O Papa Francisco morreu na madrugada desta segunda-feira (21), aos 88 anos, deixando como legado 12 anos de um papado tido como um dos mais progressistas da Igreja Católica.
Primeiro papa latino e também o primeiro não europeu, Francisco desafiou tradições da Igreja Católica ao abrir as portas da instituição a regiões e pessoas vulneráveis. Ele foi o primeiro a viajar para países nunca antes visitados por um pontífice, aboliu o sigilo sobre casos de abusos sexuais cometidos por padres, pressionando pela punição e expulsão dos autores e se reunindo com vítimas.
Entre as 929 canonizações que realizou, chama atenção o aumento no número de canonizações em países fora da Europa, em países como o Brasil e a Síria, por exemplo.
Francisco também era uma voz atuante na diplomacia, se posicionando sobretudo contra guerras, e promoveu uma reforma na Santa Sé, abolindo privilégios de uma casta de religiosos.
O papado progressista de Francisco, no entanto, não foi recebido com unanimidade positiva dentro da própria Igreja Católica, e fora dela também gerou críticas entre religiosos ultraconservadores, abrindo uma divisão na instituição.
À Sputnik Brasil, Rodrigo Toniol, professor adjunto do Departamento de Antropologia Cultural da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), avalia que uma das principais leituras que se pode ter dos 12 anos de papado de Francisco é a importância do pontífice no cenário político internacional, com acenos importantes, por exemplo, a temas como a imigração, a pandemia, as mudanças climáticas e também a importância de mudar o paradigma industrial, “inclusive, fazendo críticas abertas ao capitalismo, em vários momentos”.
21 de abril, 07:56
“Mas do ponto de vista das reformas da igreja, o Papa Francisco não foi um papa reformista. Acho que ele foi um global player importante, mas para dentro da igreja ele não foi exatamente uma figura disruptiva. Ainda assim, enfrentou muita resistência interna, justamente pelas suas posições públicas mesmo sobre o mundo, e certamente os setores conservadores da igreja agora entram na disputa pelos cargos mais importantes dela, o papado e toda a reconfiguração da Cúria”, afirma o analista.
Ele frisa que a Igreja Católica terá, agora, o primeiro conclave após o primeiro papa latino, e os cardeais vão decidir se mantêm a escolha de um novo pontífice de fora da Europa ou se é hora de voltar para o continente.
“De todo modo, agora é hora da disputa entre os grupos da igreja. Acho que vale também a menção do fato de que é muito difícil de a gente marcar esses grupos em termos de liberais, conservadores, progressistas. No mundo e na temporalidade da igreja, essas facções são mais complexas, elas ganham outros tipos de camada, por exemplo, as congregações religiosas, o tipo de cargo que as pessoas naquele momento têm na Cúria, enfim, é difícil de fazer essa sucessão.”
Bruno Lima Rocha, cientista político, jornalista e professor de relações internacionais, afirma que a divisão interna dentro da Igreja Católica é muito mais antiga que o papado de Francisco, já tendo sido observada, por exemplo, desde João XXIII, que exerceu o papado entre 1958 e 1963, e ficou conhecido como o “papa da bondade”. Segundo ele, desde a encíclica Rerum Novarum, a primeira a tratar da doutrina social, escrita em 1891, pelo Papa Leão XIII, as divisões na instituição foram se acentuando.
“O Papa Francisco, Jorge Mário Bergoglio, o que ele fez, e fez muito bem, foi se pronunciar no colégio de cardeais dizendo o que ele ia fazer, então não foi surpresa para ninguém. A gente pode ter uma leitura de que no colégio de cardeais de Roma chegou a ter uma maioria vinculada à expansão católica, ou seja, expansão não europeia ou não ocidental. Ou, considerando o Ocidente também a América Latina, o que teve foi uma presença maior de ex-padres, ex-bispos que tinham vínculo social, que tinham essa preocupação com a doutrina social da fé, já que o Bento XVI era um doutrinador conservador, ou seja, queria a fé dentro dos muros, e João Paulo II era um propagandista, que beatificou um montão de gente para disputar rebanho e foi o grande inimigo da teologia da libertação”, afirma o analista.
14 de junho 2024, 18:30
Rocha acrescenta que o que Francisco fez “foi definir a opção preferencial pelos pobres, por uma igreja inclusiva e pela não ostentação da riqueza e usufruto dos benefícios do Vaticano”.
EUA podem influenciar na escolha de um pontífice conservador?
