Especialistas: ‘Acenos’ de Milei a Lula visam manter relação comercial entre Brasil e Argentina


Para pesquisadores, o presidente eleito deverá buscar um equilíbrio entre defender suas pautas mais radicais — que o fizeram ser eleito — mas não extrapolar os limites para não afetar a já debilitada economia argentina, que vê no país brasileiro seu maior destino de exportações.
Professor de economia da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), Sillas de Souza Cezar comenta que, até agora, nenhum ato formal alterou a relação entre os dois países. “O presidente eleito venceu democraticamente a eleição e isso lhe garante legitimidade para tomar decisões que, se estiverem dentro da lei argentina, podem ser ou não apoiadas por seus vizinhos.”
Ele reconhece que, extraoficialmente, há, sim, tensões entre os dois líderes, definidos por ele como “carismáticos” e populistas, a depender de qual conceito é utilizado. Por serem “rivais ideológicos”, há possibilidade de que haja farpas entre ambos.

“Claro que essa ambiguidade gera incertezas. Na economia, se as medidas anunciadas por Milei forem implementadas, a Argentina aprofundará substancialmente sua crise e isso nos afetará, pois tirando a China e os Estados Unidos, nosso maior parceiro comercial é a Argentina.”

O professor avalia que, apesar de “gestos retóricos” entre as partes, no geral, a economia deve se manter equilibrada. Caso haja aprofundamento na crise, ele crê que cobranças mais sérias devem surgir. “Há o medo justificado de que a Argentina culpe o Brasil e o Mercosul por seus infortúnios e daí anuncie medidas hostis contra seus vizinhos. Não seria a primeira vez.”
Javier Milei e Jair Bolsonaro se cumprimentam durante visita do ex-presidente brasileiro - Sputnik Brasil, 1920, 08.12.2023

Qual é o papel do Mercosul nas relações Brasil e Argentina?

Criado em 1991, o Mercado Comum do Sul (Mercosul) desempenha papel fundamental nas relações entre Brasil e Argentina, representando um dos blocos econômicos mais significativos da América Latina.
Para Cezar, os dois países devem estar mobilizados para o fortalecimento do bloco econômico. No entanto, ele reconhece que o Mercosul tem problemas, tais como burocracias e “negociações infinitas”. “Mesmo com problemas, o resultado líquido em termos comerciais é positivo para os membros e parece mais razoável tentar resolver entraves do que abandoná-lo.”

“No entanto, há no imaginário popular a ideia de que qualquer acordo comercial favorece desproporcionalmente os mais ricos e essa lógica é sistematicamente capturada e manipulada por políticos, sobretudo os populistas.”

Segundo ele, o Brasil viveu algo similar nos anos 1990, quando houve uma enorme resistência contra a Área de Livre-Comércio das Américas (ALCA). “Ainda que ela viesse a ser bastante positiva, ela simplesmente foi abandonada.”
Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante reunião ministerial dos 100 dias de governo, em 10 de abril de 2023 - Sputnik Brasil, 1920, 07.12.2023

Por diretriz, o Mercosul visa promover a integração econômica e política entre seus membros, que incluem Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, além de membros associados. A Bolívia foi integrada como 5ª participante, mas ainda depende de aval de La Paz.
Para Brasil e Argentina, duas das maiores economias do grupo, o bloco oferece plataforma para a cooperação bilateral, facilitando o comércio e incentivando a harmonização de políticas econômicas.
Pesquisador do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança (GEDES) e Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INEU), Matheus de Oliveira Pereira afirma que o Mercosul é importantíssimo para o Brasil, por ser o maior projeto de política externa, apesar das críticas.

“O próprio Milei já reconheceu isso ao recuar da ideia de tirar a Argentina do Mercosul. No entanto, me parece que os próximos anos serão muito desafiadores, de bastante estresse para o bloco, e testarão sua resiliência.”

Posse de Javier Milei

Marcada para domingo (10), a posse de Javier Milei como novo presidente argentino contará com a presença de diversos chefes de Estado, a partir das 11h00 (de Brasília), em Buenos Aires. Milei disse que não convidaria Lula e convidou Bolsonaro. No entanto, passada a eleição, houve convite formal à presidência brasileira, por meio da chanceler Diana Mondino.
O professor de economia da FAAP, Sillas de Souza Cezar, afirma que tais acenos são mais formais do que simbólicos e têm pouca visibilidade nos dias atuais.
© Divulgação / Presidência da ArgentinaCasa Rosada é a sede do poder Executivo da Argentina. Buenos Aires

Casa Rosada é a sede do poder Executivo da Argentina. Buenos Aires - Sputnik Brasil, 1920, 08.12.2023

Casa Rosada é a sede do poder Executivo da Argentina. Buenos Aires
Além disso, ele explica que políticos usam a retórica para mobilizar suas bases. “Um ditado argentino diz que ‘onde termina a razão, começa a Argentina’. Apesar de exagerada e caricata, é uma expressão que revela certa tolerância com ideias voluntariosas e inapropriadas.”

