‘Fui vítima de fake news e recebi ameaça de morte’, conta especialista em China espionado pela Abin


“Recebi a notícia com indignação, mas sem nenhuma surpresa. E ela me permitiu conectar os pontos, montar um quebra-cabeça que eu já vinha tentando montar desde 2020”, conta o docente.

No relatório feito pela Polícia Federal (PF), Evandro Menezes de Carvalho foi mencionado cerca de 15 vezes e “espionado” durante oito meses, de setembro de 2019 a maio de 2020, “com mais de 100 consultas, monitorando o meu celular, os meus movimentos, a partir do recurso tecnológico”.
Segundo o professor, o documento elaborado pela PF “é a prova cabal de um crime cometido pelo Estado brasileiro contra alguns dos seus cidadãos”.
O jurista também comentou o que julgou como falha da agência, que deveria agir de maneira republicana, mas acabou tendo seu sentido desviado a partir da atuação de uma estrutura que se instaurou dentro do órgão e acabaria conhecida como “Abin paralela”.
“Havia pessoas que estavam agindo de maneira criminosa para favorecer um grupo político brasileiro que, […] do ponto de vista ideológico, pelo ex-presidente Bolsonaro, […] tinha — todos os indícios caminham para isso — um objetivo muito claro de subversão da ordem constitucional e de instalação de um regime de exceção aqui no Brasil”, argumentou.

Professor como alvo: qual o simbolismo dessa escolha?

A lista de monitorados ilegalmente é extensa, abrangendo supostos adversários políticos do governo anterior, como ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), entre eles Alexandre de Moraes; políticos, como o deputado e ex-presidente da Câmara Arthur Lira (PP-PB), e jornalistas. Entre as figuras, há Evandro de Carvalho, um professor.
Carvalho ressalta que nunca ocupou cargos no governo brasileiro, nem mesmo nos âmbitos estadual e municipal, e pouco foi a Brasília em sua jornada profissional.
A China, do ponto de vista do imaginário popular, sempre foi um “bode expiatório” para sinonimizar algo malquisto socialmente. Quando presidente, Jair Bolsonaro chegou a insinuar que a China teria criado o vírus da COVID-19 propositalmente. O então ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, publicou um artigo em um livro chamando o vírus de “Comunavírus”.

“Já havia uma orquestração de colocar a China como um inimigo político, ou como o país que representa uma ideologia que os bolsonaristas elegeram como inimiga, como se o Brasil aqui tivesse algum tipo de ameaça comunista.”

Conforme conta, dado esse contexto, “resolveram escolher um professor que tem boas relações acadêmicas construídas com a China” como alvo.
À Sputnik, o professor afirmou que chegou a ser atacado e vítima de fake news por parte do blogueiro Oswaldo Eustáquio. Nas postagens, ele era tratado como espião chinês e chegou a ser relacionado como a pessoa que apresentou o ex-presidente Michel Temer ao presidente da China, Xi Jinping, além de ser acusado de estar por trás de uma negociação bilionária com os chineses feita por José Serra, tucano que foi ministro de Temer.
“Primeiro que eu não tenho nenhuma relação com esses dois políticos. Segundo, não tenho nenhuma vinculação, nem como cidadão, simpatia política pelos partidos que esses dois políticos representam, fora uma série de erros factuais”, esclarece.

“Você tinha uma máquina estruturada para espionar os considerados inimigos político-ideológicos do bolsonarismo, daquele grupo que estava lá, aquela organização criminosa que operava também dentro da Abin e que depois ainda acionava o gabinete do ódio para destruir reputações, espalhar medo e ameaças às pessoas que eram alvo. Nesse caso, eu fui um desses alvos e recebia ameaças de morte, inclusive”, acrescenta o analista.

Diante do contexto que envolve as investigações, o professor ressalta um ponto: “Quem tem boas relações econômicas aqui no Brasil com a China são a direita brasileira e a extrema-direita; o agro vende bastante à China”.
Segundo Carvalho, em sua percepção, a estrutura da Abin paralela “não tinha nenhuma motivação para investigar ou espionar ilegalmente esse grupo que tem relações econômicas de fato milionárias com a China”, que vão de políticos a grandes empresários.

“Esse pessoal todo não passou pelo crivo dessa organização criminosa bolsonarista. O ataque teve que ser ao professor, que é obviamente um dos alvos preferidos do bolsonarismo”, atesta.

O paradoxo das relações Brasil-China: da realidade ao imaginário

De fato, de acordo com o professor da UFF, os setores que vendem commodities à China são os que mais lucram com a relação brasileira com o gigante asiático. Entretanto, a ideia política chinesa ainda enfrenta grande resistência e, popularmente, o país é visto muitas vezes como um mau modelo.
Em relação a esse paradoxo, Carvalho faz duas ponderações. Em primeiro lugar, ele confirma que esse grupo de direita é quem se beneficia das relações econômicas com a China, porque é quem detém os meios de produção, os produtos que interessa aos chineses comprar.
“E esse grupo da direita é inclusive quem define a pauta da política externa brasileira na relação com a China até hoje, mesmo no governo Lula. […] O tema China, em realidade, está nas mãos da direita, porque, se a gente olha a estrutura que move essa relação política, burocrática, as relações que se constrói, os temas que são definidos, é o mesmo grupo que estava inclusive definindo a agenda política brasileira com a China durante o governo Bolsonaro”, analisa.
Por outro lado, o especialista aponta que há resistência em entender a China de modo mais aprofundado, sobretudo porque para explicar o êxito chinês é necessário ressaltar que trata-se de um país cuja governança é exercida pelo Partido Comunista da China.

“No fundo, não se quer entender a China, se quer é o dinheiro chinês. Não se quer abrir o mínimo espaço para uma compreensão dilatada, ampla, fora dos estereótipos. […] A extrema-direita tem um discurso anticiência, ela trabalha com espaços onde procura obscurecer onde há luz, onde há esclarecimento. Então isso acaba prejudicando muito o trabalho, sobretudo de pessoas que estão indo na contramão dos interesses políticos, estratégicos ou até mesmo táticos dessa extrema-direita.”

Para o analista, portanto, esse setor funciona da seguinte maneira: “Durante o dia morre de amores pela China, durante a noite fala mal.”
Ao fim e ao cabo, trata-se, conforme Carvalho, a partir do controle da agenda, da demonstração de sinais de que há um teto de aprendizado sobre a China, um lugar até onde se está autorizado a ir. Caso esse limite seja atingido, “a pessoa precisa ser afastada, silenciada, cancelada, se ousa persistir em aprofundar o conhecimento sobre a China […]”, diz o professor. Esse quadro beneficia inclusive, acrescenta, os interesses dos EUA.
“O que se vê hoje é uma aliança que está sendo feita, consciente ou inconscientemente, entre democratas e nazifascistas, e estes aqui estão conseguindo convencer a população de que o inimigo é a China.”

“É uma volta do nazifascismo se aliando às democracias ou capturando as democracias, com a roupagem de eles serem democratas. Mas não são: está aí o exemplo da Abin paralela, entre outros fatos relacionados ao governo Bolsonaro, que mostra que não tinha nenhuma vocação para um regime democrático e escolhe o comunismo como inimigo — e a China simbolizaria isso. Naturalmente esse tipo de discurso cai como uma luva para os Estados Unidos, que vê a China como uma ameaça ao seu poder hegemônico”, finaliza.

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Fonte: sputniknewsbrasil

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