A jornalista e pesquisadora em ciências militares da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME), major Gabriela Bernardes, em entrevista aos jornalistas Melina Saad e Marcelo Castilho, do podcast Mundioka, afirma que a crise no Sudão recebe menos atenção do Ocidente comparada a outros conflitos como na Ucrânia ou em Gaza.
Ela sugere que as questões econômicas e geopolíticas influenciam a atenção dada aos conflitos, com a África frequentemente relegada a segundo plano. “A África como um todo acaba tendo as suas dificuldades, as suas crises um pouco relegadas a segundo plano desse cenário internacional.”
“O poder nuclear transformou as relações humanas, as relações entre todos os países. Então, a gente sabe que se não houver cooperação, apesar de todas essas disputas, não tem mundo”, refletiu, sublinhando a importância da cooperação internacional para a paz e segurança global.
Bernardes relatou à Sputnik Brasil sua experiência no Comitê Permanente de Cessar-Fogo da Missão Integrada das Nações Unidas de Assistência à Transição no Sudão (UNITAMS, na sigla em inglês).
Ela afirma que a situação no Sudão se deteriorou, com confrontos intensos entre as forças armadas do governo e grupos paramilitares. “O confronto foi de uma forma acima do esperado.”
A escalada da violência obrigou a ONU a evacuar seus membros. Seu setor foi o último a sair, obedecendo a protocolos de segurança e gerenciamento de crise.
Durante o conflito, Bernardes e seus colegas enfrentaram falta de luz, água e comida. Eles foram transferidos por aviões de tropas francesas sediadas no Chade, após negociação que permitiu o resgate seguro. “Saímos depois de 13 dias de conflito. Saí de noite, no escuro, passando por postos de bloqueio, de controle, com tropas armadas.”
Durante o trabalho, Bernardes atuou como oficial de relatórios, acompanhando reuniões e tratativas relacionadas ao monitoramento do cessar-fogo entre as Forças Armadas Sudanesas (SAF, na sigla em inglês) e grupos armados legalizados pelo Acordo de Paz.
Sua função envolvia a produção de relatórios sobre o andamento da implementação dos acordos de segurança. A pesquisadora destacou a gentileza do povo sudanês, apesar da instabilidade no país. “Eles são um povo muito gentil. Eles são tímidos, mas ao mesmo tempo extremamente gentis.”
Qual é a situação atual do Sudão?
Desde sua independência em 1956, o território do Sudão tem sido assolado por golpes e guerras civis. O conflito mais recente, iniciado em 2023, é uma luta pelo poder entre as SAF e as Forças de Suporte Rápido (RSF), um grupo paramilitar.
As facções, atualmente, batalham pelo controle do país após período instável de compartilhamento de poder. Tanto as SAF quanto as RSF são acusadas de saques, estupros e assassinatos de civis.
Além disso, a ajuda humanitária é severamente restringida, deixando regiões inteiras sem acesso a suprimentos básicos.
O doutor em estudos estratégicos internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Mamadou al Diallo, define a situação no Sudão como um “genocídio permanente“. Segundo ele, o país enfrenta problemas de segurança e violações dos direitos humanos há muito tempo, tanto internamente quanto por forças externas.
Diallo questiona a razão pela qual a ONU só agora reconheceu essa situação, mesmo sendo evidente há muito tempo.
Diallo evita focar em termos étnicos ou religiosos, criticando a narrativa que tenta caracterizar os problemas do Sudão de tal maneira. Para ele, “a questão é uma questão política” que envolve a política doméstica e internacional.
Ele destaca que o país, juntamente com o Congo, estão entre os mais ricos da África, mas também os mais instáveis desde suas independências.
Diallo menciona uma “elite suicida”, termo cunhado por Amílcar Cabral, referindo-se à pequena elite africana que, adotando políticas coloniais, contribui para a própria destruição. Ele observa que “essa elite, que supostamente tem uma instrução ocidental, contribui para seu próprio suicídio”, exemplificando com o número de golpes de Estado em África desde os anos 1960.
Qual é a diferença entre o Sudão e Sudão do Sul?
Definidas sob ótica do Ocidente, as fronteiras do Sudão com Sudão do Sul foram validadas em 2011, a partir de referendo motivado por um conflito que se estendia há 12 anos. Desde a independência em relação ao Reino Unido em 1956, o país vive em crises políticas, que resultaram em guerras civis.
Diallo explica à Sputnik Brasil que a divisão fortaleceu os conflitos ao fragmentar a população e os recursos, aumentando tensões e enfraquecendo os locais economicamente, socialmente e politicamente.
Ele diz que propostas de divisão de Estados africanos muitas vezes têm origem em análises financiadas pelo governo dos Estados Unidos, cujo objetivo é orientar a política externa americana para o continente africano. “A divisão do Sudão não seria possível sem o apoio dos Estados Unidos e dos países ocidentais.”
De acordo com ele, o Mali também seria um exemplo de tentativa de divisão influenciada por potências externas, particularmente a França e a ONU.
Para o pesquisador, tais estratégias neocoloniais são ilógicas no contexto de um mundo globalizado, onde a tendência é a integração. Ele explica que o Sudão e o Sudão do Sul são ricos em petróleo e outros recursos minerais, mas esses recursos frequentemente atraem conflitos e intervenções estrangeiras, como o gás de Moçambique.
Por fim, Diallo critica a falta de reconhecimento das complexidades e interconexões dos estados africanos, apontando que se referir ao “Sudão do Norte” e ao “Sudão do Sul” como entidades separadas simplifica uma realidade muito mais complexa.
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Fonte: sputniknewsbrasil