A postura não totalmente alinhada do Brasil em disputas geopolíticas, para o professor de relações internacionais do Ibmec Lier Pires Ferreira, é um ponto de tensão com os estadunidenses. Segundo ele, grandes potências preferem aliados alinhados com suas agendas.
“É importante a gente perceber que, por um lado, você vai ter sempre os EUA tentando direcionar essa agenda e, por outro lado, por vezes, nós teremos o Brasil mais acoplado criticamente a essa agenda”, diz.
Ele entende que o país tem potencial para ser um ator relevante na nova ordem internacional, se souber atuar estrategicamente nas disputas hegemônicas. “Se nenhuma tragédia ocorrer e o Brasil souber atuar nos vãos das disputas hegemônicas, ele poderá ser um player importante nessa nova ordem internacional em construção.”
“Nós vamos ter que entender que lugar nós queremos ocupar no mundo,” diz Ferreira, comentando que atualmente o Brasil é um exportador de commodities e ocupa um lugar periférico no sistema global. Além disso, defende que o país retome seu status industrial, prejudicado por políticas de desindustrialização desde a década de 1980.
Qual a influência dos EUA e da China na economia do Brasil?
Sobre o futuro das relações internacionais brasileiras, o professor de história e política da Universidade de Denver Rafael Ioris ressalta à Sputnik Brasil a crescente influência da China na América Latina e a pressão para que países como o Brasil escolham lados na disputa global entre Pequim e Washington.
Em entrevista aos jornalistas Melina Saad e Marcelo Castilho, do podcast Mundioka, ele destacou a importância do BRICS como um espaço para Brasília negociar sua posição sem se alinhar abertamente com um lado.
Para ele, a desdolarização do comércio é uma preocupação para os norte-americanos, que já têm reagido a esse movimento. “Os países do Sul, especialmente atores importantes como o BRICS, têm tentado aumentar sua capacidade de autonomia na economia global”, explica.
Segundo dados divulgados este ano pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, China, Hong Kong e Macau respondem por 31,1% das exportações brasileiras. União Europeia (13,6%) e Estados Unidos (10,8%) vêm em seguida.
Questionado a respeito de uma eventual escolha entre os polos, Ioris defende uma tentativa brasileira de ter boas relações com ambos. Para ele, a tentativa de alinhamento automático do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) com os EUA foi um período de “aberração histórica”.
Quais são os 15 membros do CSNU?
O Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) tem como membros permanentes Rússia, China, Estados Unidos, Reino Unido e França. Além disso, há dez membros não permanentes e rotativos, eleitos a cada dois anos.
Há décadas, o Brasil reivindica um assento permanente no CSNU, que sofre críticas de diferentes lados, devido à incapacidade em mediar conflitos.
O professor Rafael Ioris encara a busca do Brasil por uma cadeira no conselho de forma “cética”. Ele questiona se Brasília tem maturidade política necessária para arcar com os custos de tal posição. “A ONU [Organização das Nações Unidas] tem problemas muito maiores, e o Conselho de Segurança é uma coisa anacrônica”, disse. Para ele, a prioridade deveria ser uma reforma ampla do sistema da ONU.
Qual a relação entre o Brasil e os EUA?
Em 26 de maio de 1824, Washington reconheceu a independência do Brasil e foi dado o estabelecimento das relações diplomáticas. Atualmente, os Estados Unidos respondem como o segundo maior parceiro econômico brasileiro.
O professor de relações internacionais Lier Pires Ferreira, no entanto, ressalta que é um equívoco histórico frequentemente repetido a ideia de que os EUA foram o primeiro país a reconhecer a independência brasileira, sendo a Argentina a primeira nação a reconhecer o marco, um ano antes, em 1823.
Ele destaca outros momentos significativos posteriores de cooperação entre os países, a exemplo da visita de Dom Pedro II aos Estados Unidos em 1876 e o apoio americano ao fim da escravidão no Brasil. Além disso, o primeiro acordo comercial em 1891 e a troca de embaixadores em 1905 são outros marcos.
No entanto, nem tudo são flores na história dessa relação. A interferência americana na política interna brasileira é uma realidade documentada, segundo o professor.
Em 2014, o então vice-presidente dos EUA, Joe Biden, entregou documentos que detalhavam abusos cometidos durante a ditadura militar brasileira.
Ferreira também comentou que, nos anos 1960, havia um alinhamento claro entre a política externa dos Estados Unidos e os desejos de segmentos das elites brasileiras e militares que aderiam à linha anticomunista promovida pelos americanos. “É quase impossível acreditar que apenas com a correlação de forças internas seria possível o golpe de 64,” afirmou.
Rafael Ioris também ressalta que a relação entre os países é marcada por tentativas de cooperação, mas também por recorrentes mal-entendidos e receios. “São dois países que têm historicamente bom relacionamento, mas que continuam tendo uma certa recorrência de mau entendimento.”
O professor entende que o Brasil não deve se tornar uma ameaça ao imperialismo por falta de “pretensão”. Segundo ele, a diplomacia brasileira historicamente busca seu espaço no cenário global, mas não de forma confrontacional.
Ele ressalta, no entanto, que a depender do contexto político global e interno, especialmente com potenciais mudanças de liderança nos EUA e no Brasil, a dinâmica pode mudar. “Se [Donald] Trump voltar ao poder, isso pode, de fato, se manifestar de maneira mais tensa e mais rápida”, exemplifica.
“Existe uma longa trajetória de boas relações com os Estados Unidos, mas que também foi definida ao longo do tempo por um certo grau de incompreensão mútua”, explica, citando episódios de tensão como o escândalo de espionagem durante a presidência de Dilma Rousseff (PT).
Ioris também cita a influência norte-americana em momentos críticos da história brasileira, como o apoio dos EUA ao golpe militar de 1964.
“Se não tivéssemos tido o golpe, o Brasil poderia pelo menos ter tido espaço, a chance de ter atendido questões estruturais, e estaríamos hoje numa situação muito diferente em relação ao nosso grau de desenvolvimento, nosso grau de democracia e tudo mais.”
Segundo ele, o anticomunismo, especialmente durante a Guerra Fria, foi em grande parte uma construção de elites conservadoras brasileiras e de dirigentes políticos e econômicos dos Estados Unidos.
Mais recentemente, ele menciona o papel americano no incentivo à operação Lava Jato, “que não foi só restrita à Lava Jato, porque se criou uma lógica política, inclusive apolítica, antipolítica no Brasil, de acreditar que promotores seriam salvadores da pátria”.
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Fonte: sputniknewsbrasil