Bolsonaro pode ser responsabilizado criminalmente por invasão de bolsonaristas radicais em Brasília?


Afastado do Brasil desde o dia 30 de dezembro, quando embarcou para os Estados Unidos para se hospedar na casa do lutador de MMA José Aldo, em Orlando, na Flórida, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) vem sendo acusado de ser a pessoa que fomentou o caos político atualmente vivenciado no Brasil.
Esse cenário caótico culminou na invasão das sedes dos três Poderes, em Brasília, no último domingo (8), por bolsonaristas radicais que não aceitam o resultado das eleições presidenciais.
Mais de mil pessoas foram detidas por envolvimento na ação, e pelo menos 700 devem responder criminalmente. O número ainda pode crescer, uma vez que a investigação em busca de envolvidos e financiadores segue em andamento.
O episódio resultou no afastamento do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), e na prisão do ex-secretário de Segurança Pública do DF Anderson Torres, em ambos os casos por atuação omissa em relação à invasão.
Diante disso, surgem as perguntas: poderia Bolsonaro ser também um dos responsabilizados? E, caso isso seja possível, quais as chances de o ex-presidente ser preso por conta desse episódio e por outros crimes que teria cometido ao longo de seu mandato?
Para entender essa questão, a Sputnik Brasil conversou com Acacio Miranda da Silva Filho, doutor em direito constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP-DF) e mestre em direito penal internacional pela Universidade de Granada, na Espanha.
Acacio Miranda diz que a possibilidade de o ex-presidente ser preso é real. Ele cita a chamada teoria do domínio do fato, uma tese usada no julgamento de nazistas no tribunal de Nuremberg.
“Essa teoria diz que determinadas pessoas não são os autores diretos do crime, mas são mentores de uma ideologia ou de ideais que levaram ao cometimento daqueles crimes.”
Miranda acredita que a postura de Bolsonaro após as eleições teve um papel no que foi visto em Brasília no dia 8. Segundo ele, o fato de Bolsonaro ter se omitido em orientar seus apoiadores “a não praticarem tais atos e dizer aos mesmos que o resultado das eleições já estava posto” abre margem para que ele seja responsabilizado.
Ele destaca que essa teoria já foi usada anteriormente no Brasil para condenar políticos envolvidos no caso do mensalão.
“Então eu acho que há argumentos jurídicos para tanto, desde que comprovado. Acho que a omissão é de mais fácil comprovação. Já o fato de ele incitar ideologicamente [seus eleitores] é um pouco mais complexo, depende da construção de uma tese. Mas, de forma objetiva, é factível [que Bolsonaro seja apontado como um dos responsáveis].”
Miranda, no entanto, destaca que atualmente não existe a possibilidade de extradição do ex-presidente, pois isso dependeria “de um pedido do nosso Judiciário para o Judiciário norte-americano”. Isso poderia ocorrer somente caso ele fosse julgado e condenado.
Porém o especialista ressalta que caso Bolsonaro seja “julgado e eventualmente condenado, dada a gravidade dos crimes, é bem possível que seja preso” e se torne inelegível.

“Independentemente de ser preso ou não, mesmo que seja condenado por crimes menores, mas havendo a confirmação dessas condenações em segunda instância, pela Lei da Ficha Limpa, automaticamente, ele já vira alguém inelegível. Então, caso julgado e condenado, ele pode, sim, ser preso, e mais facilmente tornar-se inelegível.”

Processos por crimes cometidos ao longo do mandato

O caso da invasão em Brasília não é o único crime associado ao ex-presidente. Ele também responde a outros quatro inquéritos no Supremo Tribunal Federal (STF): o inquérito 4888, por divulgação de notícias falsas durante a pandemia; o inquérito 4878, por vazamento de dados sigilosos de ataque ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE); o inquérito 4781, sobre a divulgação de notícias falsas contra ministros do STF; e o inquérito 4831, sobre interferência na Polícia Federal (PF).
Após deixar a presidência, Bolsonaro ficou sem foro privilegiado pela primeira vez em 31 anos, desde que assumiu seu primeiro mandato como deputado federal, em 1991. Questionado sobre se a perda do foro retira os quatro inquéritos da jurisprudência do STF, Miranda descarta a possibilidade.
“Como regra, o STF entende que os crimes cometidos durante o exercício do mandato, portanto durante o período em que ele é detentor do foro privilegiado, permanecem na competência do STF. Então ele [Bolsonaro] continuará sendo julgado pelo STF. Agora, os crimes cometidos a partir do dia 1º de janeiro, quando ele não tem mais foro por prerrogativa de função, esses serão julgados pela Justiça comum. A gente tem de levar em consideração o período em que os crimes foram cometidos, esses inquéritos que já estão tramitando serão julgados pelo STF”, explica o especialista.
Miranda destaca que isso acontece por conta de uma mudança na lei e que antes “o STF tinha uma jurisprudência diferente”, que abria brechas para fugir a inquéritos.
Segundo ele, essa manobra consistia em uma espécie de jogo: o político perdia o mandato, perdia o foro. E quando iniciava um novo mandato, recuperava o foro.

