Notadamente o brasileiro em geral, muito por causa do imediatismo das redes sociais, só lê uma manchete e já sai exprimindo sua opinião, na maior parte das vezes de forma um tanto agressiva ou debochada. A estes (que provavelmente não lerão sequer este primeiro parágrafo, mas pelo menos o colunista tentou), um aviso muito importante: a informação do título desta coluna é absolutamente literal.
No entanto, a citada manchete não faz qualquer referência às características estilísticas, mecânicas e de condução do Ford Ka ou a qualquer outro ponto relacionado ao veículo em si, falando dele como um carro. Mas sim que o modelo, lançado no Brasil em 1997, serviu como uma espécie de tela em branco para que seis renomados artistas plásticos brasileiros demonstrassem seu talento.
A iniciativa partiu da própria Ford, que queria combater críticas dirigidas ao desenho do carro, que não eram exatamente poucas nem suaves — o brasileiro, quando quer, sabe ser maldoso com um veículo. O público criou até um apelido vexaminoso para o Ka, trocando a última (e única) vogal do nome do carro por um “U”, justificando então que ele era “feio por fora e apertado por dentro”. Crueldade pura.
A ideia, gestada no marketing da Ford em 1998, foi colocar artistas plásticos para soltarem a imaginação na carroceria do carro e, assim, tentar dar ao Ka uma imagem de ousadia e plasticidade, mesmo que envolta até em certa incompreensão. Era uma jogada estratégica para rebater as críticas ao design do modelo, procurando envolvê-las em uma espécie de desdém — algo do tipo “você não gosta porque não entende”.
Deu certo? Claro que não — tanto que a Ford entregou os pontos e lançou um “rear-lift” exclusivo para o mercado brasileiro em 2002. Mas voltemos à nossa história.
Ciente de como era importante salvar o design do Ka das críticas e, portanto, alimentar o volume de vendas, a montadora não economizou na concepção do projeto e contratou logo Carlos Von Schmidt, um dos críticos de arte brasileiros mais respeitados (e exigentes) da época. Ele entendia um bocado do tema: foi curador da Bienal de Arte de São Paulo e diretor do Museu de Arte Brasileira, por exemplo.
A fabricante apresentou a ideia e deixou a cargo de Von Schmidt sua execução. Ele desenhou uma exposição denominada “ART Ka” e amealhou seis nomes de primeiríssima linha no cenário brasileiro das artes plásticas: Aldemir Martins, José Roberto Aguilar, Claudio Tozzi, Gustavo Rosa, Ivald Granato e Leda Catunda. Em comum, todos já haviam utilizado objetos cotidianos tais como chinelos, listas telefônicas, bicicletas e relógios em seus trabalhos artísticos.
Cada um deles recebeu um Ka 0 km e “total liberdade para deixar no carro a sua marca”, segundo afirmou então o curador, complementando que a proposta era “acrescentar à mão do operário a mão do artista, romper com os suportes tradicionais, o papel, a tela, para encarar a superfície metálica de um automóvel. Ignorar a parede e fazer do carro tela semovente”.
Os Ka pintados à mão, multicoloridos e únicos, foram então espalhados por vários pontos da cidade de São Paulo, como o Parque Ibirapuera. O curador justificou que queria “tirar a obra de arte do museu, da galeria, e levá-la à rua”. Eles chamaram tanta atenção que a Ford decidiu pegar o mais popular e exibi-lo também em seu estande no Salão do Automóvel, no Anhembi, no final daquele mesmo ano de 1998.
Aí foi barbada: ganhou, com grande vantagem, a obra intitulada Lady Bug, de Gustavo Rosa, que apostou em uma proposta muito mais lúdica do que as demais ao transformar o Ka em uma simpática joaninha albina (ou algo assim). Uma pena que, no Salão, a coitada tenha tido que disputar atenções com um gigantesco big foot baseado na F-250, de quase 3 metros de altura. Aí ninguém deu bola para a pobre joaninha.
Logo depois, os seis Ka voltaram à Ford, foram repintados com suas cores originais e tiveram suas partes ajustadas aos trajes comuns. Foram incorporados à frota de veículos do departamento de marketing e por lá ficaram, até serem revendidos como carros usados. E, assim, os novos proprietários jamais desconfiaram que estavam dirigindo verdadeiras obras de arte sobre rodas…
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Fonte: direitonews