A visita, que já havia sido programada há algumas semanas, terminou com a convicção de que: por mais que estejam distantes geograficamente, Brasil e Rússia guardam algumas visões de mundo bastante próximas acerca das relações internacionais contemporâneas.
A primeira delas foi justamente (re)confirmada durante a recente ida de Lula à China e tem relação com a contestação do papel do dólar como moeda de transação global, ponto este que vem sendo levantado ao longo de vários anos pela Rússia, vítima de sanções ocidentais desde 2014.
Moscou, por sua vez, se tornou um dos principais países a advogar o uso de moedas alternativas para o comércio bilateral com parceiros econômicos importantes (como é o caso, por exemplo, de China e Índia), assim como com o próprio Brasil.
Nesse quesito, as recentes declarações de Lula na China demonstraram que o Brasil entende as mudanças hoje em curso, em que o dólar vem perdendo prestígio internacionalmente devido às políticas erráticas dos Estados Unidos, o que aponta para uma nova reconfiguração (geo)econômica nas relações globais de comércio.
Outra questão importante tratada na visita tem relação com a abordagem brasileira frente ao conflito na Ucrânia. Lula tem se posicionado no sentido de encorajar esforços para o estabelecimento de conversações de paz entre os atores envolvidos, fazendo um verdadeiro chamamento aos países considerados “neutros” e do Sul Global para que juntos possam facilitar uma resolução para a crise.
Na entrevista concedida após o encontro com Lavrov, Mauro Vieira confirmou a posição do Brasil como um dos principais advogados por trás da criação de um grupo voltado para a retomada de negociações entre Rússia e Ucrânia.
© Foto / Gustavo Ferreira / MRE do BrasilNesta foto divulgada pelo Ministério das Relações Exteriores da Rússia, o ministro das Relações Exteriores russo, Sergei Lavrov, e o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Mauro Vieira, participam de uma reunião em Brasília, Brasil, 17 de abril de 2023
Nesta foto divulgada pelo Ministério das Relações Exteriores da Rússia, o ministro das Relações Exteriores russo, Sergei Lavrov, e o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Mauro Vieira, participam de uma reunião em Brasília, Brasil, 17 de abril de 2023
© Foto / Gustavo Ferreira / MRE do Brasil
Com efeito, embora tenha votado juntamente com o Ocidente nas moções condenatórias à Rússia na Assembleia Geral da ONU, o Brasil ainda assim endossou as propostas chinesas para uma solução de paz, nas quais evidencia-se uma interpretação diferente da dos países ocidentais sobre o conflito.
Na declaração conjunta sino-brasileira, ambos os países adotaram uma posição de crítica ao fortalecimento e expansão de blocos militares na Europa, reafirmando sua rejeição quanto à aplicação de sanções unilaterais sem autorização do Conselho de Segurança da ONU, assim como a importância do conceito de “indivisibilidade” da segurança internacional.
Sobre a questão das sanções, por exemplo, Mauro Vieira fez questão de lembrar os efeitos negativos que elas causam para a economia global e para os países em desenvolvimento, posto que tais países são justamente os mais vulneráveis a choques externos.
No mais, a visita de Lavrov ao Brasil se deu sob o pano de fundo de uma (re)aproximação da Rússia com a América Latina, dessa vez em bases mais pragmáticas e desideologizadas (como afirma o mais recente Conceito de Política Externa da Rússia).
Diante dessa nova conjuntura, a Rússia indicou sua intenção não somente em aprofundar laços comerciais com o Brasil, mas também em ampliar sua parceria estratégica para a defesa da “multipolaridade” nas relações internacionais.
Vale lembrar que ambos os países se opõem ao unilateralismo americano, expressado por políticas de regime change e de intervenções desastrosas em diversas partes do globo, vitimando inclusive a própria América Latina. Diante desse contexto, a visita de Lavrov ao Brasil aponta para o fortalecimento de novas alianças e parcerias para a construção de um mundo verdadeiramente multipolar e policêntrico.
Não obstante, no âmbito de sua coletiva de imprensa Mauro Vieira também reafirmou o apoio russo às intenções do Brasil de se tornar um membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, aspiração política de longa data do país.
O próprio grupo BRICS reconhece a necessidade de reformar o Conselho de Segurança, de forma que ele se torne mais efetivo e legítimo internacionalmente. Logo, trata-se de mais um dos entendimentos comuns compartilhados entre Brasil e Rússia, que visam tornar o sistema internacional mais representativo e justo.
Lavrov, outrossim, também mencionou que a Rússia vê com bons olhos os esforços do Brasil para o fortalecimento de iniciativas de integração regional como a CELAC, o Mercosul e a Unasul, cujo resultado será a consolidação de uma América Latina mais unida e independente, tornando-se um dos centros de influência do mundo multipolar.
Com efeito, já nas primeiras movimentações de Lula no governo, o Brasil apontou para o revigoramento de seus laços políticos regionais no sentido da formação “de uma comunidade latino-americana de nações”. Essa, sem sombra de dúvidas, é uma iniciativa que contará cada vez mais com o apoio russo.
© Foto / Gustavo Magalhães / MRE do BrasilDeclaração à imprensa dos ministros de Relaçôes do Brasil e Rússia, 17 de abril de 2023
Declaração à imprensa dos ministros de Relaçôes do Brasil e Rússia, 17 de abril de 2023
© Foto / Gustavo Magalhães / MRE do Brasil
Por fim, é notório que tanto o Brasil quanto a Rússia modificaram sua posição internacional durante os anos 2000. Ambos os países foram capazes de saldar suas dívidas com instituições ocidentais, passando então a aumentar sua voz e participação nas organizações de tomada de decisão global em defesa de seus interesses nacionais.
Nesse contexto, Lavrov relembrou que o Ocidente tem tentado manter sua posição dominante no sistema a todo custo, mesmo em vista de uma nova realidade geopolítica do mundo. Para o Brasil, essas tentativas de manutenção do antigo status quo refletem o próprio caráter dicotômico das relações Norte-Sul, historicamente marcada pelos esforços das economias capitalistas avançadas de prejudicar o desenvolvimento econômico dos países do Sul Global.
Para a Rússia, por outro lado, essas tentativas de preservação do status quo pelos americanos e europeus remetem à clássica divisão Ocidente-Oriente típica da Guerra Fria, o que fez com que Moscou buscasse unir forças com países como Índia, China e Brasil justamente no intuito de se contrapor a esse projeto de dominação das potências ocidentais.
Com o sucesso da visita de Lavrov ao Brasil, restou demonstrado que ambos os países não irão abrir mão de sua soberania e que ambos estão prontos para continuar sua defesa por um mundo plural e mais justo.
Ora, tão vasto quanto os territórios de Brasil e Rússia são também suas aspirações políticas no cenário global.
As opiniões expressas neste artigo podem não coincidir com as da redação.
Fonte: sputniknewsbrasil