Argélia engrossa o caldo de nações africanas que se distanciam da França rumo ao multilateralismo


Seja Níger, Burkina Faso, Senegal ou Mali, várias nações da região passaram por mudanças políticas que vêm causando rejeição à influência francesa em seus territórios. A bola da vez é a Argélia, do Magrebe, a maior ex-colônia francesa da África.
A situação piorou depois que o presidente francês, Emmanuel Macron, declarou apoio à proposta do Marrocos de criar o território autônomo no Saara Ocidental sob sua soberania, indo contra o movimento de independência na região, apoiada pela Argélia, que defende um referendo de autodeterminação. O território passou a pertencer à Espanha em 1975, mas nunca conseguiu a soberania pelo fato de o Marrocos ter assumido o controle de boa parte do espaço.
A perda de influência e poder na Argélia é bastante simbólica, de acordo com especialistas entrevistados pelo podcast Mundioka nesta sexta-feira (28).
O professor de relações internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Paulo Velasco avaliou que, no afã de tentar consolidar relações positivas com o Marrocos para assegurar uma presença mínima da França na África, o presidente Macron meteu os pés pelas mãos e vai na contramão dos princípios que alimentam o direito internacional, como o da autodeterminação:
“[…] também alimenta ou chancela uma postura imperialista do Marrocos. Os povos têm o direito de se constituírem, clamam pela autodeterminação. Isso é comum na história do continente africano, muito fortemente ao longo das décadas, na segunda metade do século XX”, explicou. “E com os sarauís, a situação não se concretizou, então há uma frustração, evidentemente, na postura desse povo e na postura da Argélia, que é o país que, por hábito, patrocina a causa do sarauís ali no Saara Ocidental”, comentou, ao lembrar que o embate levou a Argélia, em meados de 2024, a convocar seu embaixador em Paris, acusando a França de apoio implícito à ocupação marroquina.
Ontem (27), a Argélia anunciou a expulsão do vice-cônsul do Marrocos em Orã, Mohamed Isafiani, alegando “comportamentos suspeitos do interessado incompatíveis com a natureza do exercício de suas funções”.
Mundioka #185 - Sputnik Brasil, 1920, 03.02.2023

Internacionalista, pesquisadora de etnia e geopolítica do Magrebe, Camila Zambo lembrou que a Organização das Nações Unidas (ONU) não reconhece o Saara Ocidental, mas defende que todos os povos têm direito à autodeterminação, apoia o plano de autonomia e pontuou que a ocupação do Marrocos nesse território representa violação.
Os entrevistados assinalaram que a relação entre metrópole e colônia sempre foi turbulenta e envolveu um processo de independência violenta, causando traumas e feridas que geraram um sentimento anti-França no país.
O interesse francês na região continua a ser o mesmo da época do período colonial: explorar recursos naturais de forma lucrativa. No caso do Marrocos, são as minas ricas em recursos para a fabricação de fertilizantes, sendo que 80% da abundante quantidade de potássio está em terras marroquinas. Zambo destacou a boa posição geográfica tanto para o Atlântico como para o Mediterrâneo.

“Um país que ajuda em inteligência antiterrorista tanto para a região quanto quem faz a travessia pelo Marrocos para acessar a Europa. Outra coisa que pesa demais é a presença russa no continente, que vem aumentando. […] é um mercado muito promissor na questão de gás, energia renovável, fosfato, pesca, que aliás é tecnicamente ilegal, e de armas também”, acrescentou ela.

O fracasso do soft power francês, na opinião de Velasco, se deve ao fato de os governos nunca terem conseguido se livrar da condição de opressor, de potência imperialista e colonizadora.

“A França investiu recursos econômicos, financeiros, em projetos, em ex-colônias na África e em outras regiões do mundo, mas nunca teve a preocupação, de fato, de estabelecer uma relação com a população local, com os jovens desses países. Tentar mostrar, de fato, de que maneira os seus esforços poderiam contribuir para o progresso local”, comentou o professor.

O apoio popular a movimentos de transição política na região do Sahel e distanciamento da Europa é indicativo de que a sociedade está cansada do imperialismo francês, opinaram ambos os analistas.

“O povo argelino é mais incisivo, mais de ir para cima, não aceitar qualquer coisa. E é uma história muito marcada por massacres […] o argelino não era considerado humano [pelos franceses]. Ele ainda não é, mas durante a colonização você tem ali todo o poder, todo o controle e domínio de um povo, não só do território, mas de um povo”, declarou a internacionalista.

O banco do BRICS tem como principais membros o Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul - Sputnik Brasil, 1920, 01.09.2024

Velasco citou ainda a falta de comunicação e cooperação diplomática entre os dois países referente à comunidade argelina na França, o que suscitou a deportação de imigrantes sem negociação prévia para a Argélia, que não aceitou o envio.

“Nem mesmo os canais consulares, que são os mais básicos, estão funcionando adequadamente. Isso mostra um afastamento, um esfriamento de relações.”

A política de marginalização dos imigrantes argelinos, de maioria muçulmana, também prejudicou as relações entre os países, destacou a internacionalista, que ponderou que, apesar das perdas com o distanciamento com a França, a Argélia tem se preparado para outros cenários, diversificando parcerias.
Com isso, a França, que já chegou a exportar 90% de grãos e derivados para Argélia, tem cada vez menos poder comercial nessa nação, cujas importações de grãos vêm sendo supridas pela Rússia.
Nesse processo, países como a Rússia e a China vão ocupando espaços, com investimentos e parcerias estratégicas em um país com potencial de hidrocarbonetos, com população de densidade expressiva. Logo, mercado consumidor atraente e área privilegiada em termos territoriais.

“Acho que há perdas para os dois lados, mas talvez mais para a França, que é um país que já vinha acumulando perdas geopolíticas na África. Mais uma perda de possibilidade de influência, de projeção em favor de outros países, porque tem havido o avanço, por exemplo, da Rússia, de outros players. […] Em termos de relações de poder, relações de força, a França está encolhendo.”

A especialista lembrou que a possível entrada da Argélia no BRICS também abre inúmeras possibilidades comerciais:

“O Brasil não produz tanto quanto a população argelina precisaria. África do Sul e China idem, mas eles podem principalmente ajudar nos trâmites comerciais ou com o financiamento pelo Banco do BRICS. Então, a Argélia estar nesse meio é muito importante.”

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Fonte: sputniknewsbrasil

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