Balas de goma, chocolates, biscoitos, panetones, sucos de saquinho. Essas guloseimas disponíveis no supermercado são verdadeiras bombas açucaradas, mas há outra característica em comum: elas podem ser transformadas em etanol para a criação de um combustível inovador, sustentável e de enorme produtividade. Autoesporte testou o Ambiálcool, um etanol feito de restos de alimentos que promete revolucionar a matriz energética brasileira.
É uma iniciativa da empresa de gestão ambiental Ambipar. Nossa redação teve acesso a 30 litros de combustível feito com restos de comida para compará-lo em testes instrumentados com o etanol do posto de gasolina. Também conversamos com Gabriel Estevam, diretor corporativo de pesquisa e inovação da Ambipar, para esclarecer as principais dúvidas sobre este novo tipo de álcool automotivo.
Adotado no Brasil como alternativa à escassez da gasolina, o etanol se aproxima do seu terceiro ciclo. “Tivemos o programa Proálcool nos anos 70 e, depois, aprendemos a extrair etanol até do bagaço da cana-de-açúcar. Agora, aproveitamos os restos de alimentos para criar um novo combustível reciclado”, afirmou o especialista, que trabalha no desenvolvimento do Ambiálcool desde 2021.
A indústria alimentícia gera toneladas de lixo todos os dias, mas nem todos os resíduos são incinerados ou levados ao aterro. Existem lotes que tiveram problema com a matéria prima, questões de validade e até padronização. Com este material o etanol sustentável da Ambipar é criado, colocando insumos que seriam desperdiçados de volta à cadeia produtiva.
A cada 500 toneladas de matéria-prima é possível criar, em média, 300 mil litros de etanol. “Uma remessa de balas refrescantes pode ter concentração de açúcar maior que a própria cana”, brincou Estevam. Isso porque açúcar e amido são os principais componentes para a criação do etanol. O Brasil utiliza a cana-de-açúcar, mas também é possível extrair álcool automotivo de milho, beterraba, cereais, batata e trigo.
A expectativa da Ambipar é que sua capacidade produtiva dobre até o fim do ano. Para isso, busca aumentar o número de parceiros: a empresa recebe insumos da gigante alimentícia Mondelēz, mas outras companhias do setor negociam para transformar lixo em combustível.
“Temos parceria com uma usina que faz a fermentação biológica e destilação do resíduo descartado. Com este material, criamos tanto o etanol sustentável aprovado pela ANP (Agência Nacional do Petróleo) quanto produtos de limpeza, dependendo do nível de diluição”, explicou o especialista.
O resultado é um etanol automotivo hidratado com até 95% de pureza. É utilizado atualmente para o abastecimento de uma frota de 22 carros da Ambipar em Nova Odessa (SP) e não está disponível para venda, por mais que seja compatível com qualquer carro flex ou somente a álcool, como comprovamos.
A Ambipar nos enviou uma amostra de 30 litros de etanol sustentável para o teste instrumentado. O carro escolhido para a avaliação foi um Citroën Basalt manual, com motor 1.0 flex aspirado de três cilindros. Todo o experimento foi conduzido pelo motorista de testes de Autoesporte, Alexandre Silvestre, em circuitos urbano e rodoviário, e também no Rota 127 Campo de Provas para os testes de aceleração e retomada.
O teste foi realizado ao longo de dois dias, primeiro com etanol de posto e depois com o Ambiálcool. O tanque foi totalmente esgotado antes de receber o combustível entregue em seis galões de cinco litros, conforme os critérios do Inmetro para o transporte de material inflamável.
Nos dois casos, o Basalt foi submetido aos mesmos testes que Autoesporte aplica em carros convencionais, com exceção à avaliação de frenagem que, neste caso, não era necessária. Em seguida, os resultados foram analisados por Rogério Gonçalves, diretor de combustíveis da Associação Brasileira de Engenharia Automotiva (AEA).
