final explicitaria o comprometimento político dos membros do BRICS tanto com uma governança mais inclusiva quanto com o desenvolvimento de pautas de sustentabilidade.

“E isso é claro que implica, sobretudo a eliminação da fome e da marginalização de seres humanos.”

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Fonte: sputniknewsbrasil

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