“Contudo, outra característica conhecida da política argentina é a velocidade que mudam de ideia. Portanto, se os primeiros meses de governo de Milei não trouxerem elementos que apontem melhoras significativas, a oposição será forte e rápida. Diferente do Brasil, a capacidade de mobilização lá é alta, tanto à esquerda quanto à direita. Em anos não tão distantes, tais mobilizações derrubaram presidentes.”

Matheus de Oliveira Pereira espera que haja normalidade apesar “da antipatia pessoal entre os presidentes”. “É preciso diferenciar a relação interpessoal entre ambos do que é a lógica mais ampla das relações bilaterais, que envolvem muito mais atores.”

“Não convidar Lula não era uma opção, é uma questão elementar de protocolo diplomático e é preciso diferenciar as coisas. Lula é convidado do Estado argentino, Bolsonaro é convidado pessoal do presidente eleito. Acho que Milei está sendo gradativamente convencido de que a abordagem de política externa que ele prometeu em campanha é insustentável, e isso inclui a necessidade de moderar o comportamento em relação ao Brasil e ao governo Lula.”

Apesar da posição crítica contra Lula durante a campanha, Milei manteve no cargo o embaixador Daniel Scioli, que tem uma linha ideológica diferente da dele. Peronista, Scioli já foi candidato à presidência, perdendo para Mauricio Macri em 2015, e já foi vice de Nestor Kirchner, entre 2003 e 2007.
Então candidato presidencial do partido La Libertad Avanza, Javier Milei, durante o debate presidencial na Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires (UBA), em 12 de novembro de 2023 - Sputnik Brasil, 1920, 05.12.2023

No entanto, Pereira afirma que Scioli não é um político de esquerda, já que construiu sua carreira durante o período Menem, de auge das políticas neoliberais na Argentina. “A manutenção dele como embaixador em Brasília é uma boa notícia porque se trata de uma figura experiente, que acumulou um capital político importante no Brasil e transita bem na Argentina.”

“A escolha é um aceno ao Brasil e também sugere que Milei se convenceu da necessidade de uma abordagem mais pragmática em relação ao governo Lula, a despeito da visão pessoal que ele possa ter do presidente brasileiro.”

A reportagem tentou contato por diferentes meios com a embaixada argentina no Brasil, chefiada atualmente pelo embaixador Daniel Scioli, mas não obteve resposta até o fechamento do texto.
Javier Milei. Buenos Aires, 19 de outubro de 2023 - Sputnik Brasil, 1920, 05.12.2023

Qual a ideologia do novo presidente da Argentina?

O futuro presidente argentino diz seguir a ideologia do anarcocapitalismo, que une anarquia e capitalismo, e defende uma total abolição do Estado dentro de um sistema capitalista.
O cientista político e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Jefferson Nascimento acredita que Milei deve buscar equilíbrio, na prática, já que pautas radicais não poderiam ser implementadas de forma imediata e com a intensidade desejada por ele, que não tem maioria no Congresso argentino.

“Ele já vem moderando seu discurso desde que ganhou as eleições para conseguir ter alguma certa governabilidade. Isso inclui fazer aliança com a Patricia Bullrich, que foi a candidata que ficou em terceiro lugar, e o ex-presidente Mauricio Macri.”

Nascimento entende que se houver muita radicalização, ele não terá governabilidade. Mas, sem radicalização, poderá perder apoio de seus eleitores, já que muitos acreditam que as propostas serão postas em prática, muito pelo sentimento de descontentamento. “A extrema-direita vende soluções mágicas para resolver os problemas que as democracias vêm enfrentando e muitas vezes voltadas a desmantelar as instituições, desmantelar os ritos que se estabelecem.”

“Mas essa institucionalidade também presente nas relações diplomáticas entre Brasil e Argentina não podem ser rompidas de forma tão estanque e simples como ele prometeu. Sobretudo porque o Brasil, junto com a China, é o principal parceiro econômico da Argentina. Então, todo aquele discurso de campanha já se imaginava que quando a realidade se apresentasse, ele voltaria atrás desse discurso.”

Membro do Observatório Político Sul-Americano (OPSA) e do Núcleo de Estudos de Teoria Social e América Latina (NETSAL), Nascimento observa que, apesar de diferenças ideológicas com o ex-presidente argentino Alberto Fernandez e de um perfil parecido com Milei, Bolsonaro não realizou grandes rupturas nas relações entre Brasil e Argentina.

