Ao trabalhar em uma vacina para disenteria causada pela bactéria Shigella, o médico francês Felix d’Hérelle notou que suas culturas apresentavam zonas de lise, espaços claros onde a bactéria havia morrido.
Anos mais tarde, em 1919, após processos de isolar e testar em si mesmo a segurança do micróbio responsável pelas mortes bacterianas, d’Hérelle realizou o primeiro tratamento a base de bacteriófagos, vírus comedores de bactérias, na história mundial.
Publicada alguns anos mais tarde, a descoberta abalou o cenário médico ao redor do mundo, que logo notou o potencial terapêutico da fagoterapia.
Pioneiro do tema, a partir de 1925 o francês chegou a ser indicado ao Prêmio Nobel de Medicina oito vezes, mas foi preterido por sua formação autodidata e pelo regimento interno do Instituto Pasteur, onde realizava suas pesquisas.
Os fagos, como organismos que parasitam bactérias, podem ser encontrados em qualquer ambiente em que haja micro-organismos disponíveis para fagocitar, desde dentro do nosso corpo até na natureza e em ambientes urbanos, como solos, rios e esgotos.
A fagoterapia não precisa ser usada necessariamente em seres humanos. Seus princípios podem ser aplicados na agropecuária para o controle e a prevenção de doenças em plantas e animais, além de poder ainda ser usada para impedir o processo de decomposição e estender a vida útil dos alimentos.
Desenvolvimento soviético
Paralelamente a d’Hérelle, outros médicos ao redor do mundo notaram os vírus bacteriófagos e iniciaram suas pesquisas. Em 1923, o georgiano George Eliava visitou o Instituto Pasteur, onde fez uma grande amizade com o francês e ficou encantado com a fagoterapia.
A partir disso, no mesmo ano, Eliava fundou o Instituto de Bacteriologia em Tbilisi, capital da Geórgia — na época, parte da União Soviética. Atualmente conhecida como Instituto George Eliava, a instituição é a maior referência em pesquisa e tratamento com fagos em todo o mundo.
Pouco após a fundação, o instituto logo foi eleito um dos pilares centrais na estratégia epidemiológica do país, recebendo financiamento e, em certo momento, amostras e toda doença bacteriana identificada nos hospitais soviéticos.
Com isso, o Instituto George Eliava aumentou sua coleção de fagos terapêuticos, produzindo em larga escala. O uso era tão comum na União Soviética que os medicamentos eram até mesmo enviados para as tropas no front da Segunda Guerra Mundial, que os usavam para prevenir e se tratar de infecções.
Fagoterapia hoje
Enquanto isso, no Ocidente, uma nova classe de medicamentos roubava a cena: os antibióticos. Com o passar do tempo, substituíram os bacteriófagos como método de tratamento de infecções, e a fagoterapia foi esquecida deste lado do mundo.
De fato, aponta Aline Maria da Silva, professora do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP) e vice-diretora do Centro de Pesquisa em Biologia de Bactérias e Bacteriófagos (CEPID B3), no início era mais fácil e lucrativo apostar nos antibióticos por serem um tratamento mais genérico, capaz de afetar uma gama maior de bactérias, enquanto os vírus bacteriófagos funcionam apenas em uma bactéria.
Se alguém quisesse se tratar com bacteriófagos, teria que se dirigir até o Phage Therapy Center, do Instituto Eliava, em Tbilisi, em uma espécie de turismo médico.
Até agora.
A terapia encontrou uma ressurgência devido ao “surgimento das bactérias multirresistentes a antibióticos”, diz a pesquisadora.
A resistência bacteriana é o fenômeno pelo qual o uso de antibióticos seleciona progressivamente bactérias resistentes a seus compostos, fazendo com que, com o passar do tempo, se torne cada vez mais difícil tratar determinada doença.
“A busca por novos antibióticos não tem sido muito bem-sucedida nas indústrias farmacêuticas nem nos laboratórios de pesquisa.”
Hoje, o mundo médico ocidental vê na fagoterapia uma “saída bastante viável” para o problema da resistência antibiótica, diz Silva.
Durante anos, o tratamento com bacteriófagos foi visto como algo místico, pseudocientífico, realizado pelos russos. Foi só depois da dissolução da União Soviética e da perda do grande financiamento estatal pelo instituto que o mundo ocidental lembrou do potencial médico dos fagos.
Mas, por enquanto, as pesquisas ocidentais ainda são muito “incipientes”, diz a pesquisadora.
