‘Crise aguda’: Igreja Católica vive pressão para se adaptar a um ‘mundo diferente’


A história da colonização da América Latina está entrelaçada à presença da Igreja Católica no continente, servindo tanto como agente evangelizador como instrumento de dominação cultural e social.
Ao longo do período colonial, missionários católicos, sobretudo jesuítas, foram enviados para converter povos indígenas ao Cristianismo. Embora alguns missionários tenham defendido os direitos dos nativos, a instituição eclesiástica, em geral, estava alinhada aos interesses das coroas europeias e contribuía para impor valores ocidentais e explorar as populações locais.
Em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, Renan William dos Santos, bacharel em ciências sociais e doutor e mestre em sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), afirma que no período colonial a cristianização e a expansão política não eram objetivos separados.
“Eles eram processos interligados. Independentemente de ser ibérica ou não, a Igreja estava em um sistema em que a religião e o poder político, a expansão imperial, eram coisas totalmente umbilicais. Então a catequese não convertia só o indígena. Ela também inseria pessoas numa nova relação de trabalho e de obediência. Ela reforçava novas hierarquias. Então os colonizados não eram só novos membros da ordem cristã. Eles eram novos súditos”, explica.
Grafite representando o Tio Sam, símbolo nacional dos Estados Unidos, em uma rua de Caracas, na Venezuela - Sputnik Brasil, 1920, 01.08.2024

Ele afirma que quando eclodiram os movimentos independentistas na América Latina, o papel da Igreja Católica foi ambíguo. Isso porque a elite clerical na época ficou ao lado das metrópoles, mas ao mesmo tempo vários setores da Igreja, sobretudo párocos, participavam ativamente dos movimentos independentistas.
“No México, por exemplo, um padre foi um dos principais pais da independência mexicana. No Brasil, esse papel ambíguo fica um pouco mais claro porque a Igreja teve uma postura conservadora que, ao mesmo tempo, ficou bem com a metrópole, mas apoiou uma transição de independência monárquica. Então ela manteve uma continuidade dos privilégios ao mesmo tempo que rompia com a metrópole. Era um novo regime, mais ou menos, com Dom Pedro I. Então a Santa Sé demorou não à toa a reconhecer a independência brasileira, e só fez isso depois de negociações que preservaram o padroado, que era esse sistema bastante ambíguo de relação da Igreja com o poder terreno.”
Já na década de 1960, aponta o especialista, durante a ascensão do marxismo e das revoluções socialistas na Rússia e em Cuba, a Igreja viu regimes autoritários de direita como uma espécie de mal menor para conter o avanço dos ideais comunistas.
“No Brasil, a cúpula da Igreja inicialmente também apoiou o golpe de 64, também sob o pretexto do comunismo. E a gente está falando, eu estou mencionando bastante aqui a questão da atuação da cúpula, mas no plano popular, no cenário brasileiro, o apoio civil ao golpe foi marcado por figuras católicas muito influentes. A Marcha da Família com Deus pela Liberdade foi organizada pela TFP, que é a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade, que era um dos grupos mais influentes politicamente no Brasil à época. Foram eventos como esse que foram interpretados à época como um sinal de apoio da sociedade civil à intervenção militar.”
O especialista destaca que a “balança” muda internacionalmente no final da década de 1970, e a Igreja passa a ter atuação na redemocratização.

“E aí a gente tem um evento marcante a esse respeito, que é o concílio Vaticano II, um conclave marcado por essa percepção de que: ‘Opa, o mundo está mudando de uma forma muito brusca e a gente precisa fazer alguma coisa estratégica para acompanhar.’ Esse evento na história da igreja marca ali uma mudança muito forte em direção aos movimentos de direitos humanos, principalmente. Então, aqui no Brasil, a gente tem isso aí refletido na própria Igreja, assumindo aquela frase famosa, o papel de voz daqueles que não têm voz e depois ela participa dos movimentos pela anistia, pelo movimento de diretas já, pela redemocratização.”

O então bispo de Bridgeport, William Lori, discursa no Capitólio Estadual de Connecticut, em Hartford, em protesto contra a legislação, já retirada, que mudava a forma como as finanças paroquiais são administradas (foto de arquivo) - Sputnik Brasil, 1920, 30.01.2024

Santos afirma que, atualmente, a Igreja Católica ainda é uma instituição muito relevante e influente na América Latina, mas em uma crise cada vez mais aguda, com o número de católicos em queda, já sendo superado pelo número de evangélicos.
“Isso aí é ligado a diversos fatores, mas os evangélicos têm, recorrentemente, em diversos contextos mostrado uma proximidade maior com as camadas populares, uma presença mais forte na mídia, na esfera política, uma capacidade de cativar o grande público que não está sendo alcançada ainda pela Igreja [Católica], principalmente diante de escândalos públicos que mancharam a história da Igreja”, explica o especialista.
Ele concorda que a Igreja Católica precisa de uma guinada para não perder sua relevância política, e frisa que já há movimentos internos crescentes nessa direção, como sacerdotes que defendem a flexibilização do celibato.

