Brics Pay: Brasil apoia sistema de pagamentos proposto por China e Rússia para desafiar Ocidente


O Brasil está empenhado e supervisiona, ao lado dos parceiros dos Brics, a criação do Brics Pay, plataforma de pagamento para transações financeiras entre seus países-membros. A iniciativa deve ter seu lançamento anunciado no final deste mês, na cúpula do bloco em Kazan, na Rússia.

Analistas, porém, enxergam o sistema mais como uma ação política do que econômica, pois reflete a intenção do bloco de desafiar o Ocidente e a hegemonia do dólar no comércio internacional. Isso porque a plataforma pode ser utilizada como uma alternativa ao Swift — sistema baseado em bancos ocidentais já consolidado, confiável e amplamente utilizado no mundo.

O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem apoiado iniciativas dos Brics que buscam desafiar a ordem global, e o Brics Pay é uma das quais o Brasil está envolvido. A iniciativa é vista como uma manobra política, sobretudo do ditador russo, Vladimir Putin, que neste ano preside os Brics. A Rússia está suspensa do Swift devido à guerra que iniciou contra a Ucrânia.

O líder chinês Xi Jinping também leva vantagem no projeto, pois o sistema de pagamentos pode servir como um dos pilares para o ambicioso projeto da China de lançar o yuan como moeda digital de caráter global.

O Brics Pay é capitaneado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, os membros “originais” do bloco. A iniciativa, porém, já conta com a adesão de seus novos membros (Egito, Emirados Árabes, Etiópia e Irã – a Arábia Saudita também foi aceita como novo membro, mas ainda não completou seu ingresso no bloco), além de outras nações interessadas. De acordo com informações divulgadas pelos Brics, haveria cerca de 160 países interessados em aderir à nova plataforma de pagamentos internacionais, mas por ora não há confirmações ou anúncios formais por parte dessas nações.

O envolvimento do Brasil mostra uma mudança de postura do país em relação ao projeto e reflete a aproximação do governo Lula (PT) com iniciativas sino-russas. Em 2022, durante o mandato do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), o Brasil havia declarado a intenção de não participar dos Brics Pay.

“Este não é um tema de trabalho, não está na agenda do Brasil”, disse o secretário de Assuntos Econômicos Internacionais do Ministério da Economia, Erivaldo Alfredo Gomes, à época, quando a Rússia pautou o tema em uma reunião do grupo.

Para analistas ouvidos pela Gazeta do Povo, a presença do Brasil nessa iniciativa pode voltar a colocar o país em uma situação controversa com as nações ocidentais.

“O Brasil aderiria a uma iniciativa que interessaria bastante aos chineses e que traria desconfianças por parte de outros parceiros da Europa Ocidental, da América do Norte e dos países democráticos da Ásia”, avalia Elton Gomes, professor da Universidade Federal do Piauí (UFPI).

O que é o Brics Pay?

De acordo com o site voltado para informativos sobre a iniciativa, o Brics Pay vai atuar com uma “combinação de sistemas de pagamento tradicionais e novas tecnologias, como moedas digitais de bancos centrais (CBDC), finanças descentralizadas e ativos tokenizados (dinheiro garantido)”. O projeto é supervisionado pelos cinco membros fundadores do grupo: Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.

O Brics Pay promete ser uma plataforma de pagamentos integrada entre os países do Brics e demais nações interessadas, através de um aplicativo no celular e com utilização de cartões. “O Brics Pay visa integrar-se com os sistemas de pagamento nacionais existentes e fornecer uma carteira online acessível por meio de aplicativos móveis, permitindo que os usuários façam pagamentos em suas moedas nacionais usando smartphones”, informa a plataforma.

A iniciativa ainda garante ser uma parceria público-privada e, de acordo com as informações do site oficial, já haveria empresas brasileiras do ramo financeiro interessadas em ingressar no novo sistema. Ainda no site do Brics Pay, o projeto é colocado como “justo” e “incluso”.

“O sistema é acessível e oferece oportunidades iguais para indivíduos e empresas, independentemente de sua origem ou histórico financeiro, independentemente de renda, localização ou outros fatores não contrários à lei”, alega.

A Gazeta do Povo buscou o Ministério das Relações Exteriores para esclarecer a participação do Brasil no desenvolvimento da iniciativa, mas foi orientada pela pasta a procurar a Confederação Nacional da Indústria (CNI) para tratar sobre o tema, justificando que a participação de empresas privadas na negociação fica a cargo do órgão. Após tentativas de contato com a CNI, a reportagem não obteve retorno. O espaço segue aberto para manifestações.

