Brasil deixou saúde em segundo plano ao regular apostas; quais as regras em outros países


Aprovada a toque de caixa, a regulamentação das bets no Brasil deu pouca ênfase à discussão e definição de questões ligadas à saúde pública. Pego de surpresa, o governo federal discute agora medidas para reforçar o controle das apostas e prevenir e combater a dependência.

O caso brasileiro é similar ao observado em outros lugares que liberaram o jogo. Estudo publicado na revista The Lancet Public Health em janeiro mostra que os jogos de azar são permitidos em 80% dos países. E, embora haja casos de mais rigor, o trabalho indica que no geral as legislações têm se focado em regular o mercado de apostas, negligenciando os impactos sociais.

A pesquisadora Daria Ukhova, da Universidade de Glasgow (Reino Unido), que liderou o estudo, destaca que “há uma notável ausência de abordagens de saúde pública nos textos legislativos revisados, e a maioria das jurisdições não traduziu essa perspectiva em ações políticas abrangentes”.

O regramento varia bastante. A Noruega, por exemplo, abandonou a regulação flexível e transformou o jogo em monopólio estatal. Na China, onde a “explosão” de apostas multiplicou casos de fraude e vício e chegou a afetar as vendas do comércio, as apostas online foram proibidas.

No Reino Unido, a legislação em vigor foi criada há quase duas décadas e é tida como referência. O jogo é liberado, mas há um controle rigoroso sobre as empresas do ramo, práticas de responsabilidade que incluem limites de apostas e até intervenções automáticas e publicidade limitada (leia mais abaixo detalhes sobre as legislações no Reino Unido, Noruega, China e Estados Unidos).

Fazenda teve 251 reuniões com setor de bets e cinco com profissionais de saúde

No Brasil, projeto de lei do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi enviado ao Congresso no segundo semestre do ano passado. A medida, voltada para aumentar a arrecadação de impostos em meio à crise fiscal, foi rapidamente aprovada pela Câmara e pelo Senado e sancionada pelo presidente da República em 30 de dezembro. Em 2024, o Ministério da Fazenda baixou uma série de portarias para regulamentar essa legislação.

Esse processo ocorreu em meio a muito diálogo com o setor de apostas e pouca conversa com a área da saúde. Entre março de 2023 e julho e 2024, funcionários do alto escalão do Ministério da Fazenda participaram de 251 reuniões com representantes de empresas de apostas ou entidades ligadas ao setor, segundo levantamento da Folha de S.Paulo. Em contraste, apenas cinco encontros foram realizados com profissionais de saúde no período.

As bets já estavam liberadas no Brasil desde 2018, quando lei sancionada pelo então presidente Michel Temer (MDB) as classificou como jogos de loteria, que já eram legalizados. A legislação definiu um prazo de dois anos, prorrogáveis por mais dois, para a regulamentação da nova modalidade, mas Jair Bolsonaro (PL) encerrou o mandato sem assiná-la.

As apostas esportivas ficaram em uma espécie de “limbo legal” nos últimos anos, em que a atividade esteve liberada sem fiscalização nem arrecadação de impostos. O mercado cresceu de forma exponencial, e seguiu em alta mesmo após a lei de 2023 e as portarias de 2024.

As bets se transformaram num problema de saúde pública, que já afeta a economia. Possível sintoma disso é que a inadimplência bancária voltou a subir, muito embora indicadores mostrem que o PIB pode crescer perto de 3% pelo quarto ano consecutivo, com desemprego em níveis historicamente baixos e rendimentos em alta.

Segundo o psicólogo Rafael Ávila, diretor-executivo da SOS Jogador, que presta apoio a jogadores compulsivos, o Ministério da Saúde ainda não se manifestou sobre políticas públicas voltadas para um mercado de apostas regulado. Ele destaca que não foram divulgadas medidas de saúde mental para proteger os usuários que possam desenvolver transtornos relacionados ao jogo, o que pode sobrecarregar os centros de atenção psicossocial.

“A falta de ações do Ministério da Saúde é preocupante, pois demonstra desconhecimento da gravidade da situação atual. A procura por tratamento para dependência de jogos e por assistência social de pessoas endividadas está crescendo”, afirma Ávila.

Lula convocou ministros para discutir bets

O presidente Lula realizou uma reunião ministerial nesta quinta-feira (3) para discutir o problema das apostas. No encontro, ele disse que muitas pessoas estão gastando mais do que podem e que o tema deve ser tratado como questão de saúde pública, pois envolve dependência. Uma das metas é desenvolver ações de tratamento e prevenção, integrando o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e o Sistema Único de Saúde (SUS).

A ministra da Saúde, Nísia Trindade, afirmou que o vício em apostas é uma questão de saúde pública global e exige campanhas educativas e medidas preventivas voltadas para jovens e adultos.

