“A cúpula da instituição assumiu a instrumentalização política do presidente e fez da força policial um instrumento do governo para sua reeleição. Isso aconteceu claramente no domingo da eleição de segundo turno e nos dias seguintes, no caso das ocupações das rodovias federais Brasil afora.”
“O crescimento da bancada da bala reflete o crescimento e a afirmação do bolsonarismo na sociedade brasileira, de uma perspectiva política e ideológica mais conservadora. Do ponto de vista da segurança pública, o bolsonarismo tem se caracterizado pela afirmação da maior severidade da punição ao crime. O bolsonarismo legitima a retórica de que ‘bandido bom é bandido morto’. Este contexto político e ideológico e moral na sociedade brasileira, de maior afirmação das ideologias mais conservadoras, explica por que a bancada da bala cresceu e por que muitos policiais, notadamente mais à extrema-direita, se elegeram”, diz o sociólogo.
A impunidade como combustível para a subcultura da violência
“Não é uma demanda recente da população o estabelecimento de sanções mais efetivas contra autores de crimes. Como consequência disso, há o fortalecimento de uma narrativa daqueles que atuam nesse sentido, especialmente aqueles que sejam egressos das forças policiais. E a partir disso, especialmente nos últimos anos, nós temos nos deparado com resultados efetivos de parcela considerável desses egressos das forças policiais em suas empreitadas eleitorais. Eu não digo que isso decorre propriamente da impunidade, mas decorre de um desejo da população de uma maior efetividade no combate à criminalidade.”
“Primeiro porque a solidez das nossas instituições democráticas apresenta inúmeros mecanismos aptos a evitar essas circunstâncias. Em segundo lugar, toda nossa população, ou pelo menos uma parcela considerável dela, tem uma memória afetiva de todas as atrocidades que foram cometidas neste período [da ditadura militar], e não acredito que a própria população se submeteria a essas circunstâncias. E em terceiro lugar, as Forças Armadas não encontram e não dispõem da mesma estrutura de que dispunham em 1964. Diante disso, não vejo que as Forças Armadas teriam poder efetivo para a constituição de um regime de exceção equivalente àquele.”
“Houve uma tentativa de cooptação política e ideológica a partir do recrutamento de membros dessas instituições [militares] para ocuparem cargos importantes do governo. Certamente ele [Bolsonaro] contava com a possibilidade de ter as Forças Armadas ao seu lado em um momento como o atual, em que se questiona a legitimidade do resultado das urnas. Ele deveria estar contando que a cooptação de quadros das Forças Armadas para o seu governo poderia colocar as instituições ao seu lado nesse momento, de uma possível ruptura institucional.”
Constituição de 1988 garantiu a participação militar na política
“Desde a época do Brasil Império, das revoltas da Balaiada, Cabanagem, as forças militares brasileiras são usadas para se evitar qualquer tipo de sedição contra o poder central estabelecido, e com uso de uma força absurda, violentíssima, contra as classes populares e poder de negociação com grupos dirigentes”, explica Zaccone.
“Isso é legitimado pela Constituição do golpe militar de 1964 [a Constituição de 1967]. E em 1988 é discutido [na Constituinte] se a polícia militar fica ou não fica [nas ruas]. Os militares fizeram um lobby para que permanecesse, e pior: com uma reforma legislativa que foi feita em 1966, que ampliou o controle do Exército sobre as polícias militares. Então, a partir de 1988, a área de segurança pública passa a ser a área utilizada pelas Forças Armadas para se manterem nas relações de poder em nosso país.”
“É para manter essa ordem que o tema da segurança cresce no mundo inteiro, uma vez que, neste momento de expansão do capitalismo, setores da população vão ficar à margem, como trabalhadores, como consumidores, e, evidentemente, os bolsões de pobreza vão crescer. E o controle social dessas áreas pobres vai ter de ser realizado pelas polícias. É esse discurso que tem crescido no mundo inteiro. Talvez isso explique esse crescimento do que nós conhecemos aqui no Brasil como bancada da bala.”
Desmilitarizar para evitar “dar comida ao monstro”
“Essa subcultura tem raízes históricas na sociedade brasileira. Ela não é derivada do caráter militar da polícia. Não me parece ser o maior problema [a militarização]. Mesmo sendo uma polícia militar, é possível ter uma polícia comunitária, como vários estados brasileiros já fizeram. Minas Gerais é um ótimo exemplo de uma polícia militar com um claro caráter comunitário e com baixa letalidade.”
“O governador paga salário, pensa em política de segurança, pode até indicar o comandante-geral da polícia militar. Mas existe uma legislação no Brasil, que ainda está em vigor, que determina que o Exército pode dar uma ‘bola preta’ ao comandante indicado pelo governador. Ou seja, se o Exército não aceitar, ele não assume. Então o controle das forças policiais militares no Brasil está, em última análise, na mão do Exército. E é isso que nós temos que pensar em modificar. Desmilitarizar não é fazer com que a polícia militar acabe. Ela inclusive pode continuar usando o mesmo nome, pode continuar sendo chamada de polícia militar, desde que ela seja civil.”
“Os policiais militares são subcidadãos despidos de direitos fundamentais dos demais trabalhadores. Ele é proibido do direito de sindicalização, do direito de greve e ele não se reconhece, por conta disso, como trabalhador. Não é por menos que a polícia militar é constantemente utilizada para reprimir manifestações pacíficas e trabalhistas dos demais trabalhadores. Porque ele não consegue entender o que é um movimento grevista. Quando ele pensa em fazer greve, a greve já é rotulada como motim. É para isso que o movimento Policiais Antifascismo surgiu. Para dialogar com os policiais, com a sociedade e com o poder político sobre a necessidade de os policiais se reconhecerem como trabalhadores, porque é isso que eles são. Policial não é nem bandido nem herói. Ele é trabalhador.”
“Isso começa por desfazer um projeto de manutenção de militares na relação de poder via segurança pública, que foi disputado e vencido na Constituinte de 1988. Se a esquerda não se atentar para essa necessidade de mudança, acho que os militares vão continuar fortes nas decisões políticas que nós vamos ter [que tomar] para o futuro de nosso país.”
Fonte: sputniknewsbrasil