Rússia quer avançar com Brics Pay para movimentar sua economia durante a guerra

O Brics Pay é uma iniciativa que surgiu no bloco em 2018, mas ganhou maior apelo nos últimos meses, depois que a Rússia assumiu a presidência dos Brics. O interesse russo em desamarrar as iniciativas para criar um novo sistema de pagamentos internacionais surge das sanções impostas a Moscou desde que Vladimir Putin ordenou que suas tropas invadissem a Ucrânia.

Como uma alternativa para pressionar Putin a colocar um fim na guerra, a Rússia se tornou o país mais sancionado do mundo desde 2022. Nesse sentido, Moscou está suspensa da utilização do Swift e, consequentemente, impedida de fazer suas transações financeiras no mercado internacional de forma “tradicional”, tendo que recorrer a alternativas para manter seu comércio exterior.

De acordo com analistas ouvidos pela Gazeta do Povo, o interesse russo em um sistema alternativo ao Swift não tem motivação comercial, ou seja, que busque melhorar o mercado internacional de negociações ou seja mais vantajosa para os países. A intenção do ditador russo é contornar sua suspensão do sistema financeiro europeu, com objetivo de manter sua economia e, consequentemente, sua máquina de guerra.

O diretor de Comércio Exterior da Câmara de Comércio, Indústria e Serviços do Brasil (Cisbra), Arno Gleisner, explica que o Swift já é um sistema altamente confiável e não faz sentido, no atual contexto, buscar uma alternativa que não ofereça melhores vantagens econômicas. “Parece ser mais uma questão de natureza política”, avalia.

“A Rússia está em uma guerra contra a Ucrânia e tem enfrentado uma disputa contra países europeus. O governo russo está procurando um caminho que o afaste de mecanismos que são controlados pela Europa. Não vejo vantagem [no Brics Pay] do ponto de vista do exterior e de fluxo comercial nesse caso”, analisa Gleisner.

Iniciativa tem teor político e busca desafiar hegemonia do dólar e do Ocidente

A principal proposta do Brics Pay é fazer transações entre países sem a utilização do dólar, a fim de reduzir a dependência internacional da moeda americana. “Tudo isso está envolvido em um contexto de uma disputa entre a Rússia e os países do Ocidente”, avalia Guilherme Gomes, consultor de Comércio Internacional da BMJ Consultores e Associados.

“A Rússia sofreu diversas sanções internacionais e tudo isso faz com que Putin entenda que exista uma necessidade de reduzir sua dependência do dólar e de sistemas de transações internacionais europeus”, pontua Gomes.

A proposta, contudo, não é tarefa simples. Os analistas explicam que para a plataforma se tornar efetiva, os países devem chegar a um consenso quanto à tabela de conversão para suas respectivas moedas.

A utilização do dólar nesse processo, explica Gomes, é o que torna as negociações mais simples e faz do Swift o sistema mais utilizado no mundo. “O Swift facilita muito isso porque utiliza-se o dólar como base. Todas as moedas são convertidas para o dólar e então para a moeda para qual o pagamento vai ser feito. Então faz-se essa triangulação e se chega ao valor necessário”, detalha Guilherme Gomes.

Para o consultor de comércio internacional, esse é o principal obstáculo para a criação da iniciativa que a Rússia tem coordenado. Uma outra alternativa seria a escolha de uma moeda base para conversão. Nesse quesito, os países podem entrar em discordância e a China, como principal país e financiadora dos Brics, pode tentar impor sua moeda como eleita para esse processo – passo crucial para Pequim, que há anos tenta consolidar o yuan como uma moeda internacional e capaz de competir com o dólar.

A moeda chinesa, contudo, não possui os aspectos necessários para se consolidar como uma moeda de conversão, assim como o dólar. “O controle abrangente do estado sobre a sociedade, que caracteriza o regime político chinês, é um obstáculo ao papel do yuan como moeda internacional”, avalia o economista e ex-diretor do Banco Central Carlos Eduardo de Freitas.

“Nas democracias, os atos e relatórios econômicos técnicos são permanentemente sujeitos à crítica ampla da sociedade e também de entidades estrangeiras. Qualquer alteração das regras financeiras precisa de aprovação popular por intermédio das câmeras de representantes”, avalia Freitas ao pontuar que tais características não existem no regime chinês.

“Uma economia dinâmica e PIB grande são condições necessárias para uma moeda internacional, mas não são suficientes. A moeda tem que ter trânsito internacional isento de restrições administrativas. Trânsito absolutamente livre e as pessoas têm que confiar nessa transparência e liberdade de transações”, pontua. O controle do Banco Central da China sobre o yuan desestimula essa condição.

