As preocupações com a economia brasileira estão ganhando força com o avanço das apostas esportivas online (bets). Além dos desafios fiscais, da inflação exigindo atenção redobrada e da retomada da alta nos juros, um novo risco parece estar se somando: o possível aumento da inadimplência.
As bets foram permitidas no Brasil em 2018, durante o governo do ex-presidente Michel Temer (MDB), mas a regulamentação só começou a ser discutida no segundo semestre de 2023. A sanção da lei aprovada pelo Congresso, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), ocorreu no final de dezembro.
Nesse contexto, os analistas de varejo Nina Mirazon e Iago Souza, da Genial Investimentos, destacam que a falta de regulamentação deixou a modalidade em um “limbo legal” nos últimos anos, permitindo o crescimento exponencial desse mercado desde 2018.
Um estudo da consultoria KPMG Strategy&Innovation indica que a indústria de bets no Brasil teve um crescimento expressivo, movimentando entre R$ 60 bilhões e R$ 100 bilhões em 2023, comparado aos R$ 5 bilhões em 2018. Para 2024, as projeções do mercado variam entre R$ 90 bilhões e R$ 130 bilhões, resultando em um aumento de mais de 89% entre 2020 e 2024.
Bets ganham espaço no orçamento doméstico e afetam o consumo
A rápida expansão do mercado de apostas esportivas no Brasil está tornando-as cada vez mais presentes no orçamento das famílias, especialmente nas classes de renda mais baixa. A KPMG Strategy&Innovation revela que, entre 2018 e 2023, a importância das bets no orçamento doméstico triplicou, passando de 0,2% para 0,7%. Esse segmento já representa 38% dos gastos com lazer e cultura, além de corresponder a 4,4% das despesas com alimentação.
Uma pesquisa da Confederação Nacional dos Dirigentes Lojistas (CNDL) aponta que 46% dos apostadores já renunciaram a algum consumo para poder apostar. A Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC) indica que o crescimento do mercado de apostas está impactando principalmente as compras de vestuário e serviços, como restaurantes e viagens.
O pagamento de contas também é afetado: 15% dos apostadores já deixaram de quitá-las para usar o dinheiro nas bets. Em São Paulo, uma pesquisa da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo de São Paulo (Fecomércio-SP) mostra que 20% dos apostadores usariam o dinheiro para pagar contas caso não apostassem.
Bancos e comércio estão cada vez mais preocupados com as apostas
Os bancos e o comércio são dois dos setores mais preocupados com o avanço das bets. O presidente da Federação Brasileira dos Bancos (Febraban), Isaac Sidney, afirmou ao jornal “Folha de S.Paulo” que uma bolha de inadimplência pode estar se formando com a explosão das bets no Brasil, defendendo a proibição do pagamento de apostas via Pix.
O presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, declarou que a maior parte das transferências para as empresas de apostas online é feita por Pix, enquanto o cartão representa entre 10% e 15% das transações. Ele alertou que a conexão entre crédito e bets pode elevar à inadimplência, gerando problemas futuros.
Um levantamento da fintech Klavi analisou uma amostra de 5 mil clientes bancários e concluiu que, nos últimos 12 meses, 30% buscaram empréstimos e destinaram parte do valor a apostas online.
Instituições financeiras já estão sentindo os efeitos: dados do BC, divulgados nesta sexta (27), mostram que o percentual de crédito em atraso entre 15 e 90 dias subiu de 5%, em julho, para 5,12%, em agosto.
A inadimplência (atrasos superiores a 90 dias) registrou o segundo mês consecutivo de alta, chegando a 3,76% em agosto, o maior nível desde outubro de 2023.
Solange Srour, diretora de macroeconomia do UBS Global Wealth Management, destaca que o aumento da inadimplência não condiz com o atual momento da economia, que está aquecida.
Segundo ela, as apostas podem aumentar o endividamento das famílias em um momento de crescimento e afetar as despesas de consumo, que corresponderam a 63,8% do PIB no primeiro semestre e foram o motor da expansão da economia. A atividade tem impulsionado a economia e registrou, no segundo trimestre, o maior crescimento em 12 meses.
O mercado de trabalho aquecido tem levado, semana a semana, à revisão das projeções para o crescimento do PIB. O ponto médio (mediana) das expectativas do mercado financeiro, no boletim Focus do BC, indica uma alta de 3% no PIB, superando as expectativas do início do ano, que eram de 1,59%.
A taxa de desemprego, calculada pelo IBGE, fechou agosto em 6,6%, o menor nível para o mês desde 2012. Já o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) revelou a criação de 232,5 mil postos de trabalho com carteira assinada em agosto, 5,8% a mais que no mesmo período de 2023.
Comércio tenta barrar regulamentação
Preocupado com a expansão das bets, o comércio também entrou em cena. A Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) ingressou com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) questionando a constitucionalidade da Lei 14.790, sancionada no final de 2023.
A entidade solicita uma decisão provisória (liminar) que suspenda a norma até o julgamento do mérito, argumentando que a legislação contribui para o endividamento das famílias e afeta negativamente o setor varejista.
O ministro Luiz Fux, do STF, convocou uma audiência pública para 11 de novembro para discutir o tema.
Segundo a CNC, entre junho de 2023 e junho de 2024, os consumidores gastaram cerca de R$ 68,2 bilhões em bets, representando 0,62% do PIB e 0,95% do consumo nacional. A entidade também ressalta que as apostas online colocaram 1,3 milhão de brasileiros em inadimplência.
A confederação estima que o elevado comprometimento de renda com apostas pode reduzir em até 11,2% a atividade varejista, o que resultaria em uma perda de R$ 117 bilhões no faturamento anual do setor.
Os analistas da Genial Investimentos destacam que o segmento de vestuário é um dos mais impactados, com o volume de vendas acumulado em 12 meses registrando queda de 0,2% em julho.
O crescimento desenfreado dos gastos com apostas online já tem afetado negativamente o varejo brasileiro, seja de forma direta, com o deslocamento do consumo entre categorias, ou de maneira indireta, à medida que os consumidores reduzem o nível de poupança e comprometem sua adimplência financeira, afirmam os analistas da Genial Investimentos.
Um dos segmentos mais afetados, segundo Mirazon e Souza, é o de vestuário. Há uma mudança nas prioridades de consumo, com os recursos que antes seriam destinados à compra de roupas sendo redirecionados para apostas. O volume de vendas acumulado em 12 meses apresentou uma queda de 0,2% em julho, em comparação ao período anterior, segundo dados do IBGE.
Outro que também pode sofrer impactos é o de supermercados, conforme destacado no estudo da Genial Investimentos. “As informações são extremamente preocupantes e trarão consequências”, afirmou o presidente da Associação Brasileira de Supermercados (Abras), Márcio Milan, ao Valor.
Segundo os analistas, a influência do aumento dos gastos com bets no setor supermercadista tende a ser menor, uma vez que esse segmento trabalha com produtos essenciais. “O consumidor tende a substituir marcas e itens mais caros, buscando promoções e não priorizando uma melhoria no padrão de consumo”, afirmam.
Apesar dos desafios atuais, Milan garante que a projeção de crescimento de 2,5% para este ano não será alterada. Ele acredita que a redução do desemprego e o aumento da renda disponível continuarão a dar suporte ao consumo nos próximos meses.
Fonte: gazetadopovo