“A imposição de uma restrição como celibato para a formação da sua mão de obra de agentes religiosos gera um funil gigantesco para a Igreja. Hoje […] muitos sacerdotes estão ativamente tentando flexibilizar para poder ter mais mão de obra. E aí entra, por exemplo, também o sacerdócio feminino. Ao restringir um papel mais ativo das mulheres na Igreja, você de novo está impedindo ali uma parcela significativa de agentes que poderiam estar trabalhando a seu favor, com um papel mais proeminente. […] Essa adaptação simbólica reflete uma pressão organizacional, de estar mais adaptado a um mundo que é diferente.”

Nashla Dahás, doutora em história social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), afirma ao Mundioka que no passado a Igreja Católica se envolvia em tudo, e atualmente existe uma população formada por um conjunto de valores que estruturaram as suas instituições, seus afetos, suas maneiras de sentir e de entender.
“Isso ainda vigora. Apesar de todas as transformações da tecnologia, na comunicação, da globalização, esse núcleo duro […] ainda é muito forte. Por exemplo, quando a questão do aborto é colocada em jogo, a descriminalização do aborto, não só por conta dos fundamentalismos religiosos atuais, mas também a Igreja Católica se posiciona de maneira muito conservadora. E isso é muito fundamental em todos os países latino-americanos”, afirma.
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Ela aponta que, durante a Guerra Fria, os EUA colocaram em ação toda a sua máquina anticomunista e em países latino-americanos grupos de empresariado e também a Igreja Católica participaram de movimentos conservadores, apoiando inclusive golpes militares e ditaduras subsequentes.

“E qual era a base do anticomunismo? A base do anticomunismo difundida socialmente era aquela de um imaginário contra a família. Então, bem, basicamente era aquela que difundia as ideias socialistas, então o inimigo dos EUA, as ideias socialistas como contra a família, como contra todos os valores que supostamente teriam constituído essas sociedades.”

Ela acrescenta que essa indústria anticomunista “falou bastante, fez bastante propaganda em todos os níveis da desestruturação da família e foi muito eficaz”.
“Na academia também houve incentivo às ideias conservadoras, às instituições de pensamento que divulgavam essas ideias […]. Na América Latina houve grandes movimentos de mulheres conservadoras que iam às ruas apoiar golpes ou apoiar as suas direitas, suas extremas-direitas, os seus grupos golpistas, em defesa da família, em defesa de Deus, dos valores cristãos”, afirma.
Posteriormente, quando eclodiram as denúncias de repressão e tortura como política de Estado de países latino-americanos sob regime ditatorial, Dahás afirma que os setores foram mudando de opinião e religiosos passaram a ter um papel fundamental na denúncia pelos direitos humanos e em ajudar movimentos de resistência, de oposição à ditadura.
Papa Francisco conversa com jornalistas ao deixar o Hospital Universitário Agostino Gemelli em Roma, sábado, 1º de abril de 2023 - Sputnik Brasil, 1920, 01.04.2023

“Há essas ambiguidades e essas mudanças de posição ao longo das ditaduras. A Igreja não é um bloco homogêneo em que todos ali dentro apoiam ou não [uma ideia]. Há divisões, e essas divisões vão mudar de posições de maneiras diferentes ao longo da segunda metade do século XX.”

Ela sublinha que, a partir dos anos 1980 e 1990, há uma ascensão do neoliberalismo que, em paralelo, vem acompanhada de uma expansão do fundamentalismo religioso neopentecostal, “que é bastante reacionário e que fala de uma teologia da prosperidade”, diferente da teoria da libertação, abordagem que ganhou impulso na Igreja Católica e que trouxe os pobres e a pobreza para o centro das ações de religiosos.
“Por isso eu mencionei o neoliberalismo também. Não é uma teologia mais da libertação, você não quer se libertar, você quer prosperar […] porque as pessoas, a partir dos anos 90 e cada vez mais, são guiadas, orientadas pelo seu cotidiano individual, em meio a essa ultraprecarização do trabalho, […] a comercialização da educação, principalmente as políticas de desolidarização, que acabam com […] tudo o que tem a ver com o coletivo e o comum na sociedade.”
A especialista afirma que, atualmente, o principal desafio da Igreja Católica para manter sua relevância no cenário político é saber como responder às questões de diversidade, que muitos convencionaram chamar de identitarismo.

“Mas eu não tenho visto grandes respostas da Igreja nesse sentido. Da Igreja de maneira geral na América Latina. Outra questão são as populações indígenas, que são, eu entendo hoje, uma grande vanguarda de luta, de luta à esquerda. São as populações indígenas de toda a América Latina se juntando com populações de rua e por aí vai. Que resposta essa instituição, que ainda é dogmática e precisa ser para ser o que é, vai responder a isso?”, questiona Dahás.

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Fonte: sputniknewsbrasil

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