“Estamos diante de um governo que ganhou com um discurso de extrema-direita e que dá todos os sinais, nesses primeiros 30 dias, de que está disposto a fazer um governo muito alinhado a essa agenda ideológica da extrema-direita […]. O que chama atenção é isso, o que foi prometido durante a campanha está sendo mais do que entregue, em que pese essas medidas serem, aos olhos de analistas, de difícil implementação.”
“Geralmente, a convocação de plebiscito para discutir grandes temas pode ser visto, se isso for feito de maneira ponderada, se isso não for feito de maneira recorrente, como um instrumento que aumenta, basicamente, a participação dos cidadãos, aquilo que em ciência política a gente chama de accountability. Porém, a gente tem visto a prática, seja em países governados pela extrema-direita, seja em países governados pela extrema-esquerda, de abusar do sistema de plebiscito. Para fazer o quê? Enfraquecer os outros dois poderes, enfraquecer o Legislativo e enfraquecer o Judiciário.”
A Argentina está caminhando para uma ditadura?
“O Latinobarómetro já aponta que quando a economia vai bem nos países da América Latina, geralmente, a quantidade de pessoas que concorda 100% com a frase ‘A democracia é o melhor regime, independentemente da situação econômica’ é de 60%. Quando a economia vai mal, muitas vezes se registra [um percentual] abaixo de 50%”, diz Andrade.
De quem é a culpa pela crise econômica argentina?
“Os governos [de Néstor e Cristina] Kirchner e de [Alberto] Fernández foram altamente incompetentes em lidar com a questão econômica e apresentar inflação. Obrigar a população argentina a conviver com a inflação de três, quatro dígitos é inviável.”
“O Sergio [Massa] colocou a Argentina na nova Rota da Seda, o que faz com que a Argentina esteja em condições de receber investimentos de empresas chinesas, no que tange à infraestrutura, à comunicação. E a gente está falando de muito dinheiro mesmo”, explica Andrade.
“Eu acredito que o efeito econômico, em termos negativos [do possível distanciamento com a China], seria mais direto, e acredito que isso, inclusive, provocaria alguns efeitos políticos de perda de apoio por parte do Milei.”
“Os Estados Unidos não vão querer. Nem é questão de querer, a questão dos Estados Unidos é ter outros desafios a serem resolvidos que não permitirão [ao país] ocupar o espaço que poderia ser deixado pelo Brasil e pela China […]. A Argentina, geopoliticamente, com todo respeito aos nossos irmãos, não é tão importante a ponto de os Estados Unidos mobilizarem recursos econômicos para ocupar o lugar desses dois atores.”
O que esperar do governo Milei?
“Tem várias pesquisas na praça [que apontam essa tendência], e tem uma pesquisa que está falando que ele perde um ponto de apoio a cada dia que passa.”
“[É] aquela questão do conflito da poupança. Medidas ao mesmo tempo combinadas, medidas autoritárias com medidas liberalizantes, desobrigando o Estado de algumas de suas funções. Eu acho que o mais próximo que teríamos [de Milei] seria o caso Collor.”
“Inclusive já se fala a palavra impeachment na mídia. Entre os movimentos já se fala. Isso não quer dizer que isso vai acontecer agora, proximamente, mas quer dizer que há uma situação, sim, de instabilidade nesse início de governo do Milei.”
“O governo [Fernando] de la Rúa, que tem algumas semelhanças para essa questão econômica […], de crise econômica profunda, durou um ano. Então eu vejo, sim, que se continuar nessa instabilidade, se continuar nessa aposta cada vez mais alta na radicalização, há chance de esse governo não prosseguir, não cumprir o seu termo.”
“Foi um período bem confuso. Os grandes cacerolazos, os grandes panelaços, as ruas tomadas […], as pessoas indo aos bancos, tentando tirar todo o dinheiro que tinham. Foram dias dramáticos, pessoas morreram.”
Quais impactos a não adesão ao BRICS pode ter para a Argentina?
“Hoje, o PIB [produto interno bruto] reunido dos países do BRICS, com o novo BRICS, o BRICS+, já passa o PIB das economias do G7. Ou seja, já tem uma importância econômica considerável e com uma possibilidade de negociação muito menos draconiana, muito mais plausível, do que com o FMI, por exemplo. Então acho que foi um grande erro do Milei. Mas também a gente entende que, de acordo com o projeto dele, quer fazer um alinhamento com os Estados Unidos. E para fazer um alinhamento com os Estados Unidos, ele precisa se afastar da China e ainda passar para os Estados Unidos essa imagem de que está afastando a China da América Latina.”
Quais os efeitos da proibição aos protestos para a sociedade?
“Eles [integrantes do governo Milei] chegaram a propor que qualquer reunião de mais de três pessoas tenha que passar por escrutínio do Estado, que seja comunicado ao Estado. Tem total ar de autoritarismo, de medidas ditatoriais”, afirma a especialista.
Por que a população jovem votou em Milei?
“A juventude vota por mudança. Tem um fenômeno de cansaço social e um esgotamento social importantes com as condições econômicas em que a Argentina se encontrava e agora se encontra ainda mais. Então a falta de perspectiva para a juventude gerou um voto de protesto, […] um voto que a gente qualifica assim: ‘Que vá todo mundo embora, vamos votar nesse maluco aqui.’ Tem o elemento, também, de que os mais jovens, obviamente, não têm a vivência da construção da redemocratização. […] Não percebem, às vezes, a ameaça aos próprios direitos que agora vão começar a perceber.”
“Dá uma sensação de abandono e de algo bagunçado que está generalizado. E é isso, os relatos que a gente tem de lá são esses, que as pessoas estão sem entender o que está acontecendo, uma sensação de desordem.”
Dolarizar a economia é a saída?
“Eu acho que o mundo está numa onda de desdolarização, e não de dolarização. Tem que tentar fortalecer a economia, sua moeda, dialogar neste novo mundo multipolar, em que o dólar vai deixando também de ser o centro, com novos parceiros, parceiros do Sul Global. Eu estou nessa linha do BRICS, de fortalecer a integração sul-americana, latino-americana”, conclui a especialista.
Fonte: sputniknewsbrasil