Faltam estudos médicos consolidados sobre a fagoterapia que sigam os mais altos padrões científicos, com características de duplo-cego, randomizado e multicêntrico, aponta. “Essa é uma crítica. Porém, os casos individuais são muito bem-sucedidos.”
Por outro lado, há muitos estudos soviéticos, russos e georgianos, diz a especialista.
“A grande maioria é publicada nas revistas russas e estão em russo. Isso era uma limitação, mas está sendo resolvida.”
O mundo inteiro está trocando informação, e agora é “só uma questão de tempo” até que os estudos já realizados na Rússia e na Geórgia cheguem no mundo ocidental, destacou Silva.
Fagos e antibióticos
Atualmente, as pesquisas médicas giram em torno de tratamentos que aliam o uso de antibióticos com bacteriófagos. “De alguma maneira, que ainda está em estudo, os fagos deixam as bactérias mais sensíveis aos antibióticos“, resume Silva.
Além disso, as pesquisas se dão ao redor de tratamentos fagoterápicos personalizados ao paciente, isto é, descobre-se a bactéria causadora da doença e se desenvolve um bacteriófago capaz de matá-la.
Segundo Silva, isso difere de como as coisas funcionam no Eliava. “Na Geórgia, no Eliava, você pode comprar um fago na farmácia, ou um coquetel.”
Esses tratamentos, assim como os antibióticos, podem ainda ser aplicados de diferentes maneiras dependendo da infecção a ser tratada, como pomadas, aerossóis, injeções e até por via cirúrgica em casos de infecção óssea.
Uso de fago aliado a antibióticos desponta no Ocidente
Publicado no início do mês, um estudo retrospectivo belga analisou 100 casos de tratamentos que aliam as duas formas de combate a infecções, mostrando melhora clínica em 77% dos casos e a eliminação da bactéria do sistema em 60%.
“O antibiótico sozinho não resolveu o problema, mas o antibiótico junto com o fago resolveu.”
Para Silva, a Bélgica, dentre os países ocidentais, é o mais avançado na fagoterapia, graças à “rapidez” com que conseguiu regulamentar as pesquisas em seu cenário regulatório — cerca de dez anos.
No resto da Europa e nos Estados Unidos, os pacientes que obtêm acesso à fagoterapia recebem dentro do chamado “uso compassivo”, isto é, “quando não há outra forma de tratamento”.
E no Brasil?
No passado, o Brasil foi um grande pioneiro na fagoterapia, com grandes médicos pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz). Dentre eles, o pioneiro doutor José da Costa Cruz, chegando a ser citado pelo Eliava como um grande expoente da área.
Em 1921, Cruz fez seus primeiros testes epidemiológicos com fagos na Serra da Mantiqueira — localizada entre os estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo —, mas sua pesquisa retornou com resultados negativos.
Na época, Cruz ainda desconhecia as observações de d’Hérelle, fazendo com que o brasileiro se tornasse o primeiro pesquisador com um resultado bem-sucedido com a fagoterapia. Mesmo assim, não desistiu e obteve bons resultados em novos testes em 1923, no Rio de Janeiro.
Com isso, certo de sua pesquisa, iniciou maiores esforços, e a Fiocruz começou a distribuir amostras de fagos por todo o Brasil, trazendo mais pesquisadores para a área, como o doutor Nelson Barbosa e o doutor Oscar Pereira.
Com a Revolução Paulista de 1924, o instituto brasileiro viu a oportunidade de realizar o maior teste de bacteriófagos até então, produzindo frascos de medicamentos contra disenteria que foram dados aos soldados governistas. Foi o primeiro teste em massa já feito, antes mesmo dos soviéticos e dos feitos por d’Hérelle na Índia.
No entanto, assim como ocorreu em muitos outros países, assim que os antibióticos surgiram, as pesquisas de fagoterapia no Brasil foram interrompidas, lamenta Silva. Agora, as pesquisas voltaram a acontecer no Brasil, mas ainda então em estágio inicial.
O lado mais avançado é justamente o agropecuário, até “por questões regulatórias”, já que as exigências para atuar no setor são menores do que as de saúde humana, descreve a pesquisadora.
No entanto, Silva destaca a boa vontade dos pesquisadores do Eliava em compartilhar seus conhecimentos e se diz aberta a recebê-los na USP. “Eles são bem abertos. A gente pode visitar o Eliava, eles oferecem cursos e treinamentos.”
“Um dos maiores congressos de vírus de micro-organismos foi realizado no ano passado na Geórgia, e vários pesquisadores foram. Infelizmente nós não pudemos ir por questões logísticas.”
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Fonte: sputniknewsbrasil