Além disso, o volume de trocas internacionais com yuan é considerado incipiente e dificilmente alcançaria o dólar nas próximas décadas. Segundo dados do Swift, o principal sistema de transferências globais em vigor atualmente, publicados pela agência de notícias Reuters no primeiro semestre deste ano, o yuan responde por cerca de 4,5% das transações financeiras globais. O dólar é a moeda usada em 83% das movimentações.

Outro ponto levantado pelos analistas é a possibilidade de a Rússia apoiar a utilização do dólar como moeda base de conversão, a fim de agilizar a implementação do Brics Pay para retomar sua economia. Essa possibilidade, contudo, pode ser barrada pela China. ”Não é vantajoso, politicamente, para a China aceitar isso, mas é para a Rússia”, avalia Guilherme Gomes ao relembrar que esse tema pode levar as discussões à estaca zero.

Para analistas, Brics enfrenta dificuldades para questionar hegemonia do dólar

Apesar do desejo sino-russo de utilizar os Brics para implementar métodos financeiros que não utilizem o dólar, os analistas pontuam que o grupo enfrenta problemas para impor tal agenda. A principal delas é a transparência, já que, no atual contexto, a maioria dos países dos Brics não são democráticos.

De acordo com o Ranking de Democracia do jornal inglês The Economist, entre os países dos Brics, apenas Brasil, Índia e África do Sul são consideradas democracias, embora classificadas como “falhas”. Na avaliação do cientista político Elton Gomes, professor da Universidade Federal do Piauí (UFPI), a ausência de governos democráticos é o que une os países dos Brics em busca de um novo sistema financeiro internacional.

“Não há nada de atrativo [no Brics Pay] que possa justificar um novo sistema de pagamentos, a não ser o fato de que a maioria dos países do grupo serem bastantes sancionados. Esse é o motivo pelo qual eles querem criar um sistema de pagamento à parte, para poder se fortalecer contra sanções dos países que são democracias liberais”, pontua Gomes.

O ex-diretor do Banco Central Carlos Eduardo de Freitas relembra ainda que o fato da economia chinesa se destacar mundialmente não é o suficiente para se tornar uma referência como a moeda americana. “A falta de democracia deixa a um ditador e à sua entourage (círculo de apoiadores) o poder de governo. Isso cria uma insegurança”, pontua.

“Numa democracia, a política econômica, se desviar-se dos cânones ortodoxos, os mecanismos de controles inerentes aos regimes democráticos impedem o chefe de governo de adentrar caminhos, digamos, heterodoxos, que não se sabe a que destino podem levar a economia”, diz Carlos Freitas.

O economista ressalta que, no sentido oposto das nações dos Brics, a consolidada utilização da libra esterlina (Reino Unido) e do dólar (Estados Unidos) como moedas internacionais, se dá justamente pelo fato desses países serem democracias totalmente transparentes e por contarem com políticas macroeconômicas de conhecimento mundial.

Brasil tem apoiado discurso dos Brics pela desdolarização

O tema da desdolarização, pautada sobretudo pela China, encontra eco entre os países membros dos Brics, inclusive no Brasil. Uma dependência menor da moeda é um dos grandes objetivos de Pequim, que desafia a hegemonia dos Estados Unidos e é alvo de sanções do Ocidente. O bloco já chegou a discutir até a possibilidade de uma moeda única com a intenção de eliminar a utilização do dólar.

Uma diminuição no uso da moeda americana já foi defendido por Lula em diversas oportunidades. Em discursos, o petista aponta o dólar como um dos culpados pelo endividamento de países em desenvolvimento. “Por que todos os países são obrigados a fazer seu comércio lastreado no dólar? Quem é que decidiu que era o dólar a moeda depois que desapareceu o ouro como paridade?”, disse Lula em Xangai, na China, em março de 2023.

No ano passado, inclusive, China e Brasil completaram a primeira operação comercial somente com moedas locais: o yuan e o real. Em março de 2023, a China autorizou a subsidiária brasileira do Industrial and Commercial Bank of China (ICBC, ou Banco Industrial e Comercial da China) a fazer a compensação direta de yuan para real, viabilizando operações comerciais e financeiras diretamente entre as duas moedas.

As tratativas sobre o Brics Pay estão sendo conduzidas especialmente pela Rússia, que atualmente preside o Brics. O encontro de líderes dos Brics acontece em Kazan, na Rússia, e vai contar com a presença de Lula, que já confirmou sua visita ao país para participar do encontro.

Fonte: gazetadopovo

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