Carta a Lula prova que Milei sabe que se afastar do Brasil seria ‘um tiro no pé’, aponta cientista


É celebrado nesta quinta-feira (30) o Dia Internacional da Amizade Brasil-Argentina. A data remete a um encontro entre os presidentes José Sarney e Raúl Alfonsín, em 1985, em Foz do Iguaçu (PR), quando ambos assinaram a Declaração de Iguaçu, tratado que lançou as bases para a integração econômica entre os dois países e é considerado o primeiro passo para a criação do Mercosul e a integração regional sul-americana.
Hoje, quase 40 anos após o encontro, o projeto de integração regional é colocado em xeque pelo presidente eleito argentino Javier Milei, ultraliberal que tem entre suas pautas afastar a Argentina de organismos internacionais, proferiu ataques contra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em campanha e convidou o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), adversário político de Lula nas eleições do ano passado, para sua cerimônia de posse, marcada para 10 de dezembro.
Posteriormente, Milei mudou o tom, e enviou a Lula uma carta convidando o presidente para a posse. Ainda não há indício de que o chefe de Estado brasileiro vai atender ao convite, embora tenha reconhecido a importância da cooperação com o país vizinho.

Qual é a relação entre Brasil e Argentina?

Para entender como fica a relação entre os países, após os embaraços diplomáticos criados pela postura de Milei, e como a ascensão do ultraliberal pode impactar na atuação do Mercosul, a Sputnik Brasil conversou com Fabio Andrade, professor de relações internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), e Jefferson Nascimento, cientista político e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e membro do Observatório Político Sul-Americano (OPSA) e do Núcleo de Estudos de Teoria Social e América Latina (NETSAL).
Fabio Andrade afirma que a mudança de tom de Milei reflete um choque de realidade, que ele afirma ser algo benéfico, em especial para a Argentina.

“É muito positivo ver que esses personagens, esses atores políticos, estão tendo a consciência de que uma coisa é o discurso para a atração do eleitor, outra é a operação da máquina pública. Eu tenderia a dizer que houve um choque de realidade, porque basicamente o Brasil é o destino de 15% das exportações da Argentina. Não se arruma 15%, não se reorienta a economia, no sentido de vendas externas de exportação, da noite para o dia.”

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Ele acrescenta que agentes políticos sabiam que, se o discurso de campanha de Milei fosse levado a sério, “geraria impactos econômicos ruins para o Brasil, mas muito piores para a Argentina”.
Sobre a decisão de convidar Bolsonaro para a cerimônia de posse, Andrade afirma que ela tem como base um estreitamento de laços de dois políticos com ideias em comum.
O professor de relações internacionais diz que Milei e Bolsonaro integram a gama de políticos que conquistaram espaço na política “em virtude de problemas cada vez mais complexos de serem atendidos”. Ele ressalta que, em democracias, há espaço para a insatisfação ou grupos de pessoas que não se sentem atendidas pelo sistema.

“Então, [essas pessoas] vislumbram, na possibilidade de alterações de instituições ou da classe política, uma melhoria da democracia. É o discurso antissistêmico, relacionado com se apresentar como verdadeiros portadores dos anseios populares contra classes que querem operar política apenas e tão somente para manter seus privilégios. Tanto Milei quanto Bolsonaro operam nessa chave. Então, eu diria que a primeira aproximação é ideológica.”

Ele acrescenta que essa aproximação também aponta “a inegável existência de articulação e comunicação entre grupos de extrema-direita”. “O que a gente pode dizer é que, nesse momento da quadra histórica, [a extrema-direita] é um movimento mais organizado e de melhor comunicação do que os grupos de esquerda. Então, há não só uma base ideológica em comum, mas um movimento organizado.”
A opinião de Andrade é compartilhada por Jefferson Nascimento. Em entrevista à Sputnik Brasil, ele afirma que a extrema-direita, de fato, aparenta se articular de maneira internacional, e que Milei e Bolsonaro seriam parte dessa tendência, embora haja algumas diferenças.
“Tanto Bolsonaro quanto Milei têm essa afinidade ideológica com EUA e Israel. É importante lembrar que quando [Joe] Biden foi eleito [presidente dos EUA], Bolsonaro freou um pouco o discurso pró-EUA, já que, aparentemente, o vínculo dele maior era com [Donald] Trump, com aquela liderança especificamente. Mas me parece que os líderes da extrema-direita se articulam mais nesse formato de um fortalecer o outro.”

