Crise no Texas reflete um fracasso de décadas na política dos EUA para a imigração, dizem analistas


A Suprema Corte dos Estados Unidos aprovou em março a chamada Senate Bill 4 (SB4), que garante ao Texas o direito de prender e deportar imigrantes ilegais que entram no país pela fronteira do estado com o México.
A aprovação da lei foi considerada mais uma derrota para o presidente americano, Joe Biden, em um conturbado ano eleitoral. Há meses Biden e o governador do Texas, o republicano Greg Abbott, vinham travando um embate em torno do tema da imigração. Em janeiro, Abbott chegou a colocar cercas de arame farpado na fronteira do Texas, desrespeitando o fato de que esse controle é uma atribuição federal. Posteriormente, as cercas foram retiradas por ordem judicial, mas Abbott garantiu o apoio de 26 governadores em sua empreitada contra a imigração.
Em março, após a aprovação da SB4, os governos do México e de Honduras afirmaram que não vão aceitar as medidas dispostas na lei. O presidente mexicano, Andrés Manuel López Obrador, classificou a nova legislação como “draconiana” e “anticristã” e afirmou que ela contraria os direitos humanos. Ele destacou que o México não aceitará as deportações do governo do Texas.
Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, especialistas explicam o que a nova legislação sobre a imigração no Texas significa na prática, como o governo americano pretende acomodar a nova lei com o respeito aos direitos humanos e o que a eventual derrota de Joe Biden no impasse pode significar no contexto eleitoral.

Lei aprovada ainda não pode entrar em vigor

Hannah Krispin, advogada especializada em imigração nos EUA, explica que a Lei SB4 ainda não entrou em vigor, uma vez que Biden entrou com um recurso contra Abbott contestando a nova legislação.

“Tem uma liminar, o processo na corte continua pendente. Essa lei, se vai ou não entrar em vigor, isso nós vamos saber bem mais para frente. Por causa dessa liminar, ela não pode entrar em vigor. Ela está suspensa até que haja definição do caso ou do que vai acontecer com essa lei, se vai ser derrubada ou não”, diz a advogada.

O governador do Texas, Greg Abbott, dá entrevista coletiva no Shelby Park, em Eagle Pass, Texas, em 4 de fevereiro de 2024 - Sputnik Brasil, 1920, 16.02.2024

Questionada sobre como fica o impasse, com o Texas tentando deportar e o governo federal impedindo, Krispin lembra que “a lei de imigração é uma lei federal”.
“Somente o governo federal é que pode passar leis novas. Somente o governo federal que está encarregado, se for o caso, de deter, de prender pessoas e de colocá-las em processo de deportação ou de remoção nas devidas cortes de imigração que existem pelo país afora. E é um juiz de imigração que tem autoridade para assinar uma ordem de deportação para que a pessoa possa ser removida dos Estados Unidos. Em alguns casos, oficiais da polícia de fronteira podem retornar pessoas quando elas são pegas logo após cruzarem […]. Eles também têm autoridade para fazer isso, mandar as pessoas de volta. Mas são todos, seja o juiz federal ou juiz da corte de imigração ou oficial de fronteira, todos são oficiais federais do governo federal.”

Como está a imigração nos Estados Unidos hoje?

No entanto, a advogada ressalta que Abbott recorreu à nova lei porque dois terços da fronteira do México com os EUA ficam no estado do Texas, e o número de imigrantes cruzando a região durante a administração Biden “aumentou barbaramente”.

“Nós estamos falando em milhares de pessoas. Não sou analista política, mas o que eu pude entender das diversas reportagens que li é que o governador Greg Abbott passou essa lei porque eles realmente acham que o estado do Texas está numa situação de calamidade com tanta gente entrando.”

O presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, durante sua coletiva de imprensa diária no Palácio Nacional. Cidade do México, 14 de novembro de 2022 - Sputnik Brasil, 1920, 20.03.2024

Eleições nos EUA: imigração é tema nevrálgico para a disputa presidencial

Krispin, entretanto, sublinha que também há um componente político na questão, uma vez que Abbott é republicano, Biden democrata e os EUA passarão por eleições presidenciais em novembro.

“Dizem que ele [Greg Abbott] está de olho em ser o candidato a vice-presidente juntamente com Donald Trump, [que pretende concorrer no pleito]. Então vamos ver o que vai acontecer, o motivo real desse tipo de lei ou a razão pela qual foi aprovada.”

Krispin afirma que não foi explicado à população como a SB4 funcionaria em termos práticos, mas diz que o texto determina que “um policial estadual poderia prender e acusar criminalmente uma pessoa que for pega entrando no país e não estiver devidamente documentada”.
“Essa pessoa, sendo detida pela primeira vez, poderia ser condenada a até seis meses de prisão, e as pessoas que fossem pegas repetindo a infração poderiam ser condenadas de dois até 22 anos [de prisão]”, explica a advogada.