O primeiro teste realizado foi de consumo, simulando trajeto urbano e rodoviário, sempre com o ar-condicionado ligado. Listamos os resultados a seguir, incluindo os valores de referência do Programa Brasileiro de Etiquetagem Veicular (PBEV) para o Basalt:
O hatch teve consumo ligeiramente mais baixo com o etanol de posto, com pequena margem em relação ao Ambiálcool. A anotação do Inmetro foi superada em ambos os testes de Autoesporte. E quanto ao desempenho? Veja abaixo:
Há pequena diferença entre o etanol de cana-de-açúcar e o álcool reciclado da Ambipar quanto ao desempenho, tanto na aceleração partindo da imobilidade (o ‘0 a 100 km/h’ teve 3,8% de disparidade) quanto nas retomadas. A velocidade do Basalt ao passar de 1.000 m também é praticamente a mesma, na faixa de 140 km/h (mísero 0,6% de diferença).
Sobre o comportamento dinâmico do hatch, Silvestre afirmou que não sentiu diferenças entre os combustíveis quanto à reatividade ou entrega de torque. “O carro ficou praticamente igual. Nem parecem combustíveis diferentes”, disse.
Os resultados do novo etanol da Ambipar foram recebidos com otimismo pelo diretor de combustíveis da AEA, Rogério Gonçalves. O profissional tem 40 anos de carreira, sempre acompanhando a pesquisa e o desenvolvimento de alternativas sustentáveis.
Uma característica do etanol reciclado percebida por nosso piloto de teste e integrantes da redação diz respeito ao odor. “O cheiro é um pouco diferente. Me lembrou de álcool hospitalar”, notou Alexandre Silvestre. Segundo o diretor de pesquisa da Ambipar, Gabriel Estevam, dois motivos levam a isso.
“O nosso etanol é mais puro que o combustível de posto, que também pode conter água na diluição — e o odor também pode mudar conforme sua matéria-prima. O mesmo acontece com bebidas alcoólicas”, afirmou.
Não à toa, o álcool comercial disponível nos postos tem cheiro parecido com o de cachaça, pois são derivados da cana. Gonçalves diz ainda que outros elementos podem interferir no odor do combustível, como a adição de componentes e até água na mistura.
O etanol reciclado da Ambipar é utilizado somente para abastecer sua frota. A empresa calcula que o preço é o mesmo praticado nos postos de gasolina por se tratar de um combustívei feito com matéria-prima residuária e de produtividade maior que a cana-de-açúcar ou o milho. O combustível tem valor médio de R$ 4,27 pelo litro no Brasil, segundo o índice mais recente da ANP.
“Existem processos produtivos do etanol de posto aos quais o Ambiálcool não é submetido. Ainda não recebemos incentivos [governamentais], mas será possível vender créditos de carbono para subsidiar parte do combustível”, afirma.
A Ambipar trabalha com este combustível de forma experimental e não pretende lançá-lo comercialmente em curto prazo — o que é uma pena. Seria uma alternativa inovadora para reaproveitar o desperdício de uma indústria que movimentou R$ 1,3 trilhão internamente em 2024. Países como Brasil, China, Estados Unidos e Índia estão entre os maiores produtores de alimentos do mundo, e uma matriz energética como o etanol sustentável pode dar um novo destino aos resíduos.
Autoesporte já tinha 15 anos de história quando o Fiat 147, o primeiro carro brasileiro movido a álcool, chegou às lojas em 1979. Foi apelidado de “cachacinha” pelo forte odor que saia do escapamento.
Duas décadas depois, acompanhamos a evolução que culminou na criação dos motores flex, tecnologia 100% brasileira que agora ostenta mais de 20 anos de história. Em 2023, os engenheiros João Medeiros e Roger Guilherme foram homenageados no Carro do Ano pela contribuição no desenvolvimento destes motores.
Até carros híbridos como o Toyota Corolla são compatíveis com etanol atualmente — e outros vários modelos estão em desenvolvimento. Também existem estudos conduzidos na Universidade de São Paulo (USP) para que, no futuro, reatores possam usar álcool para a extração da célula de hidrogênio. Assim, o etanol brasileiro poderá abastecer até carros elétricos de forma ainda mais limpa e sustentável. Estaríamos diante da próxima revolução? Você acompanhará tudo por aqui.
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Fonte: direitonews