“O STF ia julgar, a pessoa renunciava, e aí [o inquérito] ia para a Justiça comum. Nesse período ela disputava outra eleição. Eleita, tinha novamente direito ao foro. Então ela ficava jogando com isso.”

Ele acrescenta que, hoje, para não ter mais esse problema, um crime cometido quando o político tinha foro privilegiado segue na jurisprudência do STF; crimes cometidos após a perda são julgados pela Justiça comum.
Com isso, segundo Miranda, os inquéritos aos quais Bolsonaro responde não sairão da alçada do STF. Ele acrescenta que outros eventuais inquéritos que sejam instaurados que tenham como alvo ações cometidas durante o mandato também serão julgados pelo STF. Isso porque Bolsonaro também é alvo de nove pedidos de indiciamento pelo Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid, por crimes cometidos durante a gestão da pandemia.
O relatório acusa o ex-presidente dos seguintes crimes:

Crime de epidemia, por incentivar a propagação do vírus da COVID-19;

Crime de infração de medida sanitária preventiva, por se recusar a adotar medidas de contenção, como uso de máscaras, e incentivar a aglomeração de eleitores durante a pandemia;

Charlatanismo, por estimular o uso de medicamentos sem eficácia contra a doença;

Incitação ao crime, por incitar a população a desrespeitar normas de segurança sanitária;

Falsificação de documento particular, por alterar documento sobre mortes por COVID-19 produzido pelo Tribunal de Contas da
União (TCU);

Prevaricação, por ter se omitido diante de denúncias de corrupção na compra de vacinas;

Emprego irregular de verba pública, por autorizar a compra de medicamentos sem eficácia contra a doença;

Crime de responsabilidade, por atuação descomprometida com o efetivo combate da pandemia e a preservação da vida e integridade física da população;

Crimes contra a humanidade, por atos e omissões durante a gestão da pandemia que colocaram em risco populações indígenas, configurando as modalidades de extermínio e perseguição, previstos no Estatuto de Roma.

Os pedidos de indiciamento foram apresentados ao Ministério Público Federal (MPF), e o procurador-geral da República, Augusto Aras, solicitou ao STF o arquivamento das ações. O tribunal ainda não decidiu sobre o arquivamento, mas, segundo Miranda, caso decida não arquivar e aceitar a denúncia, Bolsonaro será julgado pelo STF.
“Se eles [os processos] forem instaurados, vai haver uma discussão, mas é muito provável, uma vez que os crimes foram cometidos durante o exercício do mandato, que sejam julgados pelo próprio STF. Porque é a jurisprudência do STF.”

Proposta para tornar Bolsonaro senador vitalício pode blindar o ex-presidente

Aliados de Bolsonaro vêm defendendo a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 445/2001, que propõe a criação do cargo de senador vitalício para ex-presidentes da República.
Questionado se a PEC seria uma tentativa de blindar Bolsonaro, Miranda ressalta que a proposta não é nova, mas sim “uma manobra que se discute há muito tempo”, desde o final do mandato do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2003).
Segundo ele, a proposta tem como objetivos “tornar ex-presidentes detentores do foro por prerrogativa; garantir o pagamento de salários e manter ex-presidentes ativos e com prestígio no cenário político”.
Ele destaca que essa proposta também foi discutida durante a gestão de Dilma Rousseff (PT), em meio ao julgamento do impeachment da ex-presidente.

“No caso de Dilma, isso voltou a discussão para que ela tivesse um foro. No caso do Bolsonaro isso, mais uma vez, volta à tona. A PEC é antiga, todas as vezes que vai terminando o mandato de um presidente, especialmente um presidente que tenha problemas jurídicos, essa proposta volta à tona.”

Por fim, Miranda aborda a questão da tendência de criminalização da política na América Latina, observada não apenas no Brasil, mas em outros países, como Peru e Argentina.
Ele aponta que “essa tendência é uma constante no continente latino-americano, e é reflexo de alguns fatores”.

“Quando há polarização, os ânimos ficam exaltados. E, infelizmente, as pessoas não tratam os políticos como representantes, e a gente vê isso bastante nas eleições aqui. As pessoas torcem para os políticos. Então, isso acaba gerando muito mais uma interpretação passional que uma interpretação racional. Isso reverbera em tudo o que a gente tem vivido na última década no Brasil.”

Questionado se essa tendência pode ter sido desencadeada pela operação Lava Jato, que resultou na prisão de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em 2018, Miranda diz que “as circunstâncias de Lula e Bolsonaro são diferentes”.
“Lula foi condenado e depois o processo foi anulado. Então, é uma forma de absolvição. Mas o crime imputado a ele foi corrupção, que é um crime grave, obviamente, mas envolve circunstâncias inerentes ao mandato. Bolsonaro é acusado de crime contra o Estado Democrático de Direito, crimes contra a saúde pública, especialmente por conta da pandemia. São crimes tão graves quanto e envolvem vidas que foram ceifadas por conta disso. A ambos são imputados crimes? Sim. Mas é necessário que façamos uma distinção das circunstâncias, das peculiaridades e da gravidade de cada um dos crimes.”

Fonte: sputniknewsbrasil

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