Brasil e Argentina: soluções mágicas para problemas complexos

Jefferson Nascimento destaca que uma das fórmulas usadas pela extrema-direita para ganhar espaço é propor soluções mágicas para problemas complexos, galvanizando a insatisfação popular e convertendo em apoio eleitoral. Nesse contexto, o desmantelamento de instituições e ritos democráticos se torna uma bandeira.
“Existe uma estratégia da extrema-direita de propor um discurso radical de desmantelamento das instituições e de uma série de procedimentos e ritos, como forma de soluções mágicas para problemas complexos, e muitas vezes não se diz o que vai se colocar no lugar.”
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Ele acrescenta que, no caso de Milei, as soluções mágicas consistem em “acabar com ministérios, com o Banco Central, dolarizar a economia e cortar relações com os países ditos comunistas, incluindo, nesse caso, o Brasil”.
“Mas era de se esperar que, no caso da relação com o Brasil e com a China, seria um tiro no pé, um suicídio a Argentina cortar relações, justamente porque são seus principais parceiros comerciais. Em um cenário de crise, como você vai cortar a relação com os principais parceiros comerciais? Ou seja, era algo que já era esperado que, em algum momento, ele iria voltar atrás em relação a isso.”
Fabio Andrade, por sua vez, afirma ser pouco provável que a Argentina se afaste da China, e chama atenção para o estreitamento de laços observado entre os países nos últimos anos.

“Houve uma aproximação da Argentina com a China no sentido de a Argentina fazer parte da [nova] Rota da Seda, que coloca o país como destino de investimento chinês de diferentes tipos e modalidades, mas sobretudo em infraestrutura. As instituições financeiras argentinas começaram a fazer parte do CIPs, que seria o swift chinês, e isso trouxe como fruto direto parte das negociações da Argentina serem remuneradas em renmimbi.”

Ele acrescenta que é pouco crível que Milei distancie a Argentina da China, pois terá que encontrar outro parceiro econômico para suprir o percentual de 8% que hoje representa as exportações argentinas ao país.
“Dependeria de ele [Milei] achar outros destinos que absorvessem esse 8%. ‘Ah, ele falou que vai aprofundar as relações com EUA e Israel’. Agora, é necessário ver: faz parte das métricas e dos interesses do governo norte-americano aprofundar as relações com a Argentina? Me parece pouco crível.”
Carlos Menem e Zulema Yoma, sua esposa à época, acenam da sacada da Casa Rosada no dia da posse de Menem como presidente da Argentina. Buenos Aires, 8 de julho de 1989 (foto de arquivo) - Sputnik Brasil, 1920, 22.11.2023

Ele afirma que não seria razoável nem republicano colocar a ideologia à frente dos dados econômicos, e destaca que as exportações da Argentina para Brasil e China representam 23% da economia do país.

“Como é que você vira e fala [para a população] ‘Olha, rompemos relações comerciais com esse parceiro porque eles não compartilham da mesma ideia que a gente?’ Você está penalizando a totalidade da população argentina, não faz sentido, não é democrático, razoável nem republicano […] A ideologia é um conjunto de ideias, que pode ser positivo ou negativo. A priori, a gente não tem como fazer qualquer avaliação sobre um conjunto de ideias. Mas o que não dá é o conjunto de ideias ser mais importante do que a realidade de dados, fatos e alianças econômicas que estão colocadas.”

Relação da Argentina com Mercosul e BRICS na berlinda

Questionado se Milei deve comparecer à cúpula do Mercosul, marcada o dia 7 de dezembro, no Rio de Janeiro, Jefferson Nascimento afirma que, apesar de Milei ter moderado seu discurso após a vitória nas eleições presidenciais, é difícil imaginar que, como um líder da extrema-direita, fará algum esforço para fortalecer um organismo internacional. “Me parece difícil imaginar que Milei vai se aproximar, vai fazer esse esforço de fortalecer o Mercosul.”
A situação, no entanto, não se aplica ao BRICS, grupo que a futura chanceler argentina, Diana Mondino, afirmou, nesta quinta-feira (30), que a Argentina não integrará.
O especialista aponta que “seria para a Argentina uma oportunidade interessante participar do grupo, tendo em vista que o país passa por uma crise de reservas muito grande”.
“A diversificação das fontes de crédito poderia ser uma oportunidade a mais para que o país pudesse gerenciar essa crise e superá-la. E é importante lembrar que, recentemente, o governo argentino pagou uma dívida do FMI com dinheiro da China, com empréstimos que vieram da China. […] poder diversificar e ter acesso, por exemplo, ao crédito do Banco do BRICS seria uma estratégia interessante do ponto de vista pragmático, de conseguir diversificar as fontes de financiamento e gerenciar melhor as finanças do país.”
Uma imagem do candidato presidencial argentino da aliança La Libertad Avanza (A Liberdade Avança), Javier Milei, é vista na janela de um ônibus enquanto seus apoiadores comemoram sua vitória no segundo turno das eleições presidenciais no Obelisco de Buenos Aires, 19 de novembro de 2023 - Sputnik Brasil, 1920, 28.11.2023

Ele afirma que esse pragmatismo está presente nos esforços do Brasil para trazer a Argentina para o BRICS.

“Não à toa, o Brasil fez um esforço para incluir a Argentina dentro do BRICS na expansão que o grupo teve recentemente. Porque para o Brasil não interessa uma Argentina em crise. A Argentina é um dos principais parceiros do país, e é um intercâmbio muito grande de produtos, de mercadorias, um comércio bastante importante.”

Por sua vez, Fabio Andrade acredita que Milei não deve distanciar a Argentina do Mercosul. Em sua avaliação, “os últimos sinais dão conta que Milei tem uma total noção do tamanho e da importância dos países do Mercosul para a Argentina”. “Então, faz todo sentido que, ao contrário de todo discurso durante a eleição, ele participe da cúpula do Mercosul.”

Lula deve ir à cerimônia de posse de Milei?

Questionado se o presidente Lula deveria aceitar o convite de Milei e comparecer à cerimônia de posse do argentino, Fabio Andrade diz que “faria todo sentido Lula aceitar o convite”.

“Passaria uma mensagem de que se pensa de forma republicana acima de quaisquer possíveis diferenças ideológicas ou até determinadas falas de cunho mais pessoal. E vamos lembrar: ainda que seja difícil a gente pensar exatamente o mesmo modelo, porque a conjuntura é outra, o mundo mudou muito nesses 20 anos, no primeiro governo Lula, o governo norte-americano era de George W. Bush, e isso não implicou em relações necessariamente ruins entre esses dois atores políticos.”

Ele acrescenta que “Milei voltou atrás e fez tudo do ponto de vista ‘by the books’ da diplomacia”. “Ele pediu que a diplomata [argentina] viesse com uma carta formal. Primeiro houve o convite ao ministro das Relações Exteriores, depois uma carta. Está tudo dentro do script. Então faz todo o sentido que o governo Lula, em um sinal de que pensa republicanamente, compareça à posse de Milei.”
Donald Trump, ex-presidente dos EUA (2017-2021), fala durante Convenção do Partido Republicano da Carolina do Norte em Greensboro, Carolina do Norte, EUA, 10 de junho de 2023 - Sputnik Brasil, 1920, 28.11.2023

Fonte: sputniknewsbrasil

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