“Contudo, me parece um pouco irreal que o Milei vá fazer uma diplomacia presidencial. Não parece que ele vai fazer grandes esforços para que os organismos de integração latino-americanos avancem. Como ele disse no discurso, vai priorizar relações com os Estados Unidos e Israel […]. Ainda assim, contudo, me parece que, ao mesmo tempo, ele não acabará ou desmantelará essa institucionalidade, porque isso prejudicaria muitos setores empresariais.”

© AP Photo / Nicolas AguileraO então candidato argentino Javier Milei segura uma imagem de papelão de uma nota de 100 dólares americanos com uma imagem de seu rosto durante seu comício de encerramento da campanha em Córdoba, Argentina, 16 de novembro de 2023

O então candidato argentino Javier Milei segura uma imagem de papelão de uma nota de 100 dólares americanos com uma imagem de seu rosto durante seu comício de encerramento da campanha em Córdoba, Argentina, 16 de novembro de 2023 - Sputnik Brasil, 1920, 08.12.2023

O então candidato argentino Javier Milei segura uma imagem de papelão de uma nota de 100 dólares americanos com uma imagem de seu rosto durante seu comício de encerramento da campanha em Córdoba, Argentina, 16 de novembro de 2023

Como é a democracia da Argentina?

A democracia na Argentina é caracterizada por sistema representativo e republicano, com eleições livres e regulares que escolhem presidentes, legisladores e outros representantes do governo. O país adota modelo presidencialista, onde o chefe de Estado é eleito diretamente pelo voto popular e exerce funções executivas.
O país teve 50 chefes de Estado, segundo a própria Casa Rosada, em seu site. Entre eles, doze governaram de fato, quatro foram reeleitos, três morreram durante o mandato por causas naturais e sete exerceram o cargo apenas de forma transitória.
Rodolfo Barra durante sessão do Parlamento na Argentina - Sputnik Brasil, 1920, 01.12.2023

O economista libertário de ultra-direita Javier Milei foi eleito o 51º presidente argentino, no mesmo momento que o país sul-americano comemora 40 anos de democracia.
Neste período, o país enfrentou desafios para manter as eleições livres, divisão de poderes e participação cidadã. Entre 1987 e 1990, houve quatro revoltas militares, a Constituição foi reformada em 1994 e, em 2001, o país teve crise econômica e social que resultou em rápida troca de líderes, com repressão nas ruas, mortes e descrença no sistema político.
Bandeiras dos países-membros do BRICS são vistas durante a 15ª Cúpula do BRICS em Joanesburgo, África do Sul - Sputnik Brasil, 1920, 30.11.2023

No entanto, os governos de Raúl Ricardo Alfonsín (1983-1989) e dos peronistas Néstor Kirchner (2003-2007) e Cristina Fernández (2007-2015) sempre defenderam a bandeira do “Nunca Mais”, fortalecendo a busca pelos desaparecidos durante a última ditadura militar (1976-1983) e seus filhos, nascidos em cativeiro e ilegalmente apropriados.
Em entrevista à Sputnik, o ex-prefeito de Buenos Aires e ex-deputado nacional Facundo Suárez Lastra, da União Cívica Radical, enfatizou que, em um país onde golpes de Estado eram comuns, houve um funcionamento democrático. “Houve alternâncias, governos de diferentes tipos, e todas as pretensões hegemônicas foram superadas por uma opinião pública que pôde construir alternativas em diferentes circunstâncias.”
“Avanços significativos foram alcançados. O grande triunfo destes 40 anos é a continuidade da democracia”, destacou
Milei será o primeiro mandatário “liberal libertário”, como ele mesmo se define, e seu ascenso tem gerado questionamentos.
A mulher que o acompanhou na chapa eleitoral, Victoria Villarruel, filha, sobrinha e neta de militares, tem sido alvo de críticas por ser uma defensora ferrenha dos militares que governaram o país de forma ditatorial e foram condenados por crimes contra a humanidade.
Manifestantes, um deles agitando uma bandeira uruguaia, carregam cartazes com imagens de pessoas desaparecidas durante a ditadura uruguaia de 1973-85 durante uma marcha em Montevidéu, Uruguai - Sputnik Brasil, 1920, 21.06.2023

Ela prometeu rever a atual política de memória, verdade, justiça e direitos humanos que indenizou milhares de vítimas da repressão durante a ditadura militar e defende que os militares e guerrilheiros de esquerda são igualmente culpados.
Para Lastra, o consenso democrático é muito profundo e o sistema não está em risco. “Mesmo que alguns dos candidatos, inclusive os vencedores, tenham tido posição forte em relação a isso, […] eu acredito que existe um consenso muito forte. Acredito que as próprias Forças Armadas são protagonistas desse consenso, onde não há força com vocação de poder”.

Fonte: sputniknewsbrasil

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