Pela manhã, o presidente dos EUA, Donald Trump, publicou em suas redes sociais uma postagem breve, se comparada a de outros líderes, lamentando a morte de Francisco. É público que figuras ultraconservadoras da administração Trump eram críticas à atuação do pontífice. Uma delas é Brian Burch, anunciado em dezembro como embaixador dos EUA na Santa Sé, em uma nomeação vista como potencial tentativa de Trump de ampliar a influência política na Igreja Católica.
Toniol considera que “realmente o desejo de Trump de influenciar a Igreja Católica pode ser enorme, mas esse é mais um dos desejos megalomanícos” do presidente estadunidense. Ele destaca que a Igreja Católica é uma instituição de 2 mil anos, e que há 2 mil anos escolhe seus líderes. Nesse contexto, avalia o analista, é pretensioso demais Trump considerar que pode exercer influência sobre a Santa Sé.
“Ele pode querer influenciar, pode tentar se aproximar dos cardeais associados, que de alguma maneira se reconhecem com a política trumpista, mas isso não é nem claro, exatamente. Então, é muito mais um blefe do Trump do que qualquer outra coisa. O aceno, claro, de colocar o crítico de Francisco como embaixador dos EUA na Santa Sé vale como elemento simbólico, mas como elemento efetivo a gente não está falando de uma eleição como em um país democrático, não é disso que se trata. O conclave papal é outra história”, afirma.
Rocha, por sua vez, enfatiza que a intenção do chamado Norte hegemônico, sobretudo dos EUA, em ampliar a presença na Igreja Católica será permanente agora, mas aponta um dado que destaca ser muito importante.
“Francisco praticamente nomeou ou fidelizou 80% dos cardeais que formam a Cúria romana. Então aqueles que têm condição de votar no próximo papa, de cada dez, oito tinham relação direta com ele. Pode haver traição? Pode haver traição, mas, pela vantagem numérica absoluta, existe uma tendência à permanência do estilo do papa. Por exemplo, há uma grande possibilidade de o próximo papa ser filipino, que é outra enorme nação católica e o maior país católico da Ásia.”
Que legado deixa o Papa Francisco?
Para Toniol, o papado de Francisco tem como legado três aspectos importantes, sendo o primeiro o fato de ser um papa latino-americano.
“Isso, por si só, vai ser sempre a lembrança, a maneira de descrever esse papa pelo resto dos tempos. Isso é muito importante, marca uma mudança na igreja, é, de fato, uma novidade”, afirma.
31 de março 2024, 11:49
O segundo aspecto, segundo o analista, é que, pela primeira vez, de maneira tão sistemática, um papa fez aceno a questões ambientais, tendo, inclusive, escrito uma encíclica em 2015 dedicada ao tema.
“E além disso, fazendo o Sínodo da Amazônia, que também foi um movimento muito importante. Então essa espécie de, não só aceno, mas tentativa efetiva de fazer com que a doutrina social da Igreja Católica, inaugurada pelo Papa Leão XIII, agora se volte e passe a prestar atenção também no campo ecológico, acho que é um segundo aspecto importante.”
O terceiro aspecto apontado por Toniol é o fato de Francisco ter exercido o papado em um período em que democracias no Ocidente se voltaram para a direita radical.
“Francisco se colocou como uma figura firme, defendendo causas de justiça social elementares, como o fim das guerras, a acolhida de imigrantes e a preocupação com relação à fome no mundo, mas que pareceram grandes atos de promoção de justiça social. Então acho que ele exerce o papado em um momento de endireitamento e, por isso, ele vira uma espécie de figura de referência entre os líderes e entre o mundo católico. E, claro, também significa que ele tem enfrentado muitas reações dentro da própria Igreja Católica de setores mais conservadores.
Para Rocha, o principal legado deixado por Francisco é “reconhecer o outro” em um momento da história que a direita radical tem forte presença em vários países ocidentais, ao mesmo tempo que “o império decadente dos EUA vem tentando, literalmente, desestabilizar metade do planeta, e com essa ideia de que o outro não existe”.
“A alteridade, a relação solidária com o diferente, foi o principal legado do Papa Francisco. Isso como papa, porque a sua trajetória como religioso na Argentina já era vinculada aos pobres e ao mundo do trabalho. A encíclica Laudato Si, ela é o legado de doutrina de Francisco, assim como a chamada Economia de Francisco. Então é um papa que se preocupa com os imigrantes, com as migrações, com um planeta sustentável, com o pleno direito à vida, com a existência sendo muito além da materialidade”, conclui o analista.
Fonte: sputniknewsbrasil