“Agora o interessante da lei é que se a pessoa fosse condenada e falasse: ‘Olha, eu não quero cumprir tempo de prisão não, me manda embora’, a lei oferece essa possibilidade de a pessoa ser deportada. Mas não deportada para o país de origem, e sim para o México. E o México já falou que não tem condição de aceitar de volta todo mundo que chega até lá [EUA] e cruza a fronteira. Normalmente, quando uma pessoa é deportada, ela é deportada para o país de origem”, complementa.

Imigrantes são levados sob custódia por autoridades em Eagle Pass, na fronteira entre o Texas e o México. EUA, 3 de janeiro de 2024 - Sputnik Brasil, 1920, 07.02.2024

Questionada se a nova lei pode ser vista como uma tentativa de criminalizar a imigração, Krispin afirma que a imigração ilegal já é tipificada como crime, passível de processo judicial, e ressalta que os três estados que fazem fronteira com o México — Texas, Arizona e Califórnia — “não têm como acolher todo mundo”.
“A gente tem que lembrar que, a partir do momento que as pessoas entram [nos EUA], o governo tem que providenciar abrigo, comida e tratamento médico para as pessoas que estão doentes ou se machucaram. Crianças têm que ser levadas para um abrigo especial. Se são famílias, as crianças não podem ser separadas dos pais, têm que ficar num lugar separado, porque você não vai colocar crianças com adultos que não são relacionados a elas. Eventualmente, essas crianças têm que ir para a escola. Então é uma loucura em termos de gastos e de condições do país de poder fornecer tudo isso.”
A advogada afirma que nenhum país do mundo tem suas fronteiras abertas, o que inclui os EUA.

“Cruzar a fronteira é ilegal. Para entrar em um país qualquer, você tem que ter passaporte, visto para ser legalmente admitido. Nenhum país admite pessoas assim: ‘A fronteira está aberta. Se quer vir para cá, entra, nós vamos te acolher. Nós temos como te acolher, arrumar escola para as crianças, arrumar emprego, te dar autorização de trabalho.’ Isso é uma coisa muito complicada.”

EUA colecionam fracassos nas políticas para lidar com a imigração

A imigração sempre foi um ponto nevrálgico da política dos EUA, afetando tanto governos democratas quanto republicanos, como aponta Denilde Oliveira Holzhacker, professora de relações internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).
“É um tema que desde os anos 90 é constante na política americana, mas Biden e Trump tiveram diferenças bastante grandes na assistência à chegada de imigrantes, no processo de deportação, que no caso de Trump tinha um processo de segurança ainda mais restritivo. Na postura de Biden houve mudanças com relação às famílias de imigrantes para que elas não fossem para lugares diferentes de detenções”, explica a professora.
“Então acho que tem vários pontos de diferenças se a gente compara Trump e Biden. Mesmo se comparar [Barack] Obama e Trump. Apesar de Obama também ter feito muitas ações de deportação, a forma e a lógica foram bem distintas do que era a proposta do Trump.”
Donald Trump, ex-presidente dos EUA (2017-2021) e candidato à presidência em 2024, sobe ao palco após discursar em um comício em Las Vegas, Nevada, EUA, 27 de janeiro de 2024 - Sputnik Brasil, 1920, 28.01.2024

Ela acrescenta que o imbróglio envolvendo a nova legislação reflete “a incapacidade dos Estados Unidos de lidar com esse problema”, independentemente do governo.
Segundo sua análise, a estratégia de governos de estados mais afetados como Texas, Flórida e Novo México, de enviar imigrantes para estados governados por democratas, como Nova York, acaba aumentando “a percepção negativa sobre o imigrante em estados que sempre foram muito abertos à entrada de imigrantes”.
Ela afirma ainda que a imigração também tem um aspecto positivo tanto para imigrantes quanto para o país acolhedor.

“Todos [os imigrantes] têm a mesma motivação: ir para países em que é possível reconstruir suas vidas e ter ganhos econômicos. Estudos mostram que muitos desses imigrantes são importantes para a economia local, porque eles vão atuar em áreas que muitas vezes o cidadão daquele país não vai buscar emprego. Então eles substituem em termos de mão de obra e também têm uma base de consumo muito grande.”

Ademais, dados apontam que a importância dos imigrantes no contexto eleitoral é crescente nos EUA. Atualmente, a comunidade latina no país gira em torno de 15% do eleitorado americano, e estudos indicam que até 2050 o espanhol será a língua mais falada nos EUA.

“É exatamente pelo crescimento da comunidade latina [nos EUA] que a gente tem que dividir em duas questões. Do ponto de vista eleitoral, a comunidade latina que vota é a comunidade latina permanente, que já tem pelo menos uma geração no país, muitas já estão na segunda, terceira geração, que tem cidadania americana. O outro grupo são os imigrantes que estão chegando, que não têm direito a voto […]. É um grupo importante, cada vez maior, que vai ter cada vez mais peso eleitoral. Isso também é explorado na campanha [eleitoral]. Especialmente os democratas têm buscado esse voto hispânico”, afirma a professora.

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Fonte: sputniknewsbrasil

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