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, aproveitou a oportunidade para anunciar o bloqueio de 2 mil sites de apostas ilegais a partir do dia 11. Disse que portarias foram editadas para regulamentar as operações, incluindo aspectos técnicos e a proteção de menores e pessoas vulneráveis.

Outra preocupação envolve a lavagem de dinheiro e outros crimes relacionados às apostas. De acordo com o Ministério da Justiça, a Polícia Federal já está atuando para combater a sonegação e o envolvimento com o crime organizado.

Lula também se mostrou preocupado com o fato de muitos beneficiários do Bolsa Família estarem utilizando o dinheiro do programa para apostas. O Ministério do Desenvolvimento Social estima que 17% dos inscritos no programa de transferência de renda estejam envolvidos nessa prática.

Regulação britânica para bets é referência

Segundo estudo da Genial Investimentos, a regulamentação do Reino Unido é uma das mais maduras e estruturadas do mundo. A legislação, baseada no Gambling Act de 2005, criou a UK Gambling Commission (UKGC), responsável pela emissão de licenças, monitoramento de conformidade e promoção de práticas de jogo responsável.

As principais características da regulamentação britânica incluem:

  • licenciamento rigoroso com autorizações específicas;
  • promoção de práticas de jogo responsável, como limites de apostas e intervenções automáticas;
  • tributação de 15% sobre os lucros das operadoras;
  • regras rígidas contra lavagem de dinheiro; e
  • publicidade controlada, com restrições a horários e proibição de anúncios voltados para menores.

O sucesso do modelo britânico é atribuído à robustez regulatória, às práticas de proteção ao consumidor e ao alto nível de conformidade das operadoras. Em 2023, novas propostas foram apresentadas para aumentar as verificações de antecedentes de apostadores vulneráveis e para financiar pesquisas sobre os impactos do vício.

Noruega tem monopólio estatal sobre apostas

Nos anos 2000, a Noruega enfrentou problemas com o setor de apostas devido à regulamentação flexível. O aumento das máquinas de apostas eletrônicas levou o país a adotar um monopólio estatal em 2002, com duas empresas controlando os jogos de cassino, online e corridas de animais.

As medidas incluíram o registro obrigatório dos jogadores e o rastreamento de suas atividades, além de limites de apostas. Em 2014, o país expandiu a oferta de jogos online, mas o aumento de jogadores com problemas levou a um endurecimento das regras. Entre 2019 e 2022, o limite de perdas nos jogos online foi reduzido e o contato com jogadores em risco, intensificado. O número de jogadores problemáticos caiu de 1,4% em 2019 para 0,6% em 2020.

Após “explosão” de apostas, China proibiu o jogo online

Na China, a “explosão” das apostas online entre 2005 e 2015 gerou lucros e empregos no setor de tecnologia, mas também drenou recursos do varejo e aumentou a incidência de fraudes e vício em jogos. Em 2015, o governo proibiu as apostas online, estabelecendo limites de tempo para menores em jogos e endurecendo as regras contra operações transfronteiriças.

A proibição de jogos online e cassinos impulsionou a expansão dessas atividades em países vizinhos. Macau, ex-território português e atualmente região administrativa especial da China, permite a operação de cassinos e jogos online, atraindo muitos jogadores chineses.

Além disso, muitos têm viajado para países como Austrália, Cingapura e Japão, onde o jogo é legalizado. A Rússia também buscou transformar Vladivostok em uma zona de entretenimento, embora enfrente desafios decorrentes da guerra na Ucrânia.

As tentativas de jogadores chineses de contornar as restrições governamentais levaram o ditador comunista Xi Jinping a endurecer as regras contra o jogo, com foco nas apostas transfronteiriças. Segundo a revista britânica The Economist, cerca de um quinto do dinheiro que sai ilegalmente da China é destinado às apostas.

EUA adotam modelo descentralizado para regular bets

Nos EUA, a legalização das bets começou em 2018, após a Suprema Corte derrubar a Lei de Proteção ao Esporte Profissional e Amador (PASPA). A decisão permitiu que cada estado regulasse as apostas esportivas, levando a uma rápida expansão do setor. Atualmente, 38 estados e o Distrito de Columbia têm apostas legalizadas.

Os pesquisadores Brett Hollenbeck, da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), e Poet Larsen e Davide Prosepio, ambos da Universidade do Sul da Califórnia (USC), afirmam que os estados que legalizaram as bets registraram ganhos econômicos, incluindo aumento na arrecadação.

 “Essa receita pode ser destinada a diversos serviços públicos, como educação e saúde”, destacam.

A facilidade de acesso às apostas online trouxe, entretanto, impactos negativos à saúde financeira dos consumidores, com queda no score de crédito, além de um aumento nas falências pessoais e nos problemas de endividamento.

Fonte: gazetadopovo

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