A indústria automotiva já percebeu que terá que diversificar seus processos para ser mais sustentável e reduzir as emissões de dióxido de carbono. Se a largada foi a produção de motores e combustíveis mais eficientes, a ideia agora é reduzir o impacto ambiental com uso de materiais como “couro vegano” feito de cogumelo e abacaxi; fibras de cana-de-açúcar e cânhamo e até redes de pesca e camisetas usadas nos carros.
Após anunciar que vai construir carros sem couro animal a partir deste ano, a BMW ousou ao divulgar que usará redes de pesca indevidamente descartadas nos oceanos em sua linha de produção. Além de reduzir emissões, a iniciativa pretende combater a poluição por resíduos plásticos.
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A montadora trabalha em parceria com a Plastix, empresa de reciclagem dinamarquesa, para separar os resíduos e produzir grânulos plásticos. A nova linha de veículos da BMW Neue Klasse, prevista a partir de 2025, vai incluir peças plásticas de acabamento contendo 30% de redes e cordas de pesca recicladas.
O elétrico BMW iX, por exemplo, tem assentos feitos de garrafas PET e painéis de portas com plástico reciclado. O conceito BMW i Vision Circular dispõe de peças fabricadas em 3D para evitar o desperdício na produção. O SUV é 100% reciclável e tem plásticos, fibras naturais, bioplásticos e tecido vegano reaproveitáveis. Já o interior do BMW i3 tem 25% de matérias-primas renováveis e plásticos reciclados.
Em 2022, Oliver Zipse, CEO da BMW, disse que um carro ecológico não é criado apenas com o uso de energia verde. “Devemos reduzir a quantidade de material para fabricá-los, planejando sua reutilização e reciclagem desde o início. Diante do aumento dos preços das matérias-primas, isso não é apenas um imperativo ambiental, mas também comercial.”
A vocação sustentável também é vista no interior “Ultra White” do Tesla Model S Plaid – revestido com couro sintético feito de manga, abacaxi e cogumelos. A Porsche vem usando folhas de oliveira para curtir couros, e também emprega a fibra Econyl – feita a partir de redes de pesca recicladas – para fabricar pisos. A estratégia é parecida com a que a Kia adotou no Concept EV9. Desde 2020, clientes do Porsche Taycan podem optar por um interior feito com microfibra vegana (poliéster reciclado).
A Audi é outra marca que investe nessa linha. O Q4 e-tron é produzido com até 27 componentes contendo material reciclado. Os carpetes e tapetes do esportivo e-tron GT são feitos com Econyl. Já os novos A3 têm até 89% dos tecidos feitos de garrafas PET. Até 2025, a Audi vai investir 500 milhões de euros, algo como R$ 2,6 bilhões, para atingir a neutralidade nas emissões. Até 2033, a promessa é encerrar toda a produção de carros movidos a combustão interna.
A Mercedes-Benz tornou o protótipo elétrico Vision EQXX, um esportivo de 201 cv e quase 1,8 tonelada, ainda mais eficiente ao integrar materiais leves e sustentáveis. As maçanetas das portas são feitas com fibra Biosteel, segundo a fabricante AMSilk mais forte que o aço comum e biodegradável. Os bancos são de couro artificial de cogumelos e cactos, chamado de Deserttex – material mexicano patenteado e destinado às marcas premium como BMW e Mercedes-Benz. Já os tapetes têm fibra de bambu reciclável na composição.
A Volkswagen, montadora que também oferece cabines sem couro, confirmou que os próximos ID.3 e e-up! terão opção de interior sem couro e lã para os assentos. E o Grupo Volkswagen Innovation, responsável pela criação e aplicação de biomateriais, está empenhado em entregar mais do que materiais que apenas imitam o couro, e plásticos feitos de óleo mineral como poliuretano ou PVC.
Recentemente, surgiu a ideia de empregar a casca do café. Quando é feita a torra, a película prateada que envolve o grão é um resíduo que pode servir de enchimento para imitações de couro. A previsão é de que, em breve, o material possa compor assentos e apoios de braço. “Há um enorme potencial e este pode ser um dos próximos passos para otimizar ainda mais a pegada ecológica da nossa frota elétrica ID”, disse Martina Gottschling, pesquisadora de Inovação da VW.
Tudo isso pode até parecer novidade, mas não para as montadoras da Coreia do Sul. Em 2014, o Hyundai Sonata já trazia tampão traseiro feito de kenaf – um hibisco da planta “Hibiscus cannabinus” – mais natural que o plástico, e com poder de absorver CO2 e NO2. Mesma época em que o Kia Soul EV chegou com revestimento de bioplástico e biofibra de cana-de-açúcar. O híbrido Ioniq 5, com previsão de chegar ao Brasil em 2024, tem portas e interruptores pintados com tintas de bio-óleo extraídos de plantas e do milho.
A Volvo pretende usar ao menos 25% de materiais reciclados em todos os novos carros até 2025, e quer que toda a frota esteja livre de couro animal até 2030. As luxuosas cabines contarão com materiais mais naturais, e de base vegetal, como o linho e a cortiça. Como ocorre no interior do carro-conceito 100% elétrico Concept Recharge, feito com materiais leves, tecidos ecológicos e naturais.
“Esta é uma jornada que vale a pena fazer. Ter uma mentalidade verdadeiramente progressiva e sustentável significa que precisamos nos fazer perguntas difíceis e tentar ativamente encontrar as respostas”, disse Stuart Templar, especialista em sustentabilidade da Volvo.
Outra montadora com soluções ecológicas é a Hummer, da General Motors, que fabrica o SUV e picape elétricos. O utilitário parrudo com mais de 1.000 cv e 165 kgfm adotou materiais sustentáveis na cabine, no lugar do revestimento de origem animal. Além disso, a GM quer deixar totalmente descartáveis suas embalagens automotivas até 2030.
“Sabemos que a mudança climática é uma prioridade urgente e estamos avançando em direção ao nosso objetivo ousado de ser neutro em carbono em nossos produtos e operações globais até 2040, para que sejamos parte da solução”, disse Kristen Siemens, diretora de sustentabilidade da GM.
Até 2030, a Toyota planeja aumentar o uso de plásticos reciclados em mais de três vezes em relação aos níveis atuais. A marca também quer extinguir o couro dos interiores, e um caminho são os materiais reciclados à base de plantas. Globalmente, os japoneses querem reduzir as emissões de carros novos em 90% até 2050, quando comparado a 2010.
Até 2035, a marca japonesa deseja tornar suas fábricas neutras em emissões de carbono. E até 2050 o objetivo é ficar livre de emissões em toda a cadeia produtiva, política que inclui a atuação de fornecedores e revendedores. E há programas de conservação de recursos hídricos, outros voltados à biodiversidade e à proteção de espécies e seus habitats.
Até 2050, a Continental pretende fabricar todos os pneus com materiais sustentáveis. E entre as tecnologias previstas está o uso de materiais reciclados, como a própria borracha, cinzas da casca de arroz e garrafas PET. Uma engenharia ainda em desenvolvimento ainda prevê o uso de borracha de dente-de-leão, planta da família Asteraceae, também conhecida como Taraxacum, cujas raízes contêm látex de borracha natural usada na produção de pneus.
“A Continental está em vias de se tornar o fabricante mais avançado da indústria de pneus em sustentabilidade. Nosso objetivo é usar materiais 100% sustentáveis em nossos pneus até 2050. E isso abrange tudo, desde a origem e fornecimento de materiais até a reutilização e reciclagem de nossos pneus”, disse Claus Petschick, chefe de sustentabilidade da Continental.
Além do emprego de itens sustentáveis nos automóveis, a indústria ainda pode reciclar, e o mercado reutilizar, peças em fim de vida útil. É assim que plástico reciclado vira para-choque e carpete, e borracha se transforma em juntas e tapetes. O uso de aço e alumínio reciclados reduz o gasto de energia na produção de motores e chassis. Vale destacar que itens usados de segurança, como conjuntos de direção, cintos de segurança e sistemas de freio, não podem ser comercializados.
Na contramão de países como os Estados Unidos, o Brasil mais reutiliza do que recicla peças automotivas. Julio Luchesi, presidente da Abcar, Associação Brasileira de Reciclagem Automotiva, diz que o mundo recicla 95% dos carros colididos e em final de ciclo. No Brasil, ele afirma que estudos apontam que só 1,5% da frota é reciclada. “No Brasil, os carros não vão para o aterro sanitário ou incinerador, pois 98,5% deles têm partes e peças reutilizadas, que servem ao mercado por décadas até o descarte e reciclagem”, diz.
Luchesi conta que há cerca de cinco mil desmanches de carros e recuperadoras de peças no país, colocando itens usados em circulação para aumentar o ciclo de vida dos materiais e reduzir o impacto ambiental e energético.
“Em recente visita à Europa, e aos EUA, ficamos chocados com a quantidade de itens bons direcionados à reciclagem. Motores e peças em perfeito estado são processados e viram sucata. O Brasil mais reutiliza resíduo automotivo do que recicla. Aqui, nós reutilizamos tudo, até os parafusos automotivos são colocados à venda para reuso”, finaliza o executivo.
